Caminho Incerto escrita por Clarinesinha


Capítulo 9
7 - Mara




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Assim que o Diogo sai do consultório do Martim, desmancho-me em lágrimas, nunca tive uma discussão destas com o Diogo. Sempre nos demos bem, sempre fomos tão unidos e contávamos sempre tudo um ao outro apesar dos 8 anos de diferença que tínhamos. Já com o Miguel era o oposto, não havia um dia que não tivéssemos uma discussão pelas coisas mais absurdas que vos possa ocorrer na mente, a minha mãe dizia que era a forma mais bonita de amos fraterno que conhecia. Eu nunca consegui perceber essa sua frase, eu tinha 5 anos quando o Miguel nasceu, e apesar de sentir que talvez aquele pequeno ser que entrava na minha vida iria ocupar um lugar que era apenas meu, nunca senti ciúmes.

Os meus pais sempre conseguiram transmitir-me que o Miguel não vinha ocupar o meu lugar, que esse seria sempre meu o de ser a sua Princesa, apesar da "minha mãe" não ser a minha mãe de sangue sempre foi a melhor mãe que podia ter tido. Ao fim de uns anos quando depois de uma discussão com o Miguel eu virei-me para os meus pais e disse-lhes em alto e bom som "Eu quero outro irmão...estou farta do Miguel. Quero um irmão só para mim...vocês ficam com o Miguel" os meus pais riram-se, a minha mãe chamou-me e colocou a minha mão na sua barriga e olhando-me bem fundo nos meus olhos "Acho que o teu desejo vai ser concretizado muito em breve..."  simplesmente gritei eufórica, estava feliz eu iria ter um irmão só para mim, já o Miguel nem sei se percebeu.

Quando o Diogo nasceu (só para que conste fui eu que escolhi o nome...por isso ele é o único que não tem o nome começado por M ou R, que querem que eu vos diga eu sempre gostei de ser diferente), foi uma alegria, eu amava tratar dele, ao contrário do Miguel que sempre teve ciúmes do Diogo. Fazia tudo, claro que sempre com a supervisão da minha mãe uma vez que apesar de ser crescida ainda era uma criança de 8 anos: dava-lhe o biberon, mudava-lhe a fralda, cantava-lhe para ele dormir, e quando ele começou a ficar mais crescido era eu que lhe dava banho. Nós sempre tivemos uma relação umbilical, como dizia a minha mãe, ás vezes parecia que éramos gémeos não precisávamos de falar para saber o que um ou outro queria dizer.

Mas a forma como o Diogo me falou hoje e me olhou quando saiu daqui, foi como se me estivesse a espetar uma faca no coração. O seu olhar era frio mas triste ao mesmo tempo, a sua voz azeda e seca, contudo, transmitia uma profunda dor. Martim aproximou-se de mim, virou a cadeira e ajoelhou-se, abraçando-me, simplesmente me deixei levar pelo vale de lágrimas que tinha dentro de mim.

O Martim, o que dizer desta pessoa maravilhosa que sempre esteve ao meu lado. Somos amigos desde que me lembro, fizemos sempre o mesmo percurso académico e nem eu sei quando, houve um momento em que nos vimos de forma diferente. E assim ele passou de ser o meu irmão e melhor amigo para passar a ser o meu namorado...o meu amor.

— Pequena, amor. Não fiques assim. O Diogo está nervoso, está confuso, mas ele sabe que o que fez está errado.

— Nós nunca nos falámos assim Martim. Eu sinto que ele precisa de mim, mas desta vez eu não posso, aquela miúda é menor. Se...

— Mara, ninguém viu nada. A enfermeira Susana sabe apenas que ele entrou sem nosso consentimento. O que se passou lá dentro vai ficar entre nós...

— Eu não sei o que fazer,mas alguém tem que lhe meter juízo na cabeça. Eu vou para casa não consigo estar aqui, não tenho cabeça.

— Tudo bem. Vamos os dois, eu já acabei o meu plantão. E tu dizemos que estás mal disposta...

E assim fizemos, eu cancelei todas as minhas consultas daquela tarde e o Martim foi tratar de uma ultimas papeladas e saímos do hospital passado uns vinte minutos depois a caminho da minha casa. Quando cheguei a casa o meu pai estava a encarar o Diogo com uma cara de poucos amigos, mas estava a falar num tom até bastante calmo, apesar do tom sarcástico do Diogo. Tenho a certeza que ele não vai contar nada, e sei que vai ficar chateado comigo mas alguém tem que lhe colocar juízo na cabeça e desta vez eu sei que não vou conseguir.

"- Posso saber onde é que tu e o André estiveram? E não me mintas Diogo?"

"- Não falaste com ele, ele não te disse onde estávamos?"

"- Disse. Mas eu fui até lá e vocês não estavam. E não me venhas dizer que tinham acabado de sair e que nos desencontramos..."

"- Ok. Já percebi este não é o meu dia, eu conto-te tudo não precisas de te zangar: nós ajudamos dois caloiros a ir para o hospital. Foi isso..."

"- Os miúdos aleijaram-se durante as praxes?- a minha mãe ficou tipo em pânico, ela também nunca gostou desta coisa das praxes."

"- Não, eles receberam uma chamada de um tio para irem para o hospital. Eu não sei pormenores e nós fomos só lá pô-los. O miúdo era novo aqui em Coimbra e estava tão aflito que achei melhor ajudá-lo."

Não podia acreditar que o Diogo estava descaradamente a mentir ao meu pai, eu não telefonei ao meu pai, como ele me fez prometer se o Diogo aparecesse no Hospital quando percebeu que ele tinha saído da faculdade sem autorização. Todavia, acreditei que o Diogo apesar de tudo quando chegasse a casa contaria a verdade, ou pelo menos parte dela. Mas ele estava a mentir sem mostrar sequer qualquer tipo de arrependimento.

— Diogo, para. Se não contares tu ao pai conto eu.

— Tu hoje tiraste o dia para me chatear foi? Porra Mara, eu adoro-te mas hoje não estás a facilitar...

— Diogo. Não fales assim com a tua irmã. Ainda por cima à frente do Martim. - começa o meu pai a gritar...

— Estou cansado que se metam na minha vida e a Mara hoje está a abusar. - Ele olha para mim com um olhar triste e confuso...- Já te pedi desculpa, já te disse que não se repete, pára de me azucrinar a cabeça.

— Contas tu ou conto eu? - Eu não podia permitir que ele saísse dali sem pelo menos admitir que a foi ver...- Estou à espera Diogo...- eu não ia desistir, ou ele contava ou contava eu.

— Eu já contei tudo. Eu fui só ajudar os miúdos...- ele olhou-me quase a implorar para que não dissesse nada e ao mesmo tempo a desafiar-me para que o fizesse, e no fundo ele sabia, ele tinha a certeza que eu o faria...

— Tu ajudaste os miúdos sim, mas esqueceste de contar que um deles é irmão da Madalena, da miúda que tu salvaste...

— Diogo! Eu não acredito, tu foste vê-la outra vez não foste? Mesmo depois de eu te ter proibido.

— Ele conseguiu entrar no quarto dela sem ninguém o ver e sem autorização...- e nesse momento fui para junto do meu pai, parecíamos um tribunal da inquisição a questionar o "bruxo" pronto a ser queimado vivo...

— Diogo. Tu entraste sem autorização num quarto de uma desconhecida? E se alguém te visse lá? E se não tivesse sido a tua irmã a entrar? 

— Chega Pai. Chega Mara. Sei que não devia ter feito o que fiz, sei que errei. Podem estar descansados os dois eu nunca mais a vou ver. Aliás eu vou esquecer que algum dia eu a vi, agora se me dão licença eu vou para o quarto.

— Diogo!- grito-lhe também...- Esta conversa ainda não acabou, temos que falar sobre...

— A conversa contigo acabou Mara. Tu não és nem minha mãe nem meu pai, tu não és nada meu. Tu és apenas minha meia-irmã...- ouvir aquilo fez o meu coração estilhaçar-se em mil bocadinhos. Sim eu era apenas sua meia-irmã, mas nunca nos tratámos assim, nunca nos sentimos assim. Para mim o Diogo sempre foi muito mais que isso, sempre foi tudo para mim. Mas a sua raiva era tanta, que não mediu o que disse e depois de o ter pronunciado continuou o seu caminho até ao seu quarto.

— Diogo pede imediatamente desculpa à tua irmã...- grita o meu pai.

— Diogo! - eu estava branca, tonta e até enjoada, mas calmamente disse-lhe...- Nós temos que continuar esta conversa não te podes esconder para sempre...

— Chega Mara. Deixa o teu irmão...- disse minha mãe impedindo-me de subir até ao quarto do Diogo.

— Mãe. Ouviste o que ele disse? Ele...ele...- e não aguentei mais as lágrimas simplesmente começaram a cair que nem uma fonte.. A minha mãe abraçou-me tentando acalmar-me, como tantas vezes ela já o tinha feito ao longo dos meus 28 anos.

— Eu ouvi, e sabes bem que apenas o disse porque está com raiva.

— Sei, claro que sei, mas não é por isso que me dói menos, não é por isso que não me feriu...

— Eu sei minha querida. E ele não o devia ter feito, mas tu sabes que ele te adora.

— Sei. Mas isso não quer dizer que ele não tenha errado e que eu não esteja zangada com ele.

— Ele já disse que errou, já disse que não a vai ver mais...

— Acreditas mesmo nisso, disse-o ontem e na primeira oportunidade foi lá: sem autorização, às escondidas. Vocês sabem o quanto nós somos ligados, mas o que o Diogo fez hoje, o que ele acabou de me dizer...

— Mara, tem calma, por favor. Não foi assim tão grave, ele errou sim mas ninguém soube e ninguém vai saber.- Diz Martim que até aí se tinha mantido sem proferir uma palavra.

— Não foi grave? Martim! Só não o foi porque eu o vi lá antes da família o ver. Nem quero imaginar se um deles entrasse pelo quarto adentro e visse o que o vi.

— Mara afinal o que é que o teu irmão fez de tão grave para estares assim tão furiosa?

Penso bem antes de falar, se eu contasse sobre o beijo sei que o Diogo irá ficar em maus lençóis, conheço o nosso pai o suficiente para saber que ele irá fechar o Diogo no quarto às sete chaves. Por isso decido que não lhes vou contar nada, apesar do que ele acabara de fazer e dizer eu adoro o meu irmão e sei que ele me adora.

— Não basta o facto de ele ter entrado no quarto da UCI sem ter autorização. Ele é meu irmão mas isso não lhe dá livre acesso a tudo...

— Mara, tudo bem ele errou e já assumiu o erro, para quê continuar esta discussão. Quando ele se acalmar ele vai falar contigo como um menino pequeno arrependido, como sempre faz.

— Desta vez não vai ser assim tão fácil, ele magoou-me muito, e não estou a falar da cena do hospital, estou a falar do que ele me disse aqui...

— Esta discussão não acabou, o nosso filho vai ter que me ouvir ainda...- disse o meu pai pronto para subir até ao quarto do Diogo.

— Tu não vais a lugar nenhum neste momento...- E a minha mãe coloca-se à frente do meu pai...- pelo menos por agora. Estão os dois de cabeça quente, deixem-no acalmar-se primeiro. Martim ficas para jantar?

— Seria um prazer, mas não quero incomodar.- o meu amor sempre educado e delicado.

— É óbvio que não incomodas, Mara vai à cozinha e coloca mais um prato na mesa. E tu...- virando-se para o meu pai...- sê um bom anfitrião e oferece uma bebida ao Martim, eu vou lá acima chamar a Rute para ajudar a Mara e falar com o Diogo.

— Porque é que tu podes ir falar com o Diogo e eu não?

— Porque tu estás nervoso e ele também, e se falarem agora só vai sair das vossas bocas o que não querem. Por isso vais ser um bom marido e um bom pai e vais fazer o que eu te estou a dizer...- E dito isto a minha mãe dá um beijo ao meu pai e sobe, passa primeiro pelo quarto da Rute pedindo-lhe que me vá ajudar o que ela faz sem refilar. Ela adora passar tempo comigo, e eu adoro a nossa ratinha, sou mais velha que ela 12 anos por isso muitas vezes sou mais mãe dela do que irmã. Apesar de eu lhe fazer quase sempre as vontades, mas a verdade é que não consigo dizer-lhe que não. Assim que chega ao pé de mim abraça-me e faz uma cara que eu só tenho vontade de rir...a sério esta miúda devia ser actriz.

— Ok, quem é que está a morrer? Tu ou o Diogo?

— Rute!! Que pergunta é essa? Ninguém está a morrer, a sério às vezes acho que não és deste mundo.

— Eu estou a falar a sério, um de vocês tem que estar a morrer, tipo um de vocês deve estar mesmo muito mal. Vocês nunca discutem, nunca gritam um com o outro.

— Ratinha...- e agora percebi, ela está preocupada com o que se passou na sala, deve ter conseguido ouvir tudo o que dissemos, afinal não estávamos a falar baixo, e de facto ouvir-nos a discutir é no mínimo estranho, nós nunca discutimos, pelo menos assim desta forma...- não preocupes essa cabecinha, tudo vai ficar bem.

— Não, não vai. O Diogo está mal, eu ouvi-o entrar no quarto e acho que basicamente deve ter destruído o quarto todo.

— Ai, que exagerada Ratinha! Tenho a certeza que não foi assim tão dramático.- e não consegui deixar de dar uma gargalhada com o que ela disse. Esta miúda tem veia de artista só pode.

— Foi sim, eu tentei falar com ele, mas só me deu um abraço e pediu que o deixasse sozinho. Assim que fechei a porta consegui ouvi-lo, estava a chorar e tu sabes que ele nunca chora.

Olhei para a Rute, e percebi o olhar preocupado dela e agora também eu estava preocupada. O Diogo nunca chorava, a única vez que o vi chorar foi no dia do enterro do avô Sebastião, nosso avô materno, se bem que eu não era neta dele de sangue ele sempre me tratou como tal, a "nossa mãe" não é propriamente minha mãe. Dona Marina casou-se com o meu pai era eu ainda pequena ainda nem tinha os dois anos completos, mas a sua candura e a sua capacidade de me fazer feliz com pequenos gestos conquistaram-me, para mim ela era simplesmente a minha mãe aquela que a vida me deu depois de me ter tirado a minha de sangue. Mas o Diogo sempre foi o neto preferido do avô Sebastião, eram unha com carne acho que às vezes o meu pai até ficava com ciúmes daquela relação, e quando ele morreu o Diogo chorou durante dias. E foi a única altura que me lembro de o ver chorar...depois disso só hoje.

— Não te preocupes ratinha, a mãe está com ele e quando ele se acalmar eu falo com ele.

E depois desta nossa conversa e de acabarmos de colocar a mesa, fomos ter com o Martim e o nosso pai. E enquanto ela se atirou para o seu colo, fazendo com que o meu pai desse um leve grito, mas logo a nossa ratinha o fez rir ao lhe dar um dos seus apertados abraços. Eu sentei-me ao lado do Martim, que para além de ser meu colega no hospital era meu amigo de infância, e agora era também meu namorado apesar de ninguém ainda o saber, e com toda esta confusão que o Diogo aprontou acabamos mais uma vez por adiar a revelação do mesmo.

— Vamos jantar, ou esperamos pelo Diogo e pela mamã?

— Esperamos pela tua mãe. O Diogo hoje é melhor nem aparecer, é melhor ficar no quarto a pensar na vida.- diz o meu pai com uma voz de ira. Sei que o Diogo abusou no que disse, porém, tenho a certeza que foi tudo da boca para fora, por estar nervoso, confuso e de certa forma a sofrer pelo que está a sentir e não pode.

— Pai. O Diogo errou mas acho que ele está a sofrer mesmo...

— É pai, o Diogo está a chorar. E tu sabes que ele nunca chora...nunca mesmo.- diz a ratinha...

— Mara. - o meu pai olha para mim com aquele olhar que só ele me dá quando quer alguma coisa...- Tu sabes de alguma coisa não sabes?

— Mesmo que soubesse, há coisas que não me compete a mim dizer. Ele está a falar com a mãe e ela sabe como lhe tirar as coisas lá de dentro sem precisar de muita ginástica.

— Nisso tens razão, a tua mãe sabe falar com vocês e tirar de vocês tudo sem esforço nenhum...tirei a sorte grande com ela.

— Tens razão, tiraste mesmo. E eu também...- e olho para o meu pai com um olhar cheio de amor e agradecimento pela mãe maravilhosa que ele me deu...- Vamos jantar?

— Não esperamos pela mamã, só um bocadinho...- diz uma Rute com a sua voz de rainha do melodrama, fazendo aquela carinha que sempre fez quando quer alguma coisa e que sempre leva, pois é impossível resistir a tanto melodrama. Depois daquela só conseguimos rir. Graças a Deus temos uma ratinha nesta casa, ela é sem dúvida a alegria desta família.

 


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