Black Annis: A Coisa que Nos Uniu escrita por Van Vet


Capítulo 22
Prelúdio das Investigações


Notas iniciais do capítulo

Olá, gente!

Bom, lá vamos começar mais um capítulo e eu quero justificar que talvez não consiga fazer as postagens semanais como gostaria, mas estou por aqui postando sempre que dá. Confesso que estou um pouco desanimada pela falta de feedback, porém nada que eu já não esteja acostumada...

Pra quem comentou, Raquel e alcristini, muito obrigada! Para quem acompanha no silêncio, mas segue gostando tbm meu muito obrigada.

Agora, vamos ao capítulo!



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Harry parou na entrada da tubulação e ponderou um bocado se deveria continuar ali. Neville, as suas costas, não pensou. Ele disse:

─ Tenho um mal pressentimento sobre esse lugar…

─ Sim, ele fede ─ Rony fez uma careta, subindo num pedaço de madeira podre que boiava na água suja e inclinando-se para a escuridão. A bocarra do esgoto com suas grades enferrujadas como dentes milenares e mal cuidados, o encarou de volta ─ Acho que o resultado do meu jantar de ontem pode estar por aqui.

Harry deu uma risada debochada, porém Hermione exclamou:

─ Como você é nojento!

─ É fisiologia, Mione. Aulas de biologia.

─ É isso que vocês pensam de um bom verão? Entrando em esgotos? ─ Hermione reclamou parada seguramente na parte da floresta ─ Escondendo coisas da polícia? Neville, você deveria ir agora na delegacia com seus pais e contar sobre o que aconteceu naquele dia. Talvez você tenha sido o último a ver Goyle com vida neste lugar, afinal. Pensou sobre essa responsabilidade?

─ E-eu… ─ o menino ficou desconcertado enquanto era fitado pela garota de expressões inquisitivas. Tinha momentos que Granger realmente botava algum medo nele com seu jeito impositivo.

─ Ele não quer contar o que houve naquele dia para os pais, Mione ─ Gina objetou, parada a poucos centímetros de Harry, os tênis all star azul e surrados firmando sobre as ripas. No olhar, a mesma agudez curiosa dos outros meninos em relação a entrada do esgoto ─ É um direito dele, eu acho.

─ Sim ─ Neville concordou num aceno fraco ao apoio.

─ Ainda assim, e-

─ Olhem isso ─ Harry pegou o graveto que carregava na mão e espetou a ponta de um objeto de metal submerso na água. Trazendo-o para cima, em meio a sua camada de ferrugem, mostrou aos outros ─ Parece um… não sei… um cachimbo velho.

Rony jogou a luz da lanterna sobre o que Harry erguia:

─ Esse esgoto está cheio de coisa velha, até parece um lixão. Isso aí que está escrito, não é, sei lá, japonês?

Hermione inclinou-se um pouco para frente para enxergar o objeto iluminado pelo menino ruivo:

─ Se não me engano, isso é chinês. Sim, só pode ser chinês.

─ Como você sabe? ─ desta vez Rony parecia oficialmente espantado com a perícia dela.

─ Só acho que é, oras. Não tem sinal de alfabeto japonês aí.

─ Mione, como sempre, é mais assustadora que as catacumbas mais assombradas deste mundo ─ Harry brincou.

─ Não é tão difícil saber a diferença…

─ Por que chinês? ─ Gina franziu o cenho à novidade ─ O que uma coisa dessas faz aqui dentro?

─ As pessoas jogam de tudo nos córregos ─ Harry ponderou, uma leve curiosidade rodeando-o intimamente.

─ Não deve ser coincidência ─ Rony disse ─ Já ouvi meu pai comentando sobre isso… Que foram chineses que construíram as tubulações de esgoto de Twinbrook.

─ Eu acho que ouvi algo parecido em algum lugar também ─ Neville completou recordando-se.

Harry abaixou o graveto e deixou que o cachimbo velho afundasse no seu hábitat pútrido de novo. Encarando a escuridão a frente, onde pouca luz do dia penetrava, o lugar parecia desolador e deprimente. Gostou, sobretudo, que estivessem seguramente protegidos por uma grade velha do lado de fora da floresta.

─ Por que os chineses vieram construir isso aqui? Não faz muito sentido…

─ Eu não sei ─ Rony deu de ombros, agora jogando o facho de luz da lanterna para a galeria soturna adiante, no ponto em que o amigo fitava.

─ Tem certeza que viu Goyle do lado de dentro, Nev? ─ Harry continuou a inspeção.

─ Eu não estava delirando. Eu o vi do lado de dentro até que ele me puxou pelas barras de ferro e… E aquela pessoa surgiu atrás dele.

─ Sim, eu entendo, mas é estranho. Como ele entrou?

─ Com aquela cabeça de furão, ele deve ter cavado pelo chão. Mas é mais certo que esses idiotas devem conhecer todos os esconderijos possíveis para perturbar os outros ─ Rony expôs ─ Eles são uns imbecis sem ter o que fazer de melhor da vida.

─ Eram.

─ O que?

─ Eles eram imbecis, Rony. Goyle não faz mais parte disso porque está desaparecido, esqueceu? ─ Hermione retrucou, ainda remoendo o fato de estarem ali e não numa delegacia contando que Neville podia ter uma grande ideia sobre o paradeiro do menino Gregory.

─ Você tem dois dias de bom humor e dez de mal humor, não é? ─ o garoto rebateu a amiga.

─ Todos os meus motivos de mal humor são por você, Rony!

─ Ei, ele deve ter ido por cima ─ Gina objetou em meio as provocações corriqueiras do menino ruivo contra a garota morena ─ Existem as bocas dos esgotos correndo paralelo a tubulação. Vai ver ele achou que o Neville teve coragem suficiente de entrar numa delas.

─ Não mesmo ─ o próprio respondeu com assombro.

─ É, vale a pena ir atrás ─ Harry concordou com Gina e, junto de Neville, começaram a sair da entrada do esgoto, seus pés esmagando as folhas ressequidas pelo caminho. Rony e Hermione foram ficando para trás porque ocupavam-se da usual troca de farpas sobre qualquer outro assunto que não tinha a ver com o original.

Os garotos subiram o barranco terroso para contornar a entrada do esgoto e puseram-se a caminhar entre o mato. A floresta estava agitada pelo canto dos pássaros e o dia ensolarado penetrava entre as copas esparsas, iluminando bem o percurso. Havia dias em que a floresta era um túmulo como quando Neville foi perseguido feito um cervo por Malfoy e seus comparsas, mas havia também dia como aqueles, em que tudo era vivo enquanto Harry sentia o perfume dos cabelos de Gina andando lado a lado com ele.

─ Conseguem imaginar porque aqueles dois não param de brigar? ─ Neville perguntou para Harry e Gina as cochichos, uma olhadela por cima do ombro para trás para assegurar a distância ─ A Mione é tão tranquila comigo, bem, exceto quando passa um sermão. Aí ela fica um tanto assustadora.

“Na verdade, estou até meio sem jeito em não concordar com ela e ir para a polícia. As vezes penso que estou fazendo algo errado mesmo, mas, por outro lado, meus pais fariam os céus caírem sobre todos se vissem o que os amigos de Malfoy fizeram na minha barriga”.

─ Não se preocupe, Nev ─ Harry apoiou a mão no ombro do menino ao passo que caminhavam o aclive ─ Acho que temos todos um pressentimento muito certo de que Goyle não está mais entre nós, certo?

─ Acho que sim…

─ E também estamos fazendo nossa própria investigação que significava que o assunto está sendo verificado.

─ Também pensei nisso.

─ Ótimo!

Na mente de Harry, uma vozinha muito intrometida dizia que seus pais não ficariam nada satisfeito com estas suas atitudes. Em suma, se Mione tinha um ponto, este tendia a ser igual à maioria dos pais do universo.

─ E quanto aqueles dois ─ Gina completou ─ A coisa ali é pessoal demais, não fique preocupado.

─ Pessoal demais?

─ Ah sim ─ Harry suspirou e a sombra de um sorrisinho conspiratório dançou por seus lábios ao olhar para Gina. Ela lhe piscou de volta, prosseguindo:

─ Eles só precisam dar uns beijos e tudo ficará bem ─ a ruiva murmurou com um quê de malícia na intonação ─ Quer entrar na nossa aposta, Nev?

─ Que aposta? ─ ele estava impressionado. Como não notara antes? Fazia todo o sentido agora que a amiga havia exposto a questão.

─ Se eles vão dar uns beijos antes ou depois da formatura ─ Harry trouxe a aposta à baila.

─ Minha nossa! ─ Neville exclamou entre risos ─ Aposto que será antes do fim da formatura.

─ Sujeito sagaz ─ disse Harry lhe dando tapinhas no ombro ─ Eu também estou contando com isso.

─ E você, Gina?

─ Ah, eu acho que o drama todo pode durar muito mais, infelizmente, porque teremos de aguentar essa lenga-lenga até não sei quando. Não, antes da formatura não rola nada naquele mato.

─ Está confiante demais, Gina ─ Harry a provocou.

─ Não conte vantagem até ter certeza, querido ─ ela disse cantarolando em meio a brincadeiras, o que não impediu o estômago do menino em experimentar borboletas pela menção do “querido” ao fim da frase.

O grupo seguiu pela floresta, encontrando o que Gina havia sugerido haver, um grande alçapão de concreto com a boca escancarada para o céu, construído numa depressão do terreno. Ali, as árvores pararam de crescer ao redor, o solo era ressecado e se podia ver cacos de vidros provenientes de garrafas de bebida alcoólica, além de outras sujeiras mundanas, espalhadas ao redor da entrada. A tampa original do esgoto estava despedaçada de lado e a escuridão nada atraente aguardava lá embaixo para quem olhasse.

Os cinco se reuniram ao redor da entrada do alçapão e Rony ligou sua lanterna, iluminando-o. A água poluída estava estagnado como um veio morto de rio entre lixo usado.

─ Tem que ser muito maluco para querer entrar aí sozinho ─ Harry comentou coçando no nariz para disfarçar o cheiro ruim que emanava dali.

─ Goyle não batia muito bem da cachola mesmo ─ Rony argumentou.

Neville mal queria olhar lá embaixo, tinha um mal agouro sobre aquelas tubulações cavernosas e não entendia como Gregory Goyle chegara a acreditar que ele fora se esconder ali. Tinha pouca coisa nas ideias, o grandalhão raivoso…

─ A pergunta não é porquê esse garoto entrou lá, mas por que havia outra pessoa ali dentro ─ Gina sondou, esticando o pescoço para enxergar mais ao fundo. O facho da lanterna iluminava a escada vertical enferrujada que levava para a água pútrida.

─ A questão toda segue muito suspeita por aqui ─ Harry argumentou, pensativo. Ponderou os livros de Conan Doyle que havia devorado um ano antes e se Sherlock Holmes poderia desvendar aqueles dilemas repleto de poréns inusitados ─ O cara fantasiado de palhaço, as coisas esquisitas que aconteceram no meu aniversário…

─ O fato de Goyle entrar nesse lugar ─ Neville completou ─ Porque, não importa o quão imbecil você seja, tem de se pensar duas vezes antes de se enfiar nisso aí.

─ Aqui é uma espécie de ponto turístico ─ Gina pontuou ─ As garrafas e as bitucas de cigarro contam esta história.

─ A história que deveríamos contar era para o delegado Dumbledore. Nós temos de dar um jeito de avisar a polícia que ele pode estar aí ─ Hermione retornou ao antigo calcanhar moral ─ Não digo contar a verdade, Neville. Seria bom sim, mas não digo isso. Se conseguíssemos plantar a ideia na mente do Hagrid talvez ele mobilize o delegado e eles venham procurar.

─ É algo para se pensar ─ Harry considerou.

─ Mas e se Goyle estiver morto nesses túneis?

─ Então eles virão, o encontrarão e poderão confortar um pouco os pais dele quanto a solução do desaparecimento ─ respondeu a menina como se nada na Terra fosse mais óbvio que isto.

─ Mas se for uma coisa sobrenatural, nós podemos levar Hagrid direto pra morte ─ Rony objetou alarmado.

─ Rony, eles têm armas.

─ Contra um Fantasma-Palhaço maluco?

─ Quem garante que é sobrenatural?! Racionalidade em primeiro lugar, por favor!

─ Podemos nós entrarmos lá e investigarmos por conta. Afinal, sabemos mais ou menos com o que estamos lidando, não? ─ Gina sugeriu simplesmente.

─ Não sabemos não ─ Neville pareceu mortificado com a possibilidade ─ Eu realmente não sei o que é aquilo!!!

─ E eu não sei se quero descobrir ─ Rony reforçou.

─ Acho que devemos é pensar melhor ─ Harry concluiu ─ Não sei se a polícia vai nos ouvir a não ser que sejamos bem precisos e, mesmo Rúbeo Hagrid sendo um tanto ingênuo, ele não é idiota. Por outro lado, se as coisas continuarem assim, quero dizer, mais garotos desaparecendo, algo tem de ser feito… e talvez seja por nós mesmos…

─ Esse assunto todo está me deixando de estômago embrulhado ─ Neville recuou da entrada do alçapão.

─ Precisamos é de saber sobre mais coisas a nossa volta ─ Harry continuou na linha detetivesca ─ Qual o tamanho desses túneis, por sinal?

─ Uma vez ouvi minha mãe dizendo que era possível se perder pra sempre neles ─ Gina sondou.

─ Goyle pode estar perdido então ─ disse Hermione soltando os braços.

─ Ou morto de fome, não acha? ─ Gina especulou.

─ Meu pai vive contando histórias sobre essa cidade. Os Weasley estão aqui há muito tempo ─ Rony explicou por fim ─ Eu vou dar uma perguntada para ele essa noite sobre os esgotos. Ele deve ter alguma grande história sobre isso também.

─ Mas não quer dizer que entraremos aí ─ Neville adiantou-se, o rosto um tanto pálido ─ Somos o clube dos perdedores, não o dos malucos.

─ Dependendo do rumo que as coisas tomarem será mais sensato contar a verdade para a polícia, nem que seja anonimamente ─ disse Harry ─ Mione pode estar certa.

─ Mas é claro que eu estou.

Rony revirou os olhos e eles saíram dali, retornando pela floresta para o Clube dos Perdedores.

***

A noite na casa dos Weasley era agitada e barulhenta. Durante o dia, os filhos mais velhos de Molly não faziam a refeição em casa, Gui, Carlinhos e Percy se alimentando no trabalho. No jantar, contudo, todos os seis garotos sardentos e compridos estavam reunidos ao redor da mesa na cozinha pequena e quente, para apreciarem a comida da mãe e colocar os assuntos em dia.

Arthur tivera um dia excepcionalmente cansativo na fábrica de molas que o empregava há quase duas décadas e ficava nos limites entre Twinbrook e cidade vizinha, porém se sentia revigorado conversando com seus meninos toda a noite. Eles eram sua pilha natural, dizia à esposa nos travesseiros, e o trabalho duro valera a pena, porque os seis cresceram inteligentes e bonitos ao longo dos anos de esforços deles.

Enquanto Molly servia a mesa do jantar, ajudada por Percy desta vez – eles costumavam revezar-se com os gêmeos sempre tentando trapacear em suas vezes –, Arthur escutava sobre uma estranha dúvida de seu filho caçula.

─ Pai, foram mesmo os chineses que construíram os esgotos da cidade?

─ Que pergunta é essa, Rony? ─ Fred zombou ─ O período de aulas acabou para você ficar fazendo pesquisas, sabia? Ou está de recuperação?

─ Não é nada disso, seu intrometido.

─ Tudo bem, este assunto interessante ─ Arthur ponderou erguendo a mão ─ A história da criação dos esgotos de Twinbrook… Ah, a história da criação dos esgotos de Twinbrook… Ela é curiosa e um tanto trágica. Foram os chineses sim, mas não só eles que ajudaram a construir as tubulações embaixo da cidade.

“Na época em que isso ocorreu era fim do século passado e o país estava recebendo muitos imigrantes de todos os cantos. Logo, tanta gente e o governo despreparado para esta enxurrada de imigrantes, sobrava os piores trabalhos para os coitados desta classe. Não apenas chineses, mas também italianos, alemães, espanhóis e africanos figurava os povos construtores deste esgoto.

“Foi um período muito cruel esse da nossa história, aliás. Aqui, como em muitas outras cidades, o serviço dessa gente era necessário mas suas vidas tratadas como objetos descartáveis. Morria uma, existia mais dez para se repor. Logo, vidas foram perdidas durante sua construção da tubulação, desabamentos, soterramentos, desaparecimentos inexplicáveis o tempo inteiro. Ninguém conhecia muito sobre ninguém, eles passavam grande parte do tempo nos assentamentos na floresta, então uma pessoa simplesmente sumia e ninguém se lembrava de seu nome. Ele era um trabalhador a menos no dia seguinte e era literalmente apagado da história, sem nenhuma memória, ao menos não para a prefeitura que os contratava.

“A coisa toda foi feita na precaridade. Salários irrisórios, condições sanitárias desumanas, os coitados trabalhavam quase que de graça. Pode-se dizer que era uma espécie de período de escravidão.

“O mais assustador era que a obra nunca parecia ter fim. Quilômetros e quilômetros e mais quilômetros sendo construídos sobre nossos pés. Ao menos assim dizem os registros da cidade e as fofocas no tempo do seu bisavô”.

─ Não muda muito como as coisas vão hoje em dia, papai ─ Gui refletiu com sua voz calma e analítica.

─ É, não muda, mas naquela época era muito pior e ocorreu uma verdadeira carnificina debaixo desta cidade… Todo o período foi caótico, mas em 1891 morreram mais pessoas naquele lugar que numa guerra civil produzida por um pequeno país africano. Houve um desabamento enorme e os esgotos daqui nunca puderam ser conectados ao das cidades vizinhas.

─ No inglês claro: a merda que é produzida aqui, fica aqui ─ Charlie parafraseou.

─ Isso é assunto para a janta? ─ Molly perguntou aproximando-se com Percy para colocar a última bandeja com legumes sobre a mesa e sentar-se com os demais.

─ Ah querida, Rony estava curioso e é o tipo de coisa que não deve ser esquecido ─ Arthur desculpou-se sorrindo para a esposa ─ É importante que as gerações entendam a podridão e o sofrimento por trás do conforto de hoje.

─ Sempre um idealista, você… Que seja ─ Molly suspirou mirando o marido com um reservado carinho disfarçado de censura ao passo que servia os garotos com a carne, para que eles não fizessem sujeira na sua toalha limpa ou não desperdiçassem a mistura. O que sobrasse se transformaria em uma torta de carne desfiada para o jantar do dia seguinte ─ Já que estão nestes assuntos, o que não deve mesmo ser esquecido é o que aconteceu no verão de 1975.

─ Minha nossa, Molly! Vai ressuscitar aquele ano infernal? ─ Arthur pareceu injuriado àquela menção.

─ Eu me lembro de algo das suas histórias ─ recordou Charlie erguendo o prato para a mãe servi-lo. Como era o mais forte dos Weasley, Molly sempre o favorecia em uma porção sutilmente mais generosa de carne em comparação aos demais. Os protestos dos outros filhos terminaram quando a matriarca saiu dando vassouradas em suas pernas e berrando jamais favorecer nenhum daqueles ingratos ou lhes negar comida, num almoço de alguns meses atrás.

─ Sim, a fábrica que desabou ─ Gui completou o segundo irmão, a memória rodeando-o.

─ É, a fábrica e mais um aninho e você estava lá, meu filho ─ Molly apontou para Gui.

─ O que aconteceu? ─ Rony estava para lá de curioso agora.

─ Todo mundo sabe dessa história, garoto ─ Percy desdenhou retirando das carnes e separando as ervilhas de lado no prato, enquanto apoiava um livro com a outra mão e o mantinha enfiado na cara.

─ Eu não sei.

─ Isso é porque você é um cabeça de ovo, Rony ─ George provocou o mais novo.

─ Parem de esculhambar o menino ─ Molly ralhou com os filhos ─ Aconteceu no ano de 1975, como disse. Nessa época seu pai e eu já éramos casados e eu estava grávida de Charles. Quanto a Gui, ele era um menininho lindo de quase quatro anos. Minha nossa! O tempo voa!

─ Aahh, um menininho lindo ─ George fez voz de aguda de falseta. Gui sorriu do deboche e arremessou um pedaço de cenoura na direção do mais novo quando a mãe não via.

─ Se é para ficar saudosista deixe que o papai conte, mulher ─ disse Fred.

─ Cale a boca, Fred! ─ os Weasley riram ─ Não deem risada, o que vou contar é sério, como sabem ─ as risadas foram morrendo e os ouvidos ficando atentos ─ Bem, o Gui era muito esperto e tudo mais, mas ainda não estava na escolhinha. Ele só poderia entrar quando completasse cinco anos e, desde modo, ele foi poupado de estar presente na tragédia toda. Rezo agradecendo a isto até hoje.

─ Mas o que aconteceu? ─ Rony estava na ponta da cadeira, as batidas do coração latejando na garganta, ansioso demais para descobrir o que houve.

─ Ah, Arthur, conte você ─ Molly passou a palavra ao marido ─ Descobri que não tenho mais forças para narrar essa história, aliás não sei nem porquê comecei…

─ Rony, sabe aquele terreno baldio algumas quadras atrás da sua escola?

─ O que estão plantando milho?

─ Minha nossa, estão plantando milho em Twinbrook? ─ o pai se admirou ─ Como fazem algo crescer nesse terreno duro?

─ Fazem cada coisa nessa cidade, papai, que o senhor nem imagina ─ pontuou George.

─ E vocês são responsáveis por metade dela, imagino ─ especulou Gui com uma pontinha de provocação.

─ Ah, por que tantos elogios, meu jovem? ─ disse Fred.

─ Parem de interromper e deixem papai falar, caramba! ─ Rony ralhou, a curiosidade nas alturas.

─ Como eu ia dizendo ─ Arthur retomou a narrativa ─ neste terreno que agora é uma plantação de milho, quem diria, no início dos anos 50, na época em que eu frequentava a escola que você está agora, foi construído uma fábrica têxtil.

“A fábrica passou longos anos prosperando, seus donos eram dois irmãos franceses que vieram iniciar vários negócios na América após a resseção e trouxeram várias oportunidades para a comunidade local. No geral, o lugar promovia muitos eventos e benfeitorias aos habitantes daqui.

“Foi no feriado de quatro de julho, do ano de 1975, que eles convidaram as crianças do ensino básico da escola para uma brincadeira de encontrar brindes pela fábrica como uma forma de agradecer seus trabalhadores e a comunidade em geral. Montaram barracas de comida do lado de fora, chamaram animadores de festa, instituíram atividades em família e as quinze horas de uma tarde para lá de quente, a criançada entrou sozinha na fábrica para procurar os presentes…

─ E então?

─ E então aquele lugar desabou como se Deus tivesse mandado seu castigo sobre todos nós ─ Molly respondeu com um quê de amargura.

─ O teto que havia sido trocado recentemente não aguentou com o calor do dia, começou a estalar no sol e destruiu toda a estrutura, arrastando vigas e equipamentos pesados consigo. Mais de trinta crianças morreram naquela tarde, além de um adulto, embora o seu corpo nunca tenha sido encontrado ─ Arthur se entreolhou com a esposa.

─ Um adulto? ─ Percy retirou a cabeça do livro, se interessando por esta parte ─ Não me lembro de ter adultos nesse relato.

─ É uma história muito estranha, de fato, e acho que por isso que muitos evitam propagá-la desnecessariamente. O que aconteceu é que as crianças sobreviventes do desabamento disseram haver um adulto entra elas naquele dia, um adulto incitando que procurassem nas partes superiores da fábrica. Aquele foi justo o lugar onde as vítimas fatais foram encontradas, as que menos tiveram chance de fugir do caos. Segundo os pequenos, era um homem vestido de palhaço.

Todos os pelos do braço e da nuca de Rony se arrepiaram ao escutar a última palavra proferida pelo pai. Lá estava o maldito palhaço novamente nas histórias!

─ Está vendo, não devíamos ter falado nada. Olha a cara do menino! ─ Molly ralhou consigo e com o marido ao perceber o filho assustado.

─ Eu tô bem.

─ Ah, mas que roniquinho impressionável esse aqui ─ chacotearam os gêmeos.

─ Eu disse que tô bem! ─ ele exclamou desviando da mão de Fred, que queria apertar suas bochechas.

─ Mas você que começou, meu bem ─ Arthur virou-se para Molly se justificando sobre o tema macabro na hora do jantar.

─ Não, foram vocês. Eu apenas achei importante integrá-lo deste fato, já que todos os irmãos sabem e ele não. Tem algum valor neste triste dia, uma vez que devemos aprender também que não se deve confiar em estranhos, não importa como eles estejam vestidos ─ ela respondeu um tanto pálida.

─ Ah, família! Que tal comermos essa janta maravilhosa enquanto cada um fala como foi seu dia, hã? ─ Arthur desconversou para animá-los e levá-los para outras águas mais brandas ─ Começando por você, Percy: o que está lendo, meu filho?

─ Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura. É sobre…

─ Ótimo, filho! Continue esse rapaz estudioso e terá um futuro brilhante ─ Arthur o cortou deliberadamente provocando risinhos nos gêmeos e nos dois filhos mais velhos ─ E você, Gui, como vão as coisas no serviço?

Mas Rony não riu. Ele estava ansioso para contar este fato aos seus amigos, e um tanto assustado sobre o que escutou, para achar graça em alguma coisa.


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