Caminho Incerto escrita por Clarinesinha


Capítulo 19
18 - Libertação




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Deixamo-nos estar naquela bolha só nossa. Estar com o Diogo faz-me sentir segura, no entanto, ter-me lembrado de tudo o que tinha acontecido comigo, de tudo o que "ele" me tinha feito, começa a ter um efeito contrário ao que eu senti no dia do piquenique, e tudo o que quero é estar sozinha. Lembro-me da Magui e do Guga, tenho que falar com eles, eu preciso de falar com eles. Começo lentamente a libertar-me do aconchego dos braços do Diogo. Ele olha para mim a tentar perceber o que se passava na minha mente.

— Eu preciso ligar a duas pessoas. Preciso mesmo de falar com elas, de ouvir as vozes deles.- digo-lhe sem rodeios.

— Posso saber quem são essas pessoas tão importantes para saíres dos meus braços?- e faz um bico que me faz apaixonar ainda mais por ele, contudo neste momento de quem eu preciso são das duas pessoas que melhor me conhecem.

— Não faças esse bico...vou ligar à Magui e ao Guga, eles são os meus melhores amigos, são quase como irmãos. Eu preciso de...- e calo-me porque não consigo dizer mais nada, uma vez que as lágrimas voltam a descer...

—Tudo bem. Fica aqui eu vou ligar à Mara e ver se ela está a chegar para ajudar.- dá-me um beijo e deixa-me sozinha para eu poder falar à vontade.

Marco o número da Magui, toca insistentemente, mas ela não atende. Será que está nas aulas? Mas são horas de almoço ela devia estar no refeitório a esta hora. Volto a tentar de novo, e nada...que raiva quando eu mais preciso ela não atende. Tento ligar para o Guga, pode ser que ele atenda, toca três vezes...

— Mada. Não devias estar nas aulas sua diaba.- assim que ouço a voz do "meu irmão", eu simplesmente não aguento e de novo me desfaço em lágrimas. Ouvir a voz do Guga faz tudo ficar mil vezes pior, porque não o tenho aqui comigo para me abraçar, nem ele nem a Magui. - Madalena. O que é que se passou? Porque estás a chorar?- Ele continua a falar, mas as lágrimas continuam a cair e eu simplesmente não consigo falar nada.

— Madalena, é a Magui. O Guga está aqui aflito, o que é que se passa?- eu continuo sem conseguir dizer nada, e apenas choro: de raiva, de tristeza, de nojo, de saudade. Choro por tudo e por nada, choro porque é a única forma que encontrei de exteriorizar o que sinto dentro de mim...-Linda assustaste-o e neste momento também me estás a assustar a mim.

— Eu lembrei-me...- consigo dizer duas palavras, duas miseras palavras, e de novo as lágrimas voltam a inundar os meus olhos. Como os quero junto de mim, eu preciso deles comigo.

— Espera...- ouço-a dizer ao Guga para ir com ela...- Vou colocar-te em alta voz, ninguém nos vai ouvir aqui, estamos no nosso local secreto. Lembraste-te de quê?- respiro fundo, eu tenho que lhes contar.

— De tudo: do Richi nos convidar para sair naquela noite, de vocês dizerem que tinham planos, de eu tentar recusar mas acabar por concordar e ir com ele. Do jantar maravilhoso que tivemos nesse dia, dos ciúmes estúpidos que ele teve na discoteca, e de...

— Ma, o que foi que ele te fez? O que é aquele filho de uma...te fez naquela noite? Porque se foi o que eu estou a pensar eu mato aquele desgraçado.

— Guga...por favor não. Eu não quero que faças nada...por favor...- e lágrimas correm de novo.

— Mada, o que foi que ele te fez? O que é que tu te lembraste?- pergunta mais calma Magui. Ela sempre foi talvez a mais centrada de nós os três. Não que fosse mais responsável que nós, mas tinha uma calma impressionante quando estávamos com problemas, era sempre ela que nos acalmava e arranjava uma solução.

— Ele bateu-me muito. Ele ficou com ciumes do Diogo.

— Espera quem é o Diogo?- Pergunta Guga, que estava completamente fora do contexto.

— O Diogo é o "criado" das "Rainha da Noite"...- eu disse e Guga deu um "AHHH" percebendo finalmente quem era o Diogo.- Depois da cena de ciúmes na discoteca, o Richi trouxe-me para a rua, nós discutimos e para não dizer nada que me arrependesse eu quis entrar de novo, mas eles não me deixou. Começou a bater-me eu acabei por cair e foi quando ele...ele forçou...ele...

— Não acredito que ele te fez isso. Eu mato-o Madalena, eu juro que o mato se ele me aparecer à frente.

— Vê se te acalmas Guga, porque não vai adiantar nada ires ter com ele e bater-lhe. Mada...

— Estou aqui. Guga, por favor não faças nada. Por favor, promete-me que não lhe vais dizer nada?

— Eu não sei Ma, ele era meu amigo, mas tu...tu és minha irmã. Fui eu que vos apresentei, bolas a culpa foi minha, eu nunca pensei que ele fosse capaz disto.

— Gu tu não tiveste culpa. Eu gostava dele, e pensei que ele apesar de tudo também gostava. Eu vou conseguir superar isto, só gostava que vocês tivessem aqui.

— Estás onde? Estás na escola ou em casa?

— Estou num jardim com o Diogo, ele...ele tem sido o meu porto seguro. Eu lembrei-me de tudo, no dia em que...

  - Espera, como assim "o teu porto seguro"? E hoje é algum dia especial por acaso...eu não me lembro de nada para festejar? Madalena Fernandes, podes começar a contar?

— Eu...nós...estamos juntos. Mas estamos a namorar escondidos, eu sou menor e ele pode ficar em maus lençóis se alguém descobrir.

— Ai!!! Que romântico...parece mesmo a história do Romeu e da Julieta. E ele trata-te bem?

— Sim. Ele é o meu príncipe Magui. Lembras-te o que me disseste quando nos despedimos? Que eu iria descobrir o meu sapo em Coimbra? Acho que acabei por descobrir o príncipe dos sapos.

— Estás mesmo apanhada Mada, mas fico feliz por estares bem. Pelo menos estás com alguém que gosta de ti. Quer dizer, ele gosta de ti certo?

— Sim. Ele tem sido um anjo. Acho que a Rainha se apaixonou pelo servente...- e finalmente ao fim de horas consigo sorrir com os meus dois amigos.

— Bem pelo menos conseguimos fazer-te sorrir um pouco. Mada, será que os teus avós sabiam o que o Richi te fez?

— Não sei. O meu pai sabia, ele teve o acidente porque ia ter com o Richi.

— Espera mas como é que sabes isso?- Guga fica um tempo calado mas logo consegue juntar as peças...- Espera o Tio acordou?

— Sim, o meu pai acordou, e foi na altura que o ouvi a falar com o Pedro sobre tudo o que aconteceu que me lembrei de tudo. Entrei em pânico, nem consegui falar com ele, fugi do hospital, completamente desnorteada e liguei ao Diogo.

— Eu sei que tens muita coisa para resolver com o teu pai, e que vai ser difícil...mas lembra-te que ele te adora.

— Eu sei, mas olhar para ele fez me perceber que todos tinham razão: a culpa de tudo foi minha. Indirectamente eu matei a minha mãe.

— Madalena de Vaz Fernandes podes parar com essa ideia absurda. Tu não tiveste culpa de nada ouviste. Foi uma fatalidade, um acidente...e eu tenho a certeza que o teu pai não te culpa.

— A Magui tem razão, o Tio nunca na vida te iria culpar.- de repente ouço o toque...- Está a tocar temos que ir. Vou mandar mensagem ao meu pai a contar a novidade, ele vai gostar de saber. Talvez consigamos ir aí no fim de semana para visitarmos o teu pai.

— Eu ia adorar a vossa visita, preciso de vocês comigo. Não sei o que faria sem vocês...

— Nada, porque nós somos simplesmente maravilhosos.... bom agora temos que ir, cuida-te.

E depois de me despedir dos meus irmãos de coração, viro-me e vejo o meu amor com a Mara e o Martim, numa mesa já com as Pizzas e os Sumos. Levanto-me e caminho para eles, a Mara olha para mim com um olhar de quem não sabe se me arranca as orelhas ou me dá um abraço.

— Ficaram todos preocupados contigo...- diz abraçando-me...- os médicos tiveram que sedar o teu pai ele ficou muito agitado.

— Mas ele está bem?- pergunto largando-me do seu abraço...- Mara ele está bem?

— Sim. Ele está bem, apenas algo nervoso com o que se passou. Foi apenas para o aclamar.

— O meu avô?- ela olha para os meus olhos e...- Está furioso, não está?- ela assente...- Mara eu não podia ficar ali...não podia. Não depois do que descobri...

— Queres falar comigo sobre isso, sei que já falaste com o Diogo, mas eu sou mulher...talvez seja mais fácil desabafares comigo...- eu não digo nada, mas talvez seja mais fácil falar com ela do que com o Diogo...- Mas, primeiro vamos comer porque as pizzas estão arrefecer.

Ela abraça-me de novo e sentamo-nos na mesa cada uma ao lado do seu amor. O Diogo afaga-me as costas como que garantindo que tudo vai ficar bem, e eu acabo por relaxar encostando-me no seu peito. Peito esse que me traz abrigo e protecção, e eu amo sentir isto, eu amo o meu Príncipe Sapo. Quando acabamos, Mara sugere aos rapazes que vão passear um pouco, deixando-me com ela para falar de coisas de mulheres. Eu sei o que ela quer falar comigo, porém eu não sei se vou conseguir falar alguma coisa.

— E agora que estamos sozinhas, conta-me o que aconteceu, o que se passou dentro do quarto do teu pai?

— Eu lembrei-me...lembrei-me do que aconteceu na noite que os meus pais tiveram o acidente...

— Eu não sei o que aconteceu contigo lá em Lisboa. O que sei é que o teu pai veio transferido para cá em coma.

— Na noite em que os meus tiveram o acidente eu estava no hospital sedada por causa das dores. Quando acordei eu não me lembrava do que tinha acontecido, eu esqueci aquele dia. Tive um...

— Tiveste um traumatismo craniano...

— Sim. Esqueci-me totalmente de tudo, quando acordei soube que os meus pais estavam também no hospital devido a um acidente, no inicio pensei que estivéssemos todos juntos no carro, mas aos poucos percebi que eles eram os únicos ocupantes.

— E o que é que te assustou tanto a ponto de entrares em pânico? Eu percebi ao olhar para ti...eu sou médica Madalena, percebi que naquele momento tu não eras completamente tu. E expliquei isso ao teu avô depois de sabermos pelo teu irmão o que se passou no quarto.

— Eu...naquela noite menti aos meus pais.- Mara fica à espera que eu continue...- O Ricardo, o meu namorado na altura convidou-me a mim e aos nossos melhores amigos para sair naquela noite. Mas o Guga e a Magui já tinham feito planos com os pais dela então não aceitaram, eu ainda recusei, eu ia viajar no dia seguinte, íamos para Paris. Mas o Richi, ele pediu tanto...

— E tu acabaste por concordar certo?

— Sim...mas os meus pais não gostavam nada do Richi. Então eu menti, eu disse que ia dormir a casa da Magui. A noite começou bem, ele levou-me a um restaurante indiano o que para ele era algo quase improvável de acontecer. Passeámos, namorámos e quando chegou à hora fomos para a Discoteca. Ele encontrou uns amigos e eu encontrei uma amiga da escola, que fiquei a saber nesse dia que era prima do rapaz que povoava os meus sonhos...

— Era prima do teu namorado?

— Não, era e é prima do Diogo...quer dizer vossa prima. A Gabi foi minha colega na escola...

— A Gabriela foi tua colega!? O mundo é mesmo pequeno. E então o que aconteceu depois...

— Com a Gabi, estava o teu primo e o Diogo. Eu já o tinha visto algumas vezes, e até me meti com ele, tipo insinuei-me, mas fiz-me passar por mais velha, trocamos algumas mensagens. Para mim ele era o meu servente, e eu era a sua Rainha da Noite.

— Eu não acredito, o Diogo falou-me tanto de ti, ele estava encantado contigo. Sofreu por perceber que não podia ter nada contigo, tu eras...quer dizer és menor.

— Eu percebi nesse dia que ele tinha descoberto tudo, que ele tinha percebido que eu era da idade da Gabi, mas não consegui falar com ele. Sempre que tentava o Richi impedia-me. Até hoje eu nunca me tinha lembrado de nada sobre esse dia, até hoje eu não sabia o porquê de ter ido parar àquele hospital.

— E hoje lembraste-te?- Mara pergunta-me e eu aceno com a cabeça.

— Sim. Depois de mais uma crise de ciúmes, eu simplesmente tentei ignorar e quis voltar para pista de dança, porém o Richi não me deixou, agarrou em mim e levou-me para a rua e foi aí que o meu pesadelo começou.

— Madalena, diz-me que ele não fez o que estou a pensar? Ele...

— Primeiro discutimos e muito, e para não dizer o que não queria tentei sair dali e voltar a entrar, mas o Richi pegou em mim e levou-me para um canto mais escuro. Ele continuou a acusar-me de o estar a trair e que não iria admitir...bateu-me com tanta força que eu caí. Quando me levantei olhei para ele e bati-lhe também, nunca ninguém me tinha levantado a mão nem os meus pais. Foi nessa altura que...

— Madalena...- eu não consegui acabar de falar, eu só chorava...e acho que a Mara percebeu o que tinha acontecido...- Ele...

— Não. Ele não chegou tão longe...eu cheguei a tempo. E só não matei o desgraçado ali, porque o nosso primo me impediu. A Gabi já tinha chamado a ambulância e assim que olhei para a Madalena desmaiada, não pensei em mais nada, não te deixei sozinha até que os teus pais chegaram ao hospital. Contei-lhes o que tinha visto, os médicos conversaram com os teus pais, e confirmaram o que eu pensei que não tivesse acontecido.

— Tu estiveste com os meus pais? Tu viste-os?

— Sim. O teu pai estava bem nervoso quando descobriu o que te aconteceu. Acho que no início estava furioso contigo por teres saído e mentido, mas depois a fúria passou para aquele desgraçado.

— Espera...tu sempre soubeste o que me tinha acontecido? Tu nunca pensaste em me contar? Tu mentiste-me Diogo...

— Eu não te menti. No início, quando te encontrei naquela capela eu nem sabia quem eras. Depois lembrei-me da minha "Rainha da Noite", mas eu percebi que tu não sabias quem eu era. Depois quando finalmente me reconheceste eu falei com o teu irmão e soube que tu não te lembravas de nada daquela noite e que os médicos disseram a todos que ninguém te podia contar...que se um dia te lembrasses então...

— Mas tu...eu confiava em Ti.- as lágrimas começaram a escorrer-me pelos olhos. Eu confiava nele, de todos o Diogo era o único que não me podia ter escondido nada...

— Madalena, eu não consegui...tu já estavas a sofrer tanto por estares em Coimbra...

— Eu estava a sofrer porque ninguém me contava o que raio se tinha passado, porque todos olhavam para mim como se eu tivesse a culpa de tudo...e sabes que mais: Eu tive culpa, eu matei a minha mãe, eu coloquei o meu pai numa cama de hospital...

— Madalena, não é bem assim. Tu não pediste para que aquele animal fizesse o que fez contigo, a culpa não foi tua...

— Foi Mara, porque a decisão de ir com o Richi naquela noite foi minha, de mais ninguém...- viro costas e afasto-me deles.

— Madalena, Madalena...- ouço o Diogo a chamar por mim, mas não quero ouvir mais nada, não quero sentir mais nada...- Onde é que vais?

— Quero ficar sozinha...- digo, e caminho até chegar ao pé do lago, no mesmo local onde beijei pela primeira vez o meu amor, o meu príncipe. No mesmo lugar onde eu e ele finalmente nos declarámos.

Sinto-me vazia, oca. Como se alguém me tivesse aberto o corpo até às entranhas e me tivesse retirado tudo cá de dentro. Ficou apenas a carcaça de mim mesma. Todos me mentiram, me omitiram, me esconderam o que aconteceu. Todos me magoam seja com gestos seja com palavras. Relembro tudo o que passei desde que saí de Lisboa: os amigos que deixei, a família que fui obrigada a abandonar, os olhares e palavras do meu avô, as insinuações maldosas da Ana, o simples sorriso das minhas irmãs me corroí por dentro.

Saber que eu causei tudo isto, saber que por minha causa os meus irmãos ficaram sem a minha mãe...doí, doí demais. Quero acabar com esta dor, quero parar de sofrer, parar de fazer os outros sofrerem. Porque a verdade é que eu vivo para fazer os outros sofrerem...então porque não acabar com o sofrimento de todos: o meu e o de quem me rodeia.

Olho para o lago. Levanto-me e caminho até à beira do mesmo. Respiro fundo. Olho para o céu. Caminho passo a passo, sentindo a água fria gelar-me os ossos, mas eu não paro continuo. Já tenho água até à cintura, coloco-me de joelhos...e contando até três mergulho. Sinto...não sei sequer o que sinto, mas deixo-me ir...e aos poucos a minha mente apaga...e a paz chega. Estou livre...finalmente estou livre da dor.

 

 


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