Black Annis: A Coisa que Nos Uniu escrita por Van Vet


Capítulo 16
O Clube dos Perdedores


Notas iniciais do capítulo

Oi gente!!! Como estão?

Espero que tudo ótimo! Por aqui também tá tudo bem e eu estou muito feliz com a participação de vocês nos comentários.

O capítulo de hoje é minha versão para uma das cenas mais pesadas do livro It. Com toda a sua temática de terror, o que sempre me deixou mais assustada e impressionada com este livro era as passagens de bullying. Então foi um grande desafio para mim escrever esse capítulo e por motivos óbvios, como perceberão. Por outro lado, tem coisa boa também, e acho que no geral capaz de vocês gostarem.

Um super beijo à todos! Ótima leitura o/



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Neville Longbottom não havia passado uma semana boa. Após o sábado conturbado que se tornara o aniversário de Harry para o emocional do menino, pesadelos e noites mal dormidas vinham lhe visitar. Eram sonhos estranhos envolvendo um homem fantasiado de palhaço e balões coloridos, e não havia nada de alegre nesses dois elementos juntos.

Uma coisa boa, pelo menos, acontecia naquela sexta feira de julho: as férias escolares. Assim, quando o sino bateu, Neville jogou os cadernos dentro da mochila e partiu rumo aos portões de saída, ele e mais uma centena de outros adolescentes, todos pressurosos pelo descanso de meio de ano.

Solitário como era – o aniversário na casa de Potter não o aproximou dos garotos como gostaria –, começou sua caminhada para casa. O dia estava quente e o sol totalmente a pino naquele horário, de forma que o garoto transpirava um bocado. Atravessou o centrinho obtuso de Twinbrook enxugando as gotas salgadas que brotavam na face e escolhendo o lado da rua onde os toldos proporcionavam alguma sombra. Por duas vezes, as guloseimas nas vitrines de docerias chamaram-lhe a atenção e ele ficou tentado a gastar seus centavos perdidos dentro do bolso da calça com um pedaço de bolo de chocolate. As promessas que fizera a mãe, que se esforçaria até o fim do ano para perder peso, falando mais alto em sua consciência.

Seguiu contornando a igreja e sua escadaria desbotada e tomada por pombos cinzentos de abdômen rotundo, aves que viviam seus dias arrulhando para os transeuntes encherem-lhes a barriga de migalhas de pão. O próximo comércio era o mercado da avenida principal, o local onde existia as melhores bombas de doce de leite do pedaço, as mesmas que o Sr. Longbottom comprava para o filho único quando passava por lá ao fim de um exaustivo dia de trabalho. As mesmas que contribuíram para o IMC do garoto ultrapassar os níveis aceitáveis para seu peso, altura e idade.

E que mal existia, que grande pecado ele cometia, em iniciar suas férias completamente regradas e dominadas por saladas e iogurtes naturais, do que comprar um reles doce para se despedir da explosão de açúcar que aquilo gloriosamente causava em sua boca?

Neville saiu do mercado, feliz e culpado ao mesmo tempo, mas prometeu ao seu ‘eu’ das semanas seguintes que se dedicaria como nunca na dieta. Assim, foi retirar a bomba de doce de leite da sacola apenas quando sozinho, começando a percorrer o acostamento da estrada que ligava seu bairro ao centro, como um criminoso fazendo algo errado.

A estrada por qual andava fora construída no meio das florestas de pinheiros, como quase todas as saídas de Twinbrook aliás, e servia de acesso aos moradores do pequeno bairro em que residia. Deste modo, poucos carros passavam por ali mesmo durante o dia. Menos ainda era o fluxo de pedestres.

Ele reduziu o passo para ter bastante tempo com seu doce e preparou-se para a primeira mordida na superfície crocante e açucarada… E então viu. Há uns quarenta metros, do outro lado da pista, e para seu total horror, o Palhaço segurando um punhado de balões na mão direita e acenando na sua direção com a esquerda.

 

─ Ora, ora se não é Neville Comedor de Bosta Longbottom? ─ a voz maldosa de Draco Malfoy surgiu em cena.

Atordoado, Neville olhou do Palhaço para sua outra fonte de desespero: o menino Malfoy e seus dois brutamontes, Crabbe e Goyle, se aproximando pela mata.

─ Ah não, ele já tá comendo! Desse jeito você vai explodir, rolha de poço! ─ Malfoy guinchou.

Neville, agora apavorado entre dois inimigos, porque aquele Palhaço não lhe parecia amigável em nenhum contexto, deixou o doce cair das mãos de tanto que os dedos tremiam e foi rapidamente cercado pelos três adolescentes mal intencionados. Uma rápida espiada por cima dos ombros de Draco e ele pôde ver que aquilo, o Palhaço, observava interessadíssimo a cena que se desenrolaria a seguir, mas sem ser notado pelos outros.

─ Ma-malfoy… olha ali… ─ Neville tentou alertar, apontando para o outro lado.

─ O quê, seu imbecil? Está de brincadeira comigo é? ─ Draco lhe deu um empurrão no ombro.

─ Ele tá com cara de bebê chorão ─ Goyle observou.

─ Ele tá com cara de que vai se cagar nas calças ─ disse Draco, fitando o garoto gordo com seus olhos zombeteiros.

─ Ele tá com cara de quem quer experimentar o corte do meu canivete ─ comentou uma quarta voz. Neville viu surgir por detrás de Crabbe, que já era alto, um menino diferente. Ele o conhecia de vista da escola, pertencia ao último ano, mas sua presença parecia ser tão ou mais ameaçadora quando a de Malfoy. Este garoto, que possuía boa aparência e um olhar gélido, abriu caminho entre os brutamontes Crabbe e Goyle e ficou frente a frente com Neville.

─ É isso aí Blaise, desse jeito você vai fazer esse gordão peidão chorar pra valer ─ Draco riu animado batendo a mão no joelho.

O tal Blaise ergueu o canivete e a lâmina brilhou afiada de encontro aos raios de sol. Ele encarou o objeto e, depois de uma longa análise ao corpo do menino acuado, disse:

─ Segurem ele.

Crabbe e Goyle seguraram Neville, cada um em um braço, e o acuaram na cerca que separava a floresta do acostamento.

─ Ergue a camiseta dele, Malfoy. Vamos deixar uma marca nessa banha rosada.

─ E nem pense em chorar, imbecil ─ Draco concordou, após um segundo de hesitação, parecia levemente contrariado por receber ordens do outro, e ralhou com a vítima ─ Eca, você tá nojento de suor, seu porco!

Por detrás de seus algozes e daquele misto de medo e humilhação, novamente sentindo o pavor enraizar-se em suas entranhas, Neville olhou para o outro extremo da pista. Agora o Palhaço havia soltado os balões coloridos, que flutuavam acima dele de um jeito anormal enquanto aquilo aplaudia animado com suas luvas brancas e fofas. E, para o seu terror completo, parecia que nenhum dos quatro escutava nada vindo daquela direção. Mais do que isso, nenhum carro passava pela via, ninguém caminhava pelos acostamentos, assim como nenhum passarinho cantava nas árvores ao redor. Os únicos seres vivos, além dos adolescentes, eram formigas-de-fogo começando a se aglomerar ao redor da bomba de doce de leite tombada na terra, para devorá-la.

─ Vai doer, então fica quieto para não entrar na sua barriga ─ Blaise ordenou a Neville antes de agachar-se sobre ele.

─ Eu acho que ele já perdeu o esfincter, Blaise! Olha a cara de idiota desse panaca ─ Draco caçoou.

─ Hoje não é sobre o que ele perderá, mas sobre o que ganhará.

─ Você vai mesmo cortar ele? ─ Crabbe perguntou, cauteloso.

─ Já estou ─ Blaise respondeu calmamente, enfiando a lâmina na barriga de Neville, a ponta entrando na carne branca e flácida acima do umbigo.

A dor invadiu Neville com a potência de um carro em alta velocidade e a fisgada de um ferrão na sola do pé. Embora Crabbe e Goyle não o segurassem com o mesmo vigor, ele tinha medo de se mexer muito para tentar se safar, porque a lâmina poderia entrar mais e machucá-lo mais. Entretanto não gritou. Fechou os olhos e rilhou os dentes e, por instantes, nem o Palhaço era importante. Apenas a dor. Blaise começou a subir com a lâmina na direção de seu tórax, um beiço sendo criado onde antes havia pele íntegra, na tentativa de formar a letra B.

─ Para com isso! ─ Draco bateu no canivete de Blaise e afastou-o. A barriga de Neville era um veio de sangue.

─ Está defendendo o gordão, Malfoy?

─ Ele… ele pode nos encrencar se ficar muito machucado ─ Draco rebateu ─ E quem autoriza o que será feito sou eu, não você, Zabini ─ disse autoritário.

Esse era o seu momento, Neville pensou. Bloqueando da mente a dor na barriga, o garoto Longbottom puxou os dois braços para trás e livrou-se de Crabbe e Goyle. Um segundo depois ele estava pulando a cerca que limitava a floresta, tombando barranco abaixo ao passo que se esforçava para desviar dos troncos de árvores.

─ ELE FUGIU! ELE FUGIU! ─ ouviu os meninos gritarem.

─ PEGUEM ESSE PORCO! ─ escutou a voz de Draco ordenar raivosa.

Neville não parou. Quando seu corpo terminou de rolar amortecido pela mochila e os arranhões dos pedregulhos e dos galhos ressequidos na terra não eram nada perto do seu instinto de sobrevivência, tudo poderia ficar para trás. Ele sabia que se fosse pego outra vez, seria machucado para valer agora, com o ódio inflamado pelo despeito dentro de Draco Malfoy.

Correu desembestado, tropeçando, levantando, desviando, se embrenhando mais e mais pela floresta fechada, os gritos de caça dos outros adolescentes ao seu encalço.

Ele não deveria ter entrado no mercado para pegar o doce, a questão toda nascera aí, se culpou. Os castigos aparecem quando desobedecemos as mães, porque era como se Malfoy e seu grupo o tivessem avistado em algum ponto de seu percurso e decidido esperá-lo no acostamento para atormentá-lo. Sem uma porcaria de uma bomba açucarada na mão e na cabeça, Neville teria mais atenção para saber que estava sendo caçado.

Na correria, um raminho o puxou pela mochila e ele quase caiu sentado.

─ ELE FOI POR ALI, POR ALI! ─ Crabbe berrou de algum lugar.

Respirando descompassado e sentindo a pulsação na garganta, Neville largou a mochila no mesmo instante e retornou a sua fuga. Pulou um tronco grosso de árvore, bateu o rosto contra outro tronco em pé, e prosseguiu obstinado arrancando o suor dos olhos e sentindo uma fisgada aguda no baço. Mesmo exausto se parasse não era possível prever o que fariam com ele.

─ A MOCHILA DELE, A MOCHILA DELE! ─ algum deles gritou atrás.

─ VAMOS CERCÁ-LO. VAI PELA DIREITA ─ Draco ordenou.

Neville correu mais, foi até onde suas pernas rechonchudas aguentavam dentro do uniforme escolar apertado e somente diminuiu o passo ao escutar o som de água vindo de algum lugar perto. Saindo por detrás de algumas árvores encontrou as margens do rio da cidade obstruindo todo o seu caminho adiante. Agora estava encurralado. Se retornasse para trás daria de cara com algum eles, se fosse pela direita ou esquerda também.

─ Te peguei, seu monte de bosta! ─ Draco exclamou vitorioso, saindo da mata e caindo sobre Neville como um cão feroz.

Neville se desequilibrou e tombou na água, Draco também, e os dois rolaram pelas margens do riacho se engalfinhando em chutes, socos e pontapés lançados ao ar.

─ ELE TÁ AQUI, AQUI NO ÁGUA! ─ Draco gritou para alertar os outros.

Neville, mais assustado do que nunca, acertou um soco no garoto para fazê-lo se calar. O som de carne contra carne foi alto.

─ AAIII!!! ─ Draco levou a mão ao nariz e berrou.

Encharcado, Neville aproveitou-se da distração dolorosa que causou em Malfoy e correu para as margens indo para a esquerda, novamente floresta adentro. Talvez, agora que machucou a valer o líder deles, a morte era algo certo quando capturado, mas tinha de tentar.

Vozes alteradas começaram a crescer ao fundo, a floresta proporcionava o eco vindo do riacho, e ele imaginou que os demais meninos chegaram para resgatar seu líder ferido. Sem olhar por cima dos ombros, subiu uma pequena ribanceira com velocidade impressionante e deu de frente para o cano de alvenaria imenso que significava o fim do esgoto da cidade. Os músculos fatigados e precisando muito de alguns segundos de descanso, refugiou-se ali dentro.

Bastou alguns passos a frente para Neville ver que o esgoto fechava-se numa grade, portanto não era possível mais avançar. Ele encostou a mão numa das barras enferrujadas e respirou fundo, recuperando-se, mas também avaliando se deveria fugir outra vez ou aguardar – e rezar – para ninguém encontrá-lo ali.

─ Achei você, Longbottom ─ os dedos grandes e fortes de Goyle se fecharam ao redor do pulso dele pelo outro lado da grade.

Neville ficou impressionado. Como Goyle passara para o lado de dentro do esgoto era sua dúvida, mas o medo também era enorme.

─ Ei! EI, ELE TÁ AQUI! ─ Goyle gritou pela grade para alertar aos outros virem pegá-lo.

─ Me solta! ─ Neville protestou, tentando se livrar do aperto potente do garoto maior.

─ A gente vai te cortar inteiro, você sabe ─ ele ameaçou.

─ Solta…

─ Você já era, lixo.

─ Ei, você quer brincar? ─ alguém chamou de dentro do esgoto.

Goyle, ainda agarrando Neville, olhou para trás. O som vinha do seu lado.

─ Quem tá aí?

─ Ora, que falta de educação ─ a voz falou num falsete ofendido e ritmado ─ Eu perguntei se você quer brincar, só responda, sim ou não.

─ Vai se fuder! ─ Goyle respondeu, encarando a sombra volumosa de um homem crescer do corredor principal. Estava muito escuro ali, mas a silhueta era mesmo de um adulto.

Neville forçou a mão mais uma vez e se livrou do agarro do adolescente, que parecia preocupado com a pessoa que o questionava.

 

─ Quem é você?

─ Alguém muito, muito solitário aqui dentro.

─ O que?! ─ Foi a última coisa que Neville ouviu Goyle dizendo na vida. A curiosidade era menor que a vontade de fugir, e o medo, este era soberano as outras duas. De alguma forma, ele sentiu que aquilo que estava falando com o outro, era algo ruim. Algo que o assombrou em sua casa e que bateu palmas do lado da rua assistindo ele ser cortado. Um minuto depois, de volta à sua fuga, teve a impressão de escutar um grito de dor ecoar pela mata.

 

***

─ Vocês ouviram isso? ─ Rony perguntou para os outros dois.

─ O que? Sua barriga roncando? Sempre ─ Hermione respondeu, observando os amigos mexerem na bicicleta dela.

─ Ei, quanta ingratidão ─ Rony reclamou ─ Estou aqui dando duro para arrumar o banco dela e é assim que me responde?

─ Você só está falando. Quem tá fazendo todo o serviço é o Harry.

─ Como sempre também ─ Harry confirmou, debruçado sobre a bicicleta, parafusando o apoio com um graveto afiado numa pedra para servir de improviso como chave de fenda.

O trio de amigos, postados no coração de uma clareira iluminada, havia decidido pedalar pela trilha as margens floresta para comemorar o fim do último dia de aula. Era um percurso bonito e desafiador este, e que eles só não realizavam mais vezes devido a demora para terminá-lo.

No transcorrer dos planos, contudo, o banco da bicicleta de Hermione trepidou sobre um amontoado de pedras e soltou-se da base. Agora, Harry e Rony, tomados pela ideia de que como eram meninos deviriam consertar, concentravam-se no problema.

─ Estou quase lá… ─ Harry comentou, ajeitando os óculos que escorregavam no suor do nariz.

─ Sério, ninguém ouviu?

─ Ouviu o quê, Rony? ─ Hermione perguntou impaciente. Na verdade, a garota estava quase tomando as rédeas do problema para si porque já fazia meia hora que os amigos tentavam sem sucesso.

─ Um barulho vindo da floresta. Alguém falando ou gritando, talvez.

─ Pode ser som vindo do acostamento lá em cima ─ ela deu de ombros pegando um punhado de pedras na mão ─ Pode ter passado pessoas conversando e o eco é inevitável. Você tem que lembrar que nós estamos numa floresta também. Há animais por aqui.

─ Humm, parecia humano, não sei.

─ Rony, deixa que eu me viro, por favor ─ Harry ordenou, impaciente.

─ Por que?

─ Eu disse pra você parar de inclinar a bicicleta, droga. Eu vou apoiá-la ali na árvore e termino isso de uma vez.

─ Nossa! Tá bem, então ─ Rony resmungou, revirando os olhos.

Hermione andou alguns passos entre as árvores repletas de líquens a sua frente, aprendera a pouco numa aula de biologia que quanto mais simbiose entre fungos e algas existisse nas cascas mais limpo era o ar, e andejou até as margens do riacho de Twinbrook. Parando em cima de alguns cascalhos para não molhar o tênis, começou a jogar as pedrinhas na água.

─ Esse não é o jeito certo de acertá-las ─ Rony opinou, seguindo-a e parando do seu lado com as mãos nos bolsos.

─ Hum… não sou boa nisso mesmo…

─ Hum… Você tá… tá triste? ─ ele quis saber vendo o rosto sério da amiga fitar a água límpida a sua frente.

─ Se a prefeitura construir a represa como tanto quer, isso aqui não vai mais existir. Esse lugar todo, sabe. Nem consigo imaginar quantas casas de pássaros e pequenos roedores há nesta mata e nem o que acontecerá com essas gimnospermas com mais anos que nossos pais juntos. São seres vivos também.

─ Gi–gino o quê? ─ ele coçou a cabeça, confuso.

─ Gimnospermas ─ ela repetiu após um sorrisinho discreto ─ Os pinheiros, Rony.

─ Aaaah, ah tá.

─ Você não lembra, não é?

─ Eu não manjo de árvores, não como você. Acho que eu nem sabia que você manjava delas também.

─ Não entendo. Elas foram citadas na aula de biologia desse semestre.

─ Ah, sim, sim. Sim! Lembrei ─ confirmou, não lembrando era nada.

─ Esse lugar é tão lindo, não é possível que acabe pela ganância de alguns imbecis.

─ Ei, você falou palavrão aí ─ ele apontou.

─ Não ligo ─ ela lançou mais pedrinhas no rio. Estas também afundaram de pronto.

─ Olha, Mione… não tá nada certo. Sobre as pedras, eu digo ─ atrapalhou-se nas palavras porque ela o olhou muito intensamente ─ Tem aquele pessoal que faz passeata, sinto que eles vão conseguir. Meu pai disse que esse prefeito é um frouxo ─ tentou consolá-la.

─ É, não sei. O meu diz que ele é um ganancioso.

Rony sentiu-se um pouco incomodado por ver o rosto preocupado de Hermione. Como um cara limitado nesse tipo de argumento, os tais papos cabeça como diziam os gêmeos, procurou fazer algo que estivesse ao seu alcance para animá-la.

─ Olha, vou te ensinar a lançar as pedras.

─ Não precisa ─ ela arregalou os olhos e olhou ao redor enquanto ele se aproximava.

─ É fácil, você vai ver ─ ele persistiu e, sem que se desse conta da proximidade que criava, pegou-a pelo braço e flexionou delicadamente seu pulso ─ O segredo é inclinar a mão desse jeito e mandar o arremesso o mais paralelo possível a água.

─ Tudo bem ─ ela umedeceu os lábios, de repente ressecados pelo toque do garoto ruivo em sua pele ─ Assim?

─ Mais um pouco.

─ De–desse jeito? ─ Pare com esse nervosismo, Hermione!

─ Isso, agora manda e não precisa ser forte, mas rápido. Entendeu? Rápido e rasteiro.

Um giro de pulso mais as instruções de Rony e o objeto rochoso quicou acima do riacho três vezes, antes de afundar. Rony aplaudiu. Hermione ficou impressionada e deu um pulinho de vitória.

─ Eu disse que era fácil ─ Rony comentou orgulhoso por vê-la sorrir.

─ Vou tentar de novo ─ ela animou-se.

─ ME SOLTA, SUA DONINHA BRANCA! ─ Harry gritou da clareira. Rony e Hermione largaram o que estavam fazendo e correram para descobrir o que acontecia com o amigo.

De volta a clareira, os dois se depararam com Crabbe e Draco acuando Harry contra o chão. Mais Crabbe do que Draco, já que o garoto parecia ter sofrido alguma coisa no nariz, segurando-o firmemente com a mão direita e falando fanho.

─ Se você viu o bolota é sua hora de sair com a cara inteira, Potter.

─ Vão pro inferno, vocês dois ─ Harry provocou tentando se levantar ─ E venha me enfrentar você mesmo, Malfoy!

Crabbe empurrou-o contra o chão numa força moderada e os óculos voaram de seu rosto. Draco não mediu esforços para pular sobre a armação e pisar nas lentes até se partirem.

─ Ei, seus otários! ─ Rony exclamou indignado, surgindo da mata e partindo para cima dos adolescentes.

─ Ah, tem mais deles ─ Draco comentou, surpreso.

─ Sim, tem e você acabou de quebrar os óculos do meu amigo.

─ É mesmo? Nem reparei ─ debochou.

─ O que houve com sua voz… e com a sua cara? Andou caindo de cara na própria arrogância, Doninha? ─ provocou Rony, ainda avançando.

─ Era o que eu estava dizendo para ele ─ Harry endossou, ficando em pé e apertando os olhos. Enxergava rostos em borrões quando sem seus óculos.

─ Olha como fala com o Draco, pobretão encardido! ─ Crabbe avançou sobre Rony e o pegou pela gola da camiseta erguendo-o do chão.

─ Falo como quiser ─ Rony cuspiu na cara do grandalhão ao mesmo tempo que Harry pegava o graveta mais próximo do seu alcance de visão e batia nas panturrilhas daquele Golias.

Cheio de raiva, Crabbe deu um coice para trás para afastar Harry e, com a mão livre, levantou-a para acertar Rony em cheio no rosto… mas levou uma pedrada na têmpora direita antes de acertar o outro menino.

─ Ai!

─ Saíam daqui agora ou vou denunciá-los para a polícia ─ Hermione rosnou entre os dentes, mais um punhado de pedras prontas para serem arremessadas contra os inimigos.

Crabbe largou Rony, que se desequilibrou mas não caiu.

─ Tem essa vagabunda também, esqueci ─ Draco revirou os olhos, cheio de desdém.

─ Vou te falar quem é vagabunda ─ Rony estralou os nós dos dedos.

─ Saiam, saiam! ─ Hermione acertou mais duas pedras contra os jovens.

─ Ei, para com isso, sua maluca ─ Draco ergueu o braço ─ Isso dói!

─ Se fosse para não doer eu não acertaria. Agora, saíam!!!

─ Olha aqui, Potter e companhia ─ Draco ainda conseguiu proferir, indo rapidamente na direção das florestas utilizando o amigo grandalhão de escudo ─ Vocês vão pagar por isso, inclusive você, garota feiosa.

Sem a Doninha e seu capanga por perto, o trio começou a se recompor. Harry pegou os restos do óculos e lamentou o fim trágico que tiveram. Rony estufou o peito e ficou olhando a trilha, esperando um estratagema covarde dos outros dois para retornar na vantagem e Hermione encheu os bolsos do uniforme escolar de pedras antes de ir ver como Harry estava.

─ Ele chegou a te machucar?

─ Que nada, só me empurrou mesmo. O Malfoy que tava machucado.

─ O que será que houve? ─ Mione perguntou.

─ Não sei.

─ E por que Goyle não veio junto com esses dois? Eles são praticamente um casal de três ─ Rony fez seus apontamentos.

─ O que queriam, afinal? Draco queria te forçar a falar algo… Esses tipos não costumam ficar pela floresta.

─ Eles queriam aquele que estavam perturbando ─ disse Harry ─ Ron, eles se foram mesmo?

─ Não tô vendo mais ninguém, a Mione os intimidou de verdade ─ o ruivo confirmou provocando um sorriso jubiloso na amiga.

─ Ótimo ─ Harry apertou os olhos na direção de um emaranhado de tronco de árvores, alguns metros dele ─ Nev, você já pode sair.

Curiosos, Hermione e Rony ficaram encarando a direção de onde Harry chamara e viram Neville Longbottom espremer-se para fora de dois ramos grossos de pinheiros que se cruzavam. O garoto que saiu de lá parecia lívido, mas o que mais impressionava em sua aparência era a camiseta branca tingida de vermelha na altura do abdômen.

─ Meu Deus! Você está machucado! ─ Hermione correu ao socorro do garoto, que de tão extenuado sentou-se com brusquidão sobre o chão.

─ O que é isso? ─ Rony olhou confuso para Harry.

─ Eu estava terminando de arrumar a bicicleta quando ele correu alucinado por aqui. Mostrei a ele um caminho bom para se esconder e, segundos depois, Draco e Crabbe vieram igual dois abutres.

─ Obrigado, Harry ─ Neville agradeceu, permitindo, apesar da vergonha de expor a barrigona, que Hermione inspecionasse o ferimento.

─ Eles fizeram isso com você? ─ ela estava horrorizada.

─ Humrum.

─ Covardes de uma figa! ─ Rony espumava.

─ A gente precisa dar um jeito nisso. Está… está muito sujo ao redor. Limpar com solução fisiológica e passar antisséptico.

─ Eu não quero que a minha mãe veja ─ Neville pediu.

─ Você vai precisar de uma camisa nova, cara ─ Harry comentou.

─ E não sei se é prudente esconder isso dos seus pais ─ disse Hermione.

─ Por favor, pessoal. Draco vai ficar mais puto ainda se eu envolver meus pais nisso.

─ Ainda assim e-

─ Tá bem ─ Harry se decidiu tomando a liderança da coisa ─ Nós vamos dar um jeito nisso. Mione, do que você acha que ele precisa agora?

─ Harry…

─ Mione, por favor.

─ Tá bem ─ ela concordou resignada ─ Preciso de esparadrapos, gazes, um frasco de solução fisiológica e algum antisséptico com antibiótico na composição.

─ Ótimo ─ o garoto assentiu ─ E você, Rony, cadê aquele trocado que sua mãe deu para nosso lanche de hoje a tarde?

─ Ah, meu dinheiro? ─ o ruivo pareceu hesitar por meio instante com os poucos trocados que chegavam para ele, mas então anuiu enfiando a mão no bolso da calça aparecendo com algumas moedas ─ Está aqui.

─ Eu vou na farmácia buscar as coisas e depois passo em casa para pegar uma camiseta nova. Vai ficar um pouco apertada, Nev, mas acho que você consegue inventar alguma desculpa para sua mãe quanto a isso.

Neville concordou com a cabeça.

─ Espera, você vai como? Não está enxergando direito… ─ Rony o barrou.

Harry colocou seu óculos em frangalhos, a lente trincada em vários pontos, e respondeu:

─ Eu consigo me virar assim e, além do mais, sempre fui o mais rápido com a bicicleta.

─ Escuta aqui Harry… Eu posso ir.

─ E quem vai cuidar da Mione e do Neville caso eles voltem? Um cara míope?

─ Então eu vou ─ Hermione se prontificou, ficando em pé.

─ Vai pegar a camiseta pro Neville na minha casa também? Se as minhas ficarão apertadas, imagine as suas.

─ Ah é, mas…

─ Gente, eu volto logo ─ falando isso, Harry pulou na sua bicicleta e pedalou o mais rápido que pôde dali.

***

 As horas nunca paravam de andar e o sol não mais cobria o ponto mais alto do céu. Após o horário do almoço, metade de Twinbrook fechava seus comércios e se dedicava a um delicioso cochilo, logo as ruas não estavam tão cheias de carro.

Tão cheias, porque alguns veículos não descansavam jamais.

Harry subiu o barranco, saiu da mata com a bicicleta nos braços e foi contornando a margem direita da estrada sem perceber o que vinha. Um caminhão de perecíveis passou dardejando ao seu lado e as pernas do garoto tremeram fazendo-o perceber que ele deveria pedalar mais forte para vencer o deslocamento do vento.

Esta seria a primeira vez de muitas outras, que Harry sentiria a presença do Opositor da Coisa. Do mesmo modo que uma força maligna dominava a cidade e seus habitantes, algo bom margeava em um paralelo contínuo.

Não era Deus, porque não parecia onipresente nem mesmo onipotente, mas vinha em doses providenciais como aquela da tarde de julho.

Harry desceu para o primeiro cruzamento do centro como uma bala de canhão. O semáforo estava aberto para os veículos que vinham do outro lado, mas estranhamente todos os motoristas que aguardavam daquele lado ficaram apáticos em pensamento íntimos, não arrancando de imediato.

No quinto quarteirão, o garoto acionou mais uma marcha de sua bike e subiu com a força que suas pernas não costumavam ter, os joelhos magros batendo contra o ferro, enquanto vencia a ladeira. Para descer, valeu-se da mesma rapidez de outrora, nunca enxergando bem através de seus óculos rachados.

Alguém buzinou ao atravessar o terceiro quarteirão, mas ele realmente não tinha tempo de se desculpar. Os amigos esperavam e os amigos corriam risco.

Quem estivesse no próximo cruzamento, a direita, correria o risco de testemunhar a maior velocidade que um adolescente com três graus de miopia em cada olho, montado sobre uma bicicleta simples da promoção de fim de ano, conseguia chegar. Ele chegou a alguns invejáveis quilômetros por hora e por pouco não viu seu fim na lataria do carro de Debbie Anderson, que como era nova de carta, deixou a embreagem morrer e engasgou segundo antes da possível colisão fatal.

Por sorte, isso sim era sorte, Harry pensou, o Sr. Filcher, um desses que batia as portas do comércio para quem quisesse entrar na sua hora de cochilo, resolveu não fechar a farmácia naquele dia.

Harry largou a bicicleta de qualquer jeito e entrou esbaforido com os pedidos de Hermione na cabeça. Por sorte os trocados de Rony deram conta de todos os itens solicitados pela amiga.

***

Os amigos ficaram muito surpreendidos em ver Harry voltando em menos de uma hora. Nesse meio tempo, Hermione e Rony já haviam levado Neville para o riacho e ajudado o garoto a se lavar um pouco nas margens.

─ Mas você foi como? Voando?

─ Por aí, Ron ─ Harry sorriu satisfeito com sua marca insana sobre a bike ─ Tome, Mione ─ entregou o saquinho albergando os produtos farmacêuticos para ela.

Mione trabalhou agilmente na ferida de Neville e ele disse, entre um lamento e outro, agora o corte doía valer, para os três:

─ E-eu… quero agradecer todos vocês.

─ A mim não precisa ─ Hermione disse muito séria, terminando de cobrir o corte.

─ Nem a mim ─ Rony deu de ombros como se isso não estivesse em pauta ─ A gente precisa de um motivo pra bater no Malfoy, as vezes.

Os quatro riram. A seguir, Harry tomou a palavra:

─ Olha, o segredo pra se safar desse covarde é não andar sozinho. A partir de agora, se você quiser, pode estar com a gente na saída da escola ou em qualquer outro momento.

─ É sério? Vocês não… não se incomodariam?

─ Aqui nós não somos os mais brilhante, tirando a Mione claro, mas damos o nosso jeito. Se não se importar conosco, bem-vindo ao Clube dos Perdedores.

─ Eu adoraria ─ Neville aceitou, mais que feliz.

─ Então tá, agora me explica como conseguiu quebrar o nariz do Draco? ─ era a pergunta que corroía Rony.


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