Sementes do Pecado escrita por Astus Iago


Capítulo 1
Sementes do Pecado




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/729682/chapter/1

Madre Madeleine era uma grande amante de cavalos. No convento onde morava e exercia o seu abençoado eremitismo, era responsável pela limpeza de um pequeno estábulo onde cuidava de Grenouille, seu acastanhado corcel. Sua crina loira distinguia-o dos restantes cavalos do estábulo. Não eram muitos, apenas quatro ao todo. Mas Grenouille (ou Gren, como a freira lhe chamava) era sem dúvida o favorito. Madeleine tratava-o todos os dias, limpando-o duas vezes e alimentando-o três a cada vinte e quatro horas, como se de uma pessoa se tratasse. Para ser sincero, acredito que a freira preferia aquele cavalo a qualquer pessoa do seu universo.

A sua monótona rotina poderia ser traduzida na seguinte lista: logo após acordar, rezava em frente ao altar de uma das três capelas do colossal convento; de seguida, para além de limpar o estábulo e os cavalos, alimentava Grenouille; depois, comia, alimentava o seu corpinho roliço; à tarde, rezava uma vez mais antes de alimentar novamente o seu cavalo; ao anoitecer, comia mais um pouco, limpava novamente o cavalo e dava-lhe mais cenouras para este mordiscar; terminava o dia rezando uma última vez. Note-se que cada reza era processada numa capela diferente, em frente a um distinto altar. Rituais religiosos. Era impossível para ela quebrar as normas do seu divino senhor.

Só que, um dia, tudo mudou. Numa noite de intensa trovoada, ia Madeleine a meio da sua última oração da noite quando se viu interrompida por um fulgurante relâmpago. A força da natureza, sob a forma de um vil rasgo de eletricidade estática, atingiu precisamente e sem misericórdia o diminuto estábulo. Exclusivamente composto de madeira, pouco demorou a incendiar. A madre notou as chamas e o fumo pelas janelas da capela.

Não ousaria deixar as orações a meio, pois não? Ou ousaria? A vida do seu cavalo favorito estava em risco, o único ser que desejava proteger com toda a sua amizade. A misantrópica freira não tinha mais família, apenas aquele acastanhado animal. Mas jurou lealdade ao seu deus. Jurou que nunca lhe falharia. Prometeu-lhe a vida. Ofereceu seu corpo e alma aos seus divinos julgamentos.

Tinha de salvar Grenouille. Tinha de o fazer. Desalmada, correu pela vida do seu amado corcel. Felizmente, chegou a tempo. Graças à sua disponibilidade e atenção, todos os animais puderam ser salvos. O estábulo, ligeiramente destroçado, demoraria um pouco a ser restaurado. Madeleine até se voluntariou para auxiliar nas obras. Todo o seu valor e paixão pelos cavalos acabou por ser inevitavelmente reconhecido pelas suas colegas de clero. Condecoraram-na por isso. Fizeram uma festa em sua honra. Todos estavam felizes. Exceto deus.

Madeleine passou a dispensar algum do tempo que antigamente era dedicado à oração e à prece para assistir na reconstrução do cubículo onde os pobres animais habitavam. O trabalho durou uns poucos meses. O resultado foi um estábulo muito maior e sofisticado que o original. Muito mais cómodo e apto a satisfazer as necessidades básicas dos seus peludos ocupantes. Mais uma festa foi feita no dia da inauguração. Tudo isto feriu ainda mais os sentimentos do celestial senhor. Trocado por um conjunto de organismos imundos. Seres irracionais e impuros. Era uma desonra, uma tirania. Algo tinha de ser feito. Uma punição adequada era exigida.

Sendo assim, numa determinada noite, uma nova tempestade teve origem. Coincidentemente, um raio fulminou outra vez o amaldiçoado estábulo. Desta vez, Madeleine nem pensou duas vezes. Limitou-se a correr em direção ao edifício de madeira polida e encerada.

Inexplicavelmente, desta vez não havia incêndio. A eletricidade não havia exterminado a construção como fizera anteriormente. Agora, o resultado fora outro. Enfeitando o chão rico em feno dourado do requintado estábulo estavam os caídos e ensanguentados cadáveres de três dos cavalos, suas vísceras gordas e gelatinosas cobrindo os corpos uns dos outros num quadro de uma mórbida harmonia. Um deles, o de uma égua de cor esbranquiçada, era brutalmente violado pelo único macho sobrevivente. Ainda gemia de dor a cada perfuração do seu ventre.

Grenouille virou-se. Seu rosto bestial mudara. Suas feições assemelhavam-se às de um humano comum. A boca repleta de dentes aberta numa fenda gotejante de saliva. O olhar assassino e pérfido, vidrado, travara sua atenção no corpo obeso da madre sua dona. Saltou sobre ela. Esta caiu entre as quatro musculadas patas da besta. Não havia qualquer possibilidade de fuga. Os intentos do demoníaco animal estavam claros para ela. Trocara a falecida égua por uma presa melhor. Corrompê-la-ia. Faria dela o que muito bem quisesse...

Na manhã seguinte, a madre Madeleine acordou dorida, acreditando ter-se tudo tratado de um horrível pesadelo. Só segundos depois, ao tentar-se levantar, é que repararia no seu ventre inchado e na cabeça de um esquelético potro emergindo de entre as suas despidas pernas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sementes do Pecado" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.