Intrinsically escrita por Jay L


Capítulo 17
Capítulo 17


Notas iniciais do capítulo

A gente tarda, mas não falha kk
Gente, antes de tudo, esse capítulo foi particularmente desafiador, pois é um retorno ao passado, traumas não superados, uma outra fase da vida da nossa Katniss. É com o coração satisfeito que lhes entrego esse capítulo, com a certeza de que fiz o meu melhor para apresentar a personagem sob uma ótica diferente.
Apreciem o capítulo e até mais :D



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A Katniss de cinco anos era muito sapeca. Corria de calcinha pela rua, subia nas árvores mais altas, gastava a maquiagem da mãe nas bonecas, roubava o triciclo do Peter, o vizinho encrenqueiro. Para isso, Katniss escalava a cerca do quintal da casa dele subindo na casinha de cachorro dos Foster, a família do lado. Amora, a rotwailler de olhar preguiçoso e jeito manso, a observava da área de trás, esparramada como um sapo sobre o piso de madeira. Katniss agradecia-lhe a gentileza com biscoito de polvilho, o que Amora adorava.

Num dia particularmente ruim, depois de perder na pira-pega, resolveu que andar no triciclo roubado seria o único consolo. Amora não estava no lugar de sempre, nem em lugar nenhum que pudesse ver. Katniss, então, guardou o biscoito no bolso do short e apoiou o pé esquerdo no telhado vermelho. Impulsionando o corpo para cima, ouviu o movimento debaixo do corpo, vindo de dentro da casinha. Amora, que dormia lá, disparou latindo, assustando a menina, que escorregou e caiu por cima do pulso. O estalo veio antes do grito.

Mary Foster surgiu na porta do quintal, os cabelos bagunçados e a blusa amarela de flanela desalinhada, seguida do marido, John Foster, cujos dedos trabalhavam no zíper da calça aberta. Katniss não se mexeu, a bochecha amassada na grama queimada. Formigas picavam-lhe as pernas e Amora, reconhecendo-a finalmente, passava a língua áspera no braço dela. Sr. Foster a carregou no colo para casa.

Haymitch, profundamente preocupado, agradeceu ao vizinho e gritou por Effie. A mulher secava o cabelo, e não deu bola nem quando o homem apareceu na porta do quarto, com uma Katniss suja de terra e grama e um pulso muito inchado, num ângulo estranho, nos braços. O latejar começaria em breve, e a menininha descobriria a pior dor da sua curta vida até então.

Effie se deu ao trabalho de, pelo menos, desligar o secador e, olhando para o pulso de Katniss, disse:

— Espero que tenha quebrado. Só assim pra aprender a se comportar. Estava fazendo o que, hein? Invadindo o quintal alheio de novo?

As lágrimas que a garota segurava vieram com tudo, misturando-se à terra no rosto. Haymitch ergueu a voz para a esposa, chamando-a de coisas indizíveis. Katniss desconhecia metade das palavras, seus ouvidos destreinados captaram uma ou outra que julgaram mais fáceis. Fútil, desprezível, medíocre. Você não ama a sua filha? Depois, o pai a levou ao hospital, sozinho.

Durante o trajeto, a dor engolfou qualquer desejo de ter a mãe consigo. Haymitch tentava confortá-la da melhor maneira possível, a tarefa complicada por estar dirigindo. No banco de trás, ela se enrolou em si mesma, aninhando o pulso no peito.

Naquela noite, deitada na sua cama, Katniss recebeu o carinho do pai, que assinou no gesso uma dedicatória que fez a menina gargalhar: Estrelinha que caiu na terra e quebrou uma pontinha. Effie foi ao quarto mais tarde, dando a Haymitch o cartão de visita de uma clínica fisioterapêutica e uma fatia de bolo à Katniss. Beijou a filha rapidamente na bochecha e saiu. Haymitch a abraçou pelo tempo em que ficou acordada e só partiu de manhã.

**

Aos sete anos, Katniss sabia arrumar o próprio cabelo, ou tentava. Aproveitava o comprimento com tranças e marias-chiquinhas, que aprendeu olhando Hazele, mãe de Gale, seu novo amigo do bairro, fazer em Pose, sua filha caçula.

Katniss puxou o cabelo bem no alto, o braço cansando depois de tanto tempo erguido. Ela pescou um punhado da pomada capilar de Effie, que roubou do quarto dos pais, e assentou os fios rebeldes do rabo de cavalo. Não estava bom. Desse jeito, jamais ficaria pronta e bonita a tempo para tomar sorvete com Gale.

Há pouco tempo, Katniss percebra que gostava do menino, enquanto assistiam à “Procurando Nemo” comiam pipoca com brigadeiro na sala da casa dele. No meio do filme, Katniss se deu conta de que Gale ficava bonitinho com as bochechas rechonchudas cheias de pipoca, num autodesafio de colocar quantas pudesse na boca. O brigadeiro sujava os dedos e mãos das crianças, além do rosto de Gale. O coração de Katniss fez uma coisa engraçada e que a assustou, acelerou e mandou um friozinho gostoso pro estômago. Ela achou que não conseguiria pôr mais nenhuma pipoca para dentro.

Daí, toda vez que se encontravam, ela ficava toda estranha. O coração não era mais o mesmo, o estômago revirava, as mãos suavam. Gale reparou esse último detalhe ao segurar suas mão durante a ciranda.

— Eca, Catnip, - ele a chamava assim porque, ao se conhecerem, entendeu o nome dela errado e não consertou nem quando descobriu o jeito certo – sua mão tá nojenta.

Envergonhada, ela correu pra casa e lavou as mãos na pia do banheiro. Não adiantou muita coisa, pois a palma suou de novo assim que ela pôs os olhos no garoto.

Eles tinham marcado de ir à sorveteria, duas esquinas depois do quarteirão em que moravam, juntos, já que, finalmente, os pais permitiram que fossem além da esquina de casa. Mas o cabelo de Katniss não cooperava nem um pouco! Ela arrancou o amarrador, as mechas escuras caindo nas costas.

— Katniss vo... – Effie se interrompeu na porta do quarto da filha – Essa é a minha pomada?

Katniss não escondeu rápido o suficiente o recipiente atrás do corpo. Effie entrou no cômodo e apanhou o produto.

— Já lhe disse pra não pegar minhas coisas sem pedir.

— Desculpa, mamãe, eu só queria deixar meu cabelo bonito igual o da senhora.

Effie pegou uma mecha do cabelo de Katniss.

— Ah minha, filha, se tenho algo a lamentar a seu respeito, além do comportamento, é a cor do seu cabelo. Uma pena que não é loiro, seria tão mais bonito. Venha aqui, vou fazer uma trança.

A migalha de atenção bastou para encobrir o efeito da crítica em Katniss, perdida na satisfação de ter a mãe penteando-a carinhosamente. Os dedos de Effie, leves e macios, seguravam as madeixas, deslizando o pente nos fios embaraçados. Ao final, Katniss ostentava uma traça elaborada e bonita, repousada nas costas até a cintura.

Ela agarrou o pescoço da mãe num abraço e correu para encontrar Gale. Durante o passeio, a barriga de Katniss se encheu de borboletas que, pela primeira vez desde de que apareceram, nada tinham a ver com um menino.

**

O vendedor se negava a vender a tinta de cabelo à Katniss. A garotinha cruzou os braços em teimosia e fincou o pé no chão, o dinheiro amassado sobre o caixa da farmácia. Dera um trabalhão arrancar os dez dólares do cofrinho, teve que manobrar o dinheiro com a pinça de sobrancelha da mãe e puxar pela abertura, quase rasgando a nota no processo. E agora o homem simplesmente não queria lhe dar a tinta.

Outro dia, Katniss estava na farmácia com o pai e, perambulando nos corredores apertados, achou o que seria a salvação da sua aparência. Finalmente a mãe lhe acharia linda, quem sabe até a levaria ao shopping com ela e faria mais penteados no seu cabelo. Tudo dependia daquela tinta loira, e a compreensão se apoderou de Katniss com a força de dez homens.

O plano era bem simples. Pegaria dez dólares do porquinho da mesada e compraria a tinta loira na farmácia. A embalagem trazia uma linda mulher, seus cabelos loiros vívidos e brilhantes, o tom bem parecido com o de Effie. “Você mais radiante”, prometia o rótulo.

Katniss sabia ler muito bem, era capaz de seguir as instruções se prestasse atenção, então tudo daria certo. O único empecilho era o homem do caixa.

— Cadê seus pais, mocinha?

— O que te interessa? – respondeu ela mais e mais irritada.

— Escuta, dá o fora daqui. Não vou te vender essa tinta.

Katniss bufou e encarou o homem, a tinta ainda bem segura nas mãos, o ventilador do teto balançando o dinheiro no balcão. Seu plano era perfeito, aquele chato não estragaria tudo.

Katniss correu. Alguém entrava na farmácia bem na hora, abrindo a porta, o que facilitou a fuga. O homem do caixa gritava e tentou ir atrás dela, mas a menina tinha uma boa margem de vantagem e conseguiu escapar com folga pelas ruas. Tecnicamente, Katniss não roubara, havia deixado o dinheiro sobre o balcão, a tinta era sua por direito.

Quando estava a uma distância segura, Katniss diminuiu o ritmo e abraçou a caixa que continha a tinta. O rosto dela se rasgou num sorriso enorme. Effie a amaria depois disso.

**

Ela estava muito encrencada. Katniss fechou os olhos que ardiam, o cheiro forte da amônia contaminando o ar abafado do banheiro, piorado por causa da porta fechada. Seu pai tirava um cochilo no quarto e Effie havia saído com alguma amiga, o que facilitou o trabalho de Katniss.

A garota puxou o ar pela boca, a respiração engolfada pela química do produto. A coloração cobria as mechas disformemente, alcançando a nuca dela. Katniss torceu o nariz mais uma vez. Ela não precisava ser cabelereira pra saber que fazia uma bagunça sem tamanho, a promessa de cabelos radiantes como os da mãe sendo a única motivação para continuar.

Segundo as instruções, devia deixar agir por vinte minutos, só que ela não tinha um relógio pra ver as horas. Cuidadosamente, livrou-se das luvas e as jogou na pia, por cima da ampola de tinta. Pé ante pé, andou até a sala, parando em frente ao relógio de parede. Eram dez e nove.

Segurando a vontade de coçar a cabeça, a garota refez o caminho para o banheiro, onde pretendia ficar trancada até achar que se passara o tempo.

Ela parou.

            Haymitch bloqueava a porta do banheiro, espantado ante a visão de Katniss com o cabelo porcamente coberto de tinta e os olhos vermelhos.

— Meu Deus, meu Deus... – ele dizia, e Katniss recuou dois passos.

Seu pai a faria tirar a tinta antes que ficasse bonita, ela tinha certeza! Haymitch avançou, percebendo a intenção da filha, mas ela estava mais perto da saída.

Katniss disparou para fora e alcançou a calçada antes que o pai a puxasse pelo braço. O que se seguiu foi o completo caos. O homem brigava com ela enquanto a levava pra dentro de casa.

— Katniss, sinceramente, não sei o que fazer contigo. Que loucura foi essa? Você podia ter ficado careca!

Haymitch telefonou para Hazelle, que era cabeleira, e explicou a curtas palavras o que se passava. Uma hora depois, seu cabelo batia no pescoço, mechas e mechas manchadas de tinta loira caídas no chão do salão de Hazelle, junto com as lágrimas dela e quaisquer chances de a mãe amá-la.

Effie achou tão absurdo que não disse nada. Aparentemente, a situação não valia o esforço.

— Quando aprender a ter juízo, pode voltar a se considerar minha filha – foi a única coisa que falou.

— Cala a boca, Effie! Isso lá é coisa que se diga? – esbravejou Haymitch, pondo-se à frente de Katniss, encolhida no sofá, tentando protegê-la do impacto das palavras.

— Desculpa, mamãe. – murmurou a menina.

A mulher lançou-lhe um olhar duro e saiu, os saltos clicando no chão.

**

Effie arrastou a pesada mala pela sala, a bolsa vermelha escorregou do ombro coberto por um cardigã creme. Katniss correu atrás da mãe e agarrou-lhe a cintura.

— Mamãe, pra onde a senhora vai? Quero ir também.

Haymitch apareceu no cômodo e tentou puxar a filha, mas a menina mantinha braços de ferro ao redor da mãe, que tentava se desvencilhar do aperto da melhor forma.

— Katniss, querida, preciso ir, por favor. – pediu a mãe com voz macia, desprovida de tristeza.

Será que ela não sentiria falta dela? Katniss pensou, fechando os olhos com força. As últimas semana tinham sido esquisitas. Os pais mal se falavam, Effie mal falava com ela, somente Haymitch interagia, embora estivesse com ar distante. Katniss encontrou refúgio nesses dias de ausência afetiva na casa de Gale. Ficava lá depois que saía da escola e só voltava para casa depois do jantar. Haymitch sorria ao vê-la, lhe dava um beijo na bochecha e a colocava na cama. Effie permanecia trancada no quarto, quando não, com alguma amiga na rua.

Numa das noites em que chegou em casa, Katniss ouviu vozes alteradas do quarto dos pais.

— Você tem uma filha, Effie! Já estou acostumado a não receber nada de você, mas e a Katniss? Aquela garotinha te adora e você não dá a mínima! – o pai vociferou.

Katniss se encolheu junto à parede do corredor, assustada com o tom de voz dele.

— De todas as coisas que eu te dei, ela é a que eu mais lamento. – Devolveu Effie.

Um silêncio de doer os ouvidos recaiu sobre a casa. Katniss, ensurdecida pelo latejar da própria pulsação, não ousou respirar.

Outro noite, Haymitch leu a história da Branca de Neva para ela. Teve uma parte em que o espelho disse à rainha má “Lamento, mas a Branca de Neve se tornou a mais bela” e Katniss perguntou:

— Pai, o que é “lamento”?

O homem voltou os olhos para o teto, pensativo, até que respondeu, olhando para ela:

— Sabe quando tivemos que cortar o seu cabelo por causa da tinta?

Ela acenou com a cabeça.

— Pois é, fiquei triste por isso, por ver você chorar. Lamentei o que aconteceu, entendeu?

Katniss assentiu, iluminada pelo conhecimento recém adquirido. Ela amava o jeito que o pai explicava as coisas, sempre com um exemplo prontinho e que facilitava tudo.

Então, quando Effie disse que lamentava por ela, Katniss ficou confusa. Lamentar era ficar triste. Lamentar era ruim. Por que a mãe a lamentava?

— Essa foi a coisa mais horrível que você disse. – Haymitch finalmente falou, a voz pesada e áspera – Não entendo o que ainda tá fazendo aqui. Você não liga pra esta família, o que tá esperando?

Katniss ouviu passos vindo na direção da porta e se enfiou às pressas no próprio quarto. Em alguma parte da casa, uma porta se fechou com muita força.

Haymitch arrancou a duras penas a criança de Effie. Um carro vermelho aguardava no meio-fio, o porta-malas aberto. A loira levou a mala pelo restante do caminho e um homem colocou o objeto no carro. Antes de entrar no veículo, Effie teve a presença de espírito de olhar para trás e dar o menor dos sorrisos à filha.

— Mamãe, volta, por favor – implorou a menina – Desculpa meu cabelo não ser igual ao seu. Prometo que vou pintar quando eu for grande.

Foi a gota d’água para Haymitch, o fim. Ele puxou Katniss pela mão, que resistiu, chorando copiosamente, e a abraçou. Ele tentou, Deus sabe o quanto tentou, ser o bote salva-vidas da sua garotinha, ela se afogava em profunda tristeza e ele só queria poupá-la da dor.

Katniss voltou os olhos chorosos para a rua vazia.

— Por que ela não fica, papai? Eu posso ser uma filhinha mais obediente. Nunca mais subo nas árvores, nem roubo a bicicleta do Peter, vou comer minha comida todinha sem reclamar, juro...

O homem não pôde evitar um tremor. Seu coração estava quebrado, e o de Katniss, despedaçado em caquinhos no chão da entrada. Ele não sabia se seria capaz de um dia remendá-lo.

**

— Sr. Everdeen, estou preocupada com Katniss – disse a pedagoga do ensino primário.

Haymitch passou a mão no rosto, os pelos da barba que crescia espetando a palma. Ele engoliu um bocejo. A noite de sono fora péssima. Passou da conta na bebida na noite anterior, chegando em casa pra lá de meia noite, além de ter acordado cedo pro trabalho. Katniss, da porta do quarto, assistiu –o cambalear pela casa sob um equilíbrio parco e reflexos duvidosos. Viviane, a babá, tinha acabado de ir embora, lançando olhares desconfiados e reprovadores em sua direção.

— O que aconteceu com ela? – indagou cansado, as pálpebras pesadas de sono.

A mulher (Cíntia?) ajeitou a postura na cadeira e se inclinou para frente, apoiando os antebraços na mesa.

— Ela anda muito distraída, não participa das atividades recreativas e de classe, se isola dos colegas – ela fez uma pausa, talvez esperando alguma reação de Haymitch. Para seu crédito, ele balançou a cabeça.

— Hoje, Katniss causou um tumulto no playground durante o intervalo – continuou a pedagoga – Ela empurrou um garoto de cima do escorregador.

Isso, ao menos, chamou a atenção de Haymitch, que ergueu as sobrancelhas, surpreso. Katniss não era dada à violência.

— E.. Como isso aconteceu? – Ele sentiu que aquela não era a pergunta certa, mas foi a que saiu – Por que?

A mulher tirou os óculos e comprimiu os lábios, como se explicar a situação exigisse certo esforço.

— Aparentemente, Julian, o menino que foi empurrado, disse que a mãe de Katniss foi embora porque não gostava dela.

Haymitch enrijeceu, em parte por saber da fragilidade da filha, em parte por saber que o menino, ainda que infeliz no comentário, não estava errado. O pomo de Adão subiu e desceu, o gosto amargo da bebida se insinuou na língua. Haymitch engoliu a saliva.

— Eles estavam na fila para descer o escorregador e Katniss o empurrou.

— O garoto está bem? – perguntou por perguntar.

— Bem – ela franziu a testa – Julian foi levado à enfermaria. Parece que quebrou o tornozelo.

Haymitch soltou um palavrão baixinho e encarou a mulher.

— Quero ver minha filha.

Ela ajeitou a plaqueta caída com seu nome sobre a mesa. Cíntia Morales.

— Sr. Everdeen. Estou muito preocupada com Katniss – repetiu e Haymitch a olhou com cara de “você já disse isso” -  Temo que o senhor não tenha entendido a gravidade da situação.

Haymitch esperou. A mulher mexeu no colar de pérolas negras no pescoço e hesitou. Ele se preparou para ouvir o que sabia que ouviria.

— Estou ciente de que sua esp... – ela se interrompeu – A mãe de Katniss, foi embora. Dadas as circunstâncias, temo que o emocional da sua filha esteja comprometido. Sr. Everdeen, Katniss precisa de ajuda.

Ele fechou as mãos em punho e trincou os dentes.

— Que tipo de ajuda?

Cíntia respirou fundo e abriu uma pasta amarela que estava na mesa, entregando um papel a Haymitch.

— Esse é o programa de psicologia infantil que nossa instituição oferece – explicou a mulher. Haymitch sequer piscou – Dr. Wallis é um excelente profissional. Seria bom para Katniss ser acompanhada por alguém capacitado em traumas emocionais.

Trauma. A palavra ficou repetindo na cabeça dele, tão maldita e infeliz. Trauma. Sua filha, a que jurou proteger do mundo, traumatizada pela pessoa que mais deveria amá-la. Ele se sentiu um inútil.

Ao final da reunião, Haymitch saiu com um folheto explicativo das terapias e o número de telefone do psicólogo. Katniss, sentada numa sala adjacente, estava acompanhada de Gale, seu fiel companheiro, e de uma garotinha ruiva. O homem imaginou se um dia aqueles dois seriam mais do que amigos. Ultimamente, Gale se mostrava ser melhor na função de amigo do que ele na de pai.

**

O pai teve uma conversa longa com ela. Katniss ficou mais triste do que antes diante da repreensão dele, acentuando o fato de que teria que pagar pelo tratamento de Julian, aquele boca grande. Pelo menos, depois que o empurrou, Katniss, remoída de culpa, recebeu o apoio de Gale e, estranhamente, da aluna nova, Annie.

Antes de falar a maior besteira do mundo, Julian a perturbava. Ele a chamou de esquisita e outras coisas, até que Annie se meteu entre eles, munida de coragem e justiça.

— Pare de chama-la dessas coisas! – defendeu Annie – Você é um idiota, Julian!

Quando Julian disse que a mãe não gostava dela, um ódio quente e destruidor se apossou de Katniss. O som do baque de Julian no chão e o choro que se seguiu a trouxeram de volta a si, assustada por ter feito o que fez. Professores foram chamados e logo Julian recebeu socorro.

A ruiva agarrou o braço de Katniss e a puxou escada abaixo do playground. As duas correram juntas para longe da confusão, se enfiando atrás do prédio principal. A novata esticou o pescoço e verificou se foram seguidas. Com o movimento, raios de sol bateram no cabelo vermelho da menina que, naquela luz, tinham cor de cenoura.

Katniss esticou a mão para pegar uma mecha. A outra se virou, um sorriso largo com um dente faltando no canto à mostra.

— Eu sou a Annie. Qual o seu nome?

Katniss murmurou tão baixo que Annie mal escutou. Na segunda vez se fez entender.

Um segundo depois, Sra. Morales as encontrou e as levou para a diretoria. Gale chegou mais tarde, suor escorrendo na têmpora.

— Me falaram que você tava aqui.

Katniss ofereceu o menor dos sorrisos. Ela não sentia mais o peito coçar e a barriga pesar ao vê-lo. Ele voltou a ser, para ela, o garoto de antes do dia da pipoca.

Gale reparou em Annie e fechou a cara, desconfiado.

— Quem é você?

Annie estendeu a mão.

— Oi, sou a Annie.

Gale cumprimentou a menina e se jogou ao lado de Katniss, aproveitando enquanto não lhe pegavam. Annie era tão legal e bonita, Katniss decidiu, e Gale parecia ter gostado dela também. Dali em diante, os três passaram a andar juntos.

**

Katniss se acostumou à falta de Effie. Haymitch, a seu modo, também, ainda que sua escolha tenha criado um abismo entre os remanescentes Everdeens. A menina também se acostumou às idas semanais ao psicólogo. Após o incidente com Julian, o pai não agia mais com a paciência de antes.

Na primeira consulta com Dr. Wallis, Haymitch a levou à sala do psicólogo. Katniss apertou a mão de Haymitch, um pedido mudo para que a levasse embora sustentado no olhar. Ele se agachou na altura dela e a abraçou e, sem dizer nada, foi embora.

Demorou um mês para que ela se acostumasse à presença soturna e reconfortante do Dr. Wallis, mais umas semanas para começar a falar, alguns anos para parar e um dia para decidir não ir mais.


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Notas finais do capítulo

É isso! Digam lá, o que acharam?

Recentemente postei uma oneshot de Jogos Vorazes, Le Parc, dá uma olhadinha:

https://fanfiction.com.br/historia/802403/Le_Parc/



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