Black Annis: A Coisa que Nos Uniu escrita por Van Vet


Capítulo 9
Há Alguém lá Fora


Notas iniciais do capítulo

Olá, galera!

Mais um capítulo chegando... Esse tá meio puxado pro terror, espero que gostem. Beijão!



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Frank Longbottom deslizou a porta de vidro para o lado e entrou em casa novamente. Olhando para a esposa e o filho que aguardavam apreensivos na sala, disse:

─ Nada ─ balançou a cabeça negativamente ─ Não tem ninguém lá no jardim.

─ Você tem certeza que do que viu, filho? ─ Alice indagou seu filho único, Neville, de modo cauteloso.

─ Claro que eu tenho ─ o menino bufou, inconformado, não porque os pais pareciam desconfiar dele, mas por que seus olhos não poderiam ter lhe pregado uma peça… Duas vezes, ainda por cima.

A primeira vez que vislumbrou a estranha silhueta do homem, estava indo para a cozinha sorrateiramente, sem nem acender a luz do ambiente, descobrir se havia sobrado alguma batata frita do jantar. Ele as teria devorado durante a refeição todas as pequenas, deliciosas, amarelinhas e crocantes batatas, se a mãe não tivesse colocado rédea curta na sua alimentação. Era algo inevitável. Neville não podia lutar contra sua predileção ao sabor da batata frita… E também aos bolos com glacê branco, aos brigadeiros de lata, aos salgadinhos de pacote sabor presunto, as balas de morango da máquina da mercearia da senhora Simpsons, e uma infinidade de outros sabores do qual estava sendo privado devido ao excesso de açucares no seu sangue.

Ele não estava obeso, o pediatra tranquilizou a mãe, mas se continuasse abusando do doce e do carboidrato, principalmente a noite, o excesso de glicose em seu sangue se tornaria um problema. Então Alice olhou para o filho, ainda dentro do consultório, debaixo dos olhos do médico ancião, como se estivesse se desculpando por ter de começar a privá-lo de uma das poucas alegrias do garoto: comer. Quando Neville chegava da escola se sentindo um lixo por ter sido fraco e covarde, por ter sido xingado e beliscado, por ter sido chutado e empurrado, era um saco extragrande de salgadinho e um copo de meio litro de Coca-Cola que costumava consolá-lo.

Pois lá estava ele, burlando as ordens da mãe de “Eu nem deveria ter fritado elas, mas o você vai comer só um punhado” e indo procurar a porção extra, dentro do forno. O recipiente repousava em cima das grades de ferro quando o garoto esticou o braço, olhou por cima do ombro para ver se a mãe não estava por perto, e sequestrou um punhado (não muito para não dar na cara) da batata oleosa. Desesperado para não ser flagrado, enfiou o alimento na boca de uma vez e nem se importou com o fato de já estar murcho, frio e pegajoso. A sensação de bem-estar veio do mesmo jeito… E a nova onda de açúcar em seu corpo, fora da hora, viria também.

Pecado cometido com sucesso, encaminhou-se para o balcão central e pegou um papel toalha do rolo. Estava limpando a mão engordurada, pensando se haveria outra guloseima perdida pelos armários, quando uma sombra passou nos jardins, o fazendo levantar a cabeça na direção.

A cozinha dos Longbottom tinha uma parede de vidro que se debruçava para os jardins dos fundos da casa. Frank e Alice não eram necessariamente ricos, mas haviam economizado muito para construir uma casa bonita e funcional como aquela. Toda a parte posterior, da sala à cozinha, dava para um quintal bem cuidado e verdejante onde ficava a churrasqueira de Frank e o antigo escorrega de Neville. Hoje o objeto ficara pequeno demais para o traseiro avantajado do garoto… E era ali, encostado no escorrega, que Neville viu a sombra tomar a forma de um homem adulto e bastante alto.

Achando que poderia estar maluco, o raptor de batatas esfregou os olhos enquanto caminhava vacilante na direção do vidro. Não havia como alguém invadir os jardins dos fundos, a não ser que passasse por dentro da casa, pulasse o muro altíssimo do vizinho ou viesse diretamente da floresta. No segundo caso, teria de ser alguém muito empenhado, porque o matagal criava um paredão de difícil trilha naquele ponto.

E sim, ele estava vendo alguém! Era um homem… vestido de palhaço? Como assim? Esfregou os olhos de novo. Não era possível que estivesse vendo uma pessoa de peruca vermelha e roupa balão no seu quintal. O escorregador ficava há cerca de quinze metros dali, quinze passos largos, e na luz do luar uma coisa a quinze passos largos poderia ser pareidolia?

─ Nev? ─ a mãe chamou-o na sala, certamente farejando seu instinto de gula.

Neville desviou o olhar do vidro e correu para o lixo da pia a tempo de se livrar do pedaço de papel engordurado. Alice acendeu a luz um segundo depois, pegando o filho corado e com cara de culpado, as voltas no balcão central. Muito desconfiada, encarou o forno tendo certeza que ele estava atrás das sobras do jantar.

─ O que foi?

─ Na-nada ─ o menino balançou o ombro para parecer descontraído ─ Vim tomar um gole de água.

─ E mais o que…?

─ Mãe, acho que vi alguém lá fora ─ ele se lembrou no último segundo, antes que seu rosto de mentiroso se tornasse incontestavelmente explícito.

─ Alguém lá fora? ─ Alice franziu o cenho, confusa ─ Como teria alguém lá fora? ─ ela sondou, se aproximando do vidro e olhando para o jardim ─ Era uma pessoa? Vindo da floresta?

─ Acho que não. Tava ali, no escorrega ─ indicou para a mãe, que apertou os olhos para conseguir enxergar o local indicado ─ Vou apagar a luz ─ sugeriu, a fim de ocultar a claridade da lâmpada que refletia na superfície envidraçada.

─ Não vejo nada. Estava brincando no escorrega, você quer dizer? Uma criança? ─ ela indagou enquanto Neville se unia a ela para espiarem juntos.

─ Não. Era um homem… Ele tava vestido como… Como palhaço.

Alice desgrudou os olhos do jardim e focou no garoto:

─ É alguma brincadeira sua, por acaso?

─ Não, mãe. É sério. Parecia um homem e ele vestia uma peruca esquisita de palhaço.

─ Acho que você anda vendo filmes pesados demais nos fins de semana, Nev. Não há nada lá. Não há motivo para ter um palhaço no nosso jardim, hã? ─ afastou-se da porta, achando que a falta de carboidrato vinha afetando a cabeça do filho.

Neville, que também não vira mais nada da segunda vez, concordou com a mãe. Aquilo que Malfoy o obrigara a comer dias atrás devia começar fazer efeito no seu corpo agora… Era isso. Juntos, mãe e filho saíram da cozinha e foram para a sala começar o ritual sagrado da família nas quintas a noite: assistir a nova sitcom de Bill Cosby.

Frank já estava todo esparramado no sofá, acariciando Maiarah, a Cocker Spainel preta que dormia profundamente em uma de suas pernas. Vendo Alice se aproximar, ele esticou o outro braço e trouxe a esposa para um abraço carinhoso. Neville foi se sentar do outro lado do pai, no sofá com vista para o jardim, mas não deu atenção ao quintal. A vinheta de Cosby começaria a qualquer instante.

─ O Neville viu um palhaço no jardim ─ Alice comentou com Frank e os dois olharam curiosos para o filho.

─ Eu imaginei coisas, só isso ─ o menino respondeu impaciente ao fitar do pai olhá-lo.

─ Não tem como ter alguém no quintal… E um palhaço? ─ Frank gargalhou da ideia, mas encarou rapidamente para além do vidro depois.

─ Eu sei, eu sei. Foi alguma ilusão de ótica. Olhem lá, vai começar!

Já bastavam as pessoas na escola dizendo que ele era gordo bitolado e covarde. Não precisava de uma dose de chacotas em casa também, mesmo que esta jamais fosse a intenção de seus pais. Acontece que Neville Longbottom estava muito sensíveis para esses dias – ou melhor, para esses anos – e o motivo era a turma de Draco Malfoy. Mais eles do que o resto da escola, dando risinhos e olhares acusatório quando todas as suas calças mais confortáveis se encontravam na máquina de lavar e ele tinha de ir com as mais antigas, as do Neville magro. Nesses dias, mal podia se agachar sem pagar cofrinho e um idiota qualquer vir correndo com uma moeda, surgida do nada, para enfiar no meio do seu rego.

Neville Longbottom andava sensível, porque não conseguia caminhar sem tropeçar se um séquito de garotas bonitas e maldosas estivesse cruzando o outro lado do corredor.

Neville Longbottom andava sensível, porque grudaram chiclete na sua nuca enquanto aliviava a bexiga dentro do sanitário masculino. Depois disso, ele tinha de esperar para usar os cubículos privativos, não importava o quanto estivesse apertado.

Neville Longbottom andava sensível, porque finalmente Malfoy, Crabbe e Goyle o haviam pego na semana passada e feito o garoto se ajoelhar sobre um montante de cocô de cachorro. Eles tinham pedaços de pau na mão durante todo o processo para poder intimidá-lo, Crabbe e Goyle, porque Draco gostava apenas de olhar e ordenar. Era a mente maquiavélica por trás da ação dolorosa. O cocô era velho, pequeno e farelento. Devia ter ficado alguns dias no sol, afinal nem cor de cocô tinha mais. E nem gosto também. Neville agradeceu por isso ao levar um pedaço a boca e sentir o gosto arenoso da coisa. “É só matéria orgânica, é só matéria orgânica” disse para si, mentalmente, engolindo aquilo diante dos três colegas de escola.

A risada sonora do pai e o risinho discreto da mãe fez garoto retornar do seu poço de humilhações. O episódio havia começado há muitos minutos e ele perdeu o início da piada… Mergulhado na piada de Malfoy.

De repente… O PALHAÇO!

─ ALI, ALI! ─ se encolheu todo para trás, apontando desesperadamente para o jardim. O cretino continuava rondando!

─ O QUE NEV? ─ Frank se levantou de um sobressalto, assustado com o comportamento histérico do filho. Maiarah acordou para a gritaria, se postando em posição de alerta no estofado.

─ O PALHAÇO! ELE TÁ LÁ FORA! ─ Neville apontou novamente, tendo a certeza de que agora o havia visto – não era loucura – passando por detrás dos arbustos, perto da churrasqueira.

─ Meu Deus ─ o pai passou a mão nos cabelos, seu coração batendo tão descompassadamente quanto o do garoto, e tratou de encaminhar-se para a porta, girando o trinco e saindo para o gramado.

─ Frank, cuidado ─ Alice pediu, temerosa. As mãos juntas retorcendo-se e acompanhando-o com o olhar.

─ Fiquem aí dentro. Qualquer coisa, se eu demorar para voltar, tranquem a porta e chamem a polícia ─ ele pediu para sua família.

Em tom de suspense, Neville e a mãe colocaram os rostos no vidro e acompanharam o pai inspecionar o quintal. O primeiro lugar que ele deu atenção foi para os arbustos apontados pelo garoto. Não havia nada lá. Depois encaminhou-se para a direita e nada também. Por último, partiu na direção da cozinha e do escorrega, sumindo do foco de visão dos dois. Quando eles estavam prestes a ir para cozinha acompanhar a vistoria, Frank retornava balançando a cabeça negativamente.

─ Você tem certeza que do que viu, filho? ─ Alice indagou. Ela e o pai não pareciam mais acreditar nele.

─ Claro que eu tenho ─ continuou defendendo seu testemunho.

─ Tá bem, vamos ficar de olho ─ o pai agora estava fazendo aquela cara de quando queria dar um assunto por encerrado por faltas de argumentos melhores.

─ Eu vou pra cama ─ o adolescente resmungou se esforçando para esconder a frustração.

Uma vez dentro do seu quarto, o refúgio de um garoto viciado em naves espaciais, galáxias distantes e filmes oitentistas de ficção científica, Neville se encostou a porta e praguejou seus atuais dias, que iam péssimos. O estômago estava roncando para variar, faminto de novo, mas se ele descesse para a cozinha a mãe o alertaria para pegar apenas uma maçã. Melhor seria se concentrar em outra coisa então.

Passando ao lado da parede tomada pelos pôsteres de Star Wars e De Volta para o Futuro, Neville abriu o armário de bagunças e pegou a sua luneta, presente da avó dois aniversários antes, e retornou a apagar a luz. A luminosidade da janela se tornou sua única companheira no cômodo escuro e era justamente da ausência da luz que ele precisava para conseguir enxergar melhor o céu noturno.

Sempre que se sentia frustrado, observar as estrelas em busca de discos voadores era uma espécie de terapia. Nada despertava mais interesse e fascínio no filho dos Longbottom do que a ideia de vida alienígena, e ele se esbaldava em todos os maiores clássicos no gênero para preencher esse hobby. Obviamente, seu diretor de cinema predileto era Steven Spielberg, quando ano passado Neville assistiu boquiaberto ao que considerava seu filme predileto da vida, “Contatos Imediatos de Terceiro Grau”. No mês seguinte, outra paixão o encontrou na biblioteca municipal de Twinbrook, o livro de Arthur C. Clark “2001 – Uma Odisseia no Espaço”. Dali em diante, o adolescente solitário se pegava pensando no mistério do monólito sempre que o tédio batia forte. Seu dia de maior felicidade, não tinha dúvidas, seria o momento em que as investigações astronômicas com a sua singela luneta lhe rendessem o testemunho de alguma espaçonave extraterrestre para comprovar todas as teorias levantadas por Spielberg, Clark, Hells, Verne, Adams, dentre outros.

Estava se preparando para olhar para o céu, limpando a lente da luneta, quando aquilo aconteceu… pela terceira vez. No fundo, ele continuava cismado. Seu olhar continuava o chamando para baixo. Havia algo.

O PALHAÇO.

Estarrecido, Neville arregalou os olhos mas não ousou piscar. Aquilo olhava para ele de volta. Olhava fixamente. Estava ali, próximo dos vasos vazios da mãe, acenando na sua direção. Um rosto pálido num sorriso vermelho e rasgado… Ou seria um sorriso vermelho num rosto pálido? Era um homem fantasiado, mas poderia não ser. Neville não sabia mais se estava ficando maluco ou não. Ele sabia de uma coisa, entretanto: estava arrepiado como nunca ficara antes. Com medo como nem Draco Malfoy e sua gangue de humilhadores conseguira fazer ele ficar. Mais assustado do que quando seu pai bateu o carro na rodovia no ano passado. O medo era real. E era visceral.

Se munindo de coragem, o menino fechou a cortina bruscamente. Enquanto seu coração lutava para retornar ao compasso normal, pensou se seria válido alertar os pais novamente. Não… Frank não chamaria a polícia, investigaria por conta primeiro, e ele não queria ver o pai correndo o risco de sair lá fora. Se somente ele estava vendo, então seria melhor ficar bem quietinho no quarto e aguardar. Aguardar Aquilo se cansar… Aparentemente a estranha aparição não conseguia entrar na casa, ou já o teria feito.


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