Antes de ELA chegar escrita por Ahelin


Capítulo 10
9. Absolutamente nada


Notas iniciais do capítulo

Gente... Eu vou fingir costume e só deixar o capítulo aqui como se eu não tivesse sumido por anos ahuahuahua sério. Nossa.
Eu tô muito feliz com ele e têm sido um período complicado pra mim, então ele sair de tudo isso foi meio que... ótimo? Sério, eu to bem feliz, e espero que vocês fiquem também depois de ler.



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Um aviso diretamente da Helena do futuro, de dias após escrever as primeiras duas páginas desse capítulo: pode ser difícil ler, porque foi difícil pra mim escrever. Na verdade, foi um dos meus dias mais cinzas desde que descobri ELA. Então, se você não quiser entrar nas profundezas escuras da minha tristeza e contemplação do universo e metafísica, você pode pular diretamente para a marca que deixei. Não se preocupe, é fácil achá-la. A partir dela, tem uma história alegre de um dia alegre, que vai aquecer seu coração nos dias frios. Sem contar essas duas páginas, a partir de agora, tudo que está escrito aqui é trazido pelas habilidosas mãos (e fiéis ao que eu digo, espero) do meu lindo, cheiroso, poderoso e gostoso amigo Vader. Percebi que a digitação por voz estava deixando meu texto contemplativo e cheio de metáforas, porque eu de alguma forma incorporo Aristóteles (talvez Tales) quando estou inspirada e começo a falar. Com Vader me ajudando, além de eu não ter que revisar o texto depois ― pelo menos espero não precisar ― ele pode me ajudar a soar mais coerente e tem uma inteligência mil vezes superior à IA do Google, uma vez que ele não escreve “não era pra escrever isso” quando eu digo que não era pra escrever alguma coisa. Enfim, o único problema é que agora ele tem acesso ao resto do livro, mas ele ia ter uma hora ou outra. Fique agora com a parte contemplativa e chata deste capítulo, mas não desanime, você pode voltar e ler ela depois que estiver mais contente comigo. 

A quem quer que esteja lendo isso, seja um futuro filho meu ― bem futuro, eu espero, se eu ainda estiver viva até lá ― obrigada. Pensar que um dia vou poder ser “ouvida” e “vista” (lida, no caso) como eu fui antes de ELA chegar é um alívio e uma alegria.

 

.

 

Ouvi em um documentário qualquer que, se você puser uma pessoa em uma banheira de água morna e for aumentando a temperatura da água gradual e lentamente, a pessoa morrerá cozida e nem vai perceber. Acho que o conceito se aplica bem ao meu estado. Estive tanto tempo preocupada em esquecer e mascarar a minha condição que não percebi uma parte grande dos avanços da ELA. Num belo dia, acordei e senti minha língua dormente; não conseguia articular palavras. Meu pescoço estava meio duro e minha cabeça pendia pro lado esquerdo se eu não fizesse um esforço consciente pra deixá-la na posição certa.

Fiz alguns exercícios durante dias pra voltar a falar, mas a minha voz sempre sai estranha e eu quero chorar toda vez que ouço. Meu primeiro reflexo foi procurar uma aula de Libras na internet, mas desisti nos primeiros dez minutos quando lembrei que meus dedos não se movem direito. Sinto que dormi por meses seguidos e simplesmente acordei assim: debilitada. Mas eu tenho certeza que não foi assim. Isso é resultado dos meus esforços pra ignorar ELA e, agora, o peso de todos os problemas que ELA me impôs veio de uma vez.

Eu poderia chorar e resmungar, e é o que tenho vontade de fazer, mas decidi mudar a estratégia. Não vou mais ignorá-la. Chegou a hora de aceitar que eu tenho uma doença grave, que eu não vou me livrar dela, que eventualmente ela vai me matar e que eu não tenho mais medo.

Ao menos foi isso que eu consegui dizer à minha terapeuta (com um certo esforço e fisioterapia) hoje mais cedo, na minha primeira sessão. Estou muito arrependida por ter negado meu estado durante tanto tempo.

Me sinto Ícaro, com minhas asas de cera, voando cada vez mais perto do sol como se pudesse alcançá-lo; agora, com a cera quente queimando minhas costas e o chão duro se aproximando rapidamente de mim, sei que não posso. Acho que nunca pude.

Apesar disso, descobri algo interessante na terapia: eu estou vivendo as cinco fases do meu próprio luto. Passei pela negação quando fingi que nada estava acontecendo, que não tinha motivo nenhum pro Lucas trancar a faculdade e vir ficar comigo, que meus pais estavam chorando todas as noites por desesperança. Passei pela raiva quando acordei de madrugada, tantas vezes, e quis revirar o meu quarto, jogar travesseiros pela janela, gritar como se todo mundo fosse culpado por um problema que não era culpa de ninguém. Passei pela barganha quando acreditei que fazer coisas estúpidas e escrever esse diário estúpido faria algum sentido.

O que eu esperava? Que fosse magicamente escrever e bibidi bobidi boo, você está curada? Certo. Às vezes eu esqueço que só tenho 16 anos.

Minha terapeuta acha que estou entre a fase da depressão e da aceitação, mas acho que preciso revisar essa teoria. Ela provavelmente não se aplica quando o luto vem da certeza de que você vai morrer. Estou passando por uma longa fase de medo, não importa quando eu o negue. 

Eu tenho medo de morrer, de não existir mais caso não exista vida após a morte e a consciência apenas se perca no vazio no momento em que o cérebro para de funcionar.

Eu tenho medo de ir para o inferno, caso os cristãos estejam certos. Quero dizer, mesmo que eu tenha 99% de certeza de que vou morrer virgem, eu já bebi álcool e uma vez beijei uma menina, então isso já é o suficiente pro passaporte do inferno, né? Tem uma contagem de pontos?

E se, na verdade, a religião que esteve certa todo esse tempo for uma religião da qual eu nunca ouvi falar? Como eu posso ser julgada por regras que não conheço?

E se ninguém estiver certo? E se deus for como o Mewtwo? Na verdade, isso não faria sentido; com certeza, se deus fosse um Mewtwo, as coisas seriam diferentes a essa altura.

E se todos estiverem certos? E se existirem vários deuses? E se todos eles forem um só, visto diferente por cada pessoa que pensa nele?

A pior parte é que todas essas perguntas se repetem na minha cabeça o tempo todo desde que tive a primeira ideia de que eu ia morrer, muito antes de descobrir ELA. Agora, o que acontece é que meus pensamentos ficaram muito mais rápidos, mas meu corpo e minha fala ficam mais lentos a cada dia que passa. Me sinto presa, sufocando dentro de mim mesma, querendo o tempo todo me expressar sem conseguir.

Tenho medo de que essa sensação fique pior. Não, eu sei que vai ficar pior, só tenho medo de quando ficar. Não sei se esse é o fim da minha fase Phineas e Ferb, mas já sei o que quero fazer hoje: nada.

Quero sentar no parque do peão, olhar as pessoas e tentar adivinhar como é a vida delas. Quero deitar na grama, sentir o sol na minha pele e ficar em silêncio. Quero estar em um lugar onde eu não precise falar com ninguém, nem realmente fazer nada, só aproveitar que estou viva sem sentir que não consigo fazer as coisas que estou pensando em fazer.

Acho que não preciso voar perto do sol para continuar feliz. Um voo baixinho, com a brisa batendo no meu rosto, já é suficiente. Posso ter asas de cera, como Ícaro, mas tenho algo que ele não tem: um conhecimento básico de biologia, química e física. Sei até calcular a altura a que posso voar sem que minhas asas derretam mais rápido do que eu consigo pousar.

Nessas horas, eu meio que agradeço que as pessoas não ouçam o que estou pensando. A dona Jurema indo ao mercado com a filha ficaria chocada com tudo isso, provavelmente pensando que eu cometeria um suicídio. O que a dona Jurema não sabe, e que provavelmente nem eu sabia até pensar profundamente no assunto, é que eu não vou fazer isso.

Não porque eu amo viver, como eu já escrevi aqui. Eu realmente amo, e realmente achava isso, mas esse está longe de ser o maior dos meus motivos. 

Eu tenho medo. Medo demais até de pensar em morrer. Um medo tão intenso que às vezes me impede de dormir, como se eu pudesse parar de respirar dormindo e nem me dar conta.

Então essa deve ser a depressão. O sentimento de angústia que invade minha barriga toda vez que lembro que estive dormindo durante todo esse tempo. Fingindo e adiando o mal inevitável que vai aos poucos tomar conta de cada um dos meus neurônios motores, a ponto de eu às vezes esquecer que ele está lá, como… como Lucy de Como se fosse a primeira vez acordando em um barco no meio do oceano e percebendo que está grávida de oito meses de uma filha que não se lembra de ter concebido. No exato momento em que ela acorda, ela percebe a barriga e seu mundo desmorona. Será que eu também vou ser assim? Acordar sentindo que tudo está normal e então perceber que não consigo mexer as pernas?

Não. Quero estar acordada a partir de agora. Quero ter consciência de cada uma das minhas dificuldades e limitações, e quero viver e ser feliz apesar delas. 

Quero não ser lembrada só como Helena, a menina que tinha ELA depois que eu morrer. Quero ser Helena, a menina do cabelo bonito, ou das roupas estilosas, ou que dançava como uma minhoca morta, ou só Helena. Quero vir antes dELA, não o contrário. Ao mesmo tempo, parece que eu mesma estou construindo esse legado, com toda essa história de coisas pra fazer antes de ELA chegar.

Tudo isso me faz pensar se não estou fazendo tudo errado. Eu devia só ter chorado as pitangas e visto anime todos os dias desde o meu diagnóstico? Pensando agora, talvez. Eu me arrependo amargamente desse diário desde o dia em que minhas letras “o” começaram a ficar desengonçadas se escritas de caneta, desde que eu não conseguia mais alcançar a letra “p” no teclado, desde que o reconhecimento de voz me ignora ou não me entende quando eu começo a chorar. 

A tecnologia é uma merda. Não, na verdade, talvez o mundo seja uma merda. 

Talvez seja hora de dormir. Quero aprender mais sobre sonhos lúcidos pra que eu possa sonhar com mundos diferentes onde eu não passo meus dias contemplando a iminência da minha morte — tão inevitável quanto a de qualquer outro ser humano. 

A ideia de assistir anime sem parar por um tempo me parece muito mais aceitável agora que há duas horas, no começo do meu surto. Não sei como fazer disso uma coisa inspiradora, mas… Acho que é isso que eu quero fazer amanhã. 

 

.

 

Oi, essa é uma nota digital de Gustavo/Vader. A Helena me mandou deixar isso registrado aqui, porque partindo de agora eu vou transcrever o que ela disser. Não vou mentir, pensei muito em ser aquele cara que vai se referir a si mesmo como “meu gostoso amigo Tavim” quando chegar uma passagem em que sou citado — nossa, eu até já falei de mim mesmo na terceira pessoa em menos de um parágrafo — mas decidi que isso quebra todo o propósito do caderno dela. Prometo ser sincero e só escrever o que ela disser. Possíveis notas de rodapé serão adicionadas quando eu for rico e famoso e esse livro for publicado em homenagem a mim. Sabe o que vai ser mais estranho? Escrever o que eu mesmo falei usando travessão. Eu com certeza vou me sentir um herói de livro, não dos mais bonitos, nem dos mais inteligentes, e eu sei que a Helena vai brigar comigo se ler essa parte, porque ela me acha o máximo. Talvez só ela e a minha família mais próxima. Eu não sou extrovertido como ela faz parecer (ela disse que não faz), na verdade eu preciso recarregar minhas energias sociais com ela antes de estar com… outras pessoas. Tipo o resto do mundo. A menina da festa de aniversário? Fanfic da Helena. A gente trocou umas mensagens e só. Tem muito pra falar sobre mim e sobre como a visão da Lena torna todas as pessoas muito melhores do que elas realmente são, mas ei, esse não é meu papel. Sou só um amigo fazendo um favor. Acho que essa foi a apresentação mais confusa que eu já fiz… É isso. Eu sou o Gustavo e serei o seu fiel narrador. Devo dizer câmbio? Câmbio. Não, acho que não tem câmbio, eu é que vou escrever o resto. Mas mesmo assim eu só vou estar transcrevendo a Helena, então o narrador na verdade é ela, então é de fato um câmbio. Não sei. Vou deixar essa parte toda em itálico pra Helena olhar depois. Por enquanto, câmbio levemente duvidoso. 

 

Eu acordei tarde e descansada, espalhada na minha cama como uma estrela do mar. Bem quando ia levantar, ouvi um riso baixo vindo da sala e resolvi ativar o modo Helena sorrateira. Peguei minhas muletas com cuidado e fui devagar; coloquei a cabeça do lado de fora da porta como em um desenho animado e conferi o corredor: vazio. Me aproximei aos poucos, mas as conversas não paravam. Eles não pareciam ter a menor consideração pela pobre menina dormindo no quarto depois de ter várias crises existenciais cheias de metáforas complicadas de madrugada. Quando olhei no relógio de parede, eu soube o porquê: já eram onze da manhã. 

— E aí ela falou “não, mas você sabe que vocês são mesmo dois pintinhos” — disse Vader, que estava sentado no centro do tapete cercado pelo que parecia ser uma reunião da minha família. Todo mundo começou a rir. 

Sabe de uma coisa que eu odeio? Autores preguiçosos que usam de uma piada pela metade que pro espectador não tem graça nenhuma só pra introduzir uma cena. Por isso eu fui atrás de entender sobre o que eles estavam falando e descobri que a conversa começou com o Luke querendo saber por que a madrasta do Gustavo nos chama sempre de pintinhos. No fim, não tem explicação, ela só acha que pintinhos são fofos e gosta de brincar que a mãe dele parece uma galinha protegendo os ovos quando fica brava. É só isso. A piada continua sem graça, mas agora todo mundo sabe o contexto. 

— Que reunião esquisita é essa? É meu aniversário e eu esqueci? — perguntei, entrando no meio deles. Sentei no sofá do lado do meu pai porque percebi que seria muito trabalhoso me levantar do tapete depois. — Vocês estão todos de folga?

— Inventaram ontem um negócio que se chama domingo, conhece? — Luke me cutucou nas costelas. Eu me encolhi e disse um “ai”, mas comecei a rir quando ele se afastou com cara de gatinho do Shrek. — Helena, você é maldosa. Credo, não faz mais isso, não tem graça.

— Desculpa, você tá certo. Vocês ficaram esperando eu acordar?

Meu pai colocou o braço em volta dos meus ombros e me abraçou. Eu senti uma leve… tensão?

— O Gustavo veio te chamar pra ver um filme — ele falou devagar, como se tivesse alguma pegadinha. — Mas você tava dormindo, então ele acabou ficando aqui com a gente. Ele é legal.

Às vezes, eu tenho que lembrar a mim mesma que essa não é uma história de comédia romântica. Essa cena não é do pai conhecendo o possível pretendente da filha. Mas ele estava agindo como se fosse, então eu achei justo me divertir um pouquinho.

— Mas nem tem nada no cinema. Só se for no seu paraíso digital, aí eu quero — falei, me referindo ao quarto dele. Fala sério, tem um programa no computador dele que faz os leds perto do teto piscarem em cores diferentes conforme as cores que tem na tela. É realmente um paraíso digital.

Ele pareceu desconfortável na hora. Na verdade, ele parece desconfortável de novo nesse exato momento enquanto escreve isso pra mim. Continua engraçado.

— Ué, pode ser — ele falou. Olhei pras mãos dele: estavam segurando o tapete de um jeito engraçado. Meu pai também ficou tenso na hora. 

Eu mantive o personagem. 

— Dá pra gente ver com aquele seu sistema dos leds e a caixa de som. Eu sei que hoje a Miriam tem aula de inglês depois do almoço, mas o sistema de isolamento de som funciona se a gente fechar a porta, né?

Meu pai e o Gustavo engasgaram quase no mesmo momento. O Luke estava olhando a janela, provavelmente pensando na vida e completamente alheio à minha piada, e minha mãe queria rir tanto quanto eu. Aproveitei a deixa dramática, me levantei com o máximo de delicadeza que consegui e fui escovar os dentes. Quando troquei de roupa, passei pela sala, agarrei o braço do Vader e arrastei ele pra fora, minha mãe estava em uma conversa animada com o Luke sobre… bem, não sei sobre o quê. Meu pai e o Vader ainda estavam em modo estátua, encarando o teto. Ele ficou quieto por um tempo, se deixando ser carregado. Depois que eu fechei a porta e caminhei pra longe, juro que ouvi a voz do Luke falando algo como “pai, com tudo que tá acontecendo, você realmente tá preocupado com sexo?” e pelas orelhas cor de morango maduro do Vader nesse momento, ele ouviu também. 

Caminhamos devagar e quietinhos até a casa dele. Os únicos movimentos que ele fez na minha direção foram quando ele achou que eu ia “tropeçar” com as muletas nas rachaduras da calçada, o que honestamente foi fofo. Quer saber? Falar sobre ele aqui é muito mais divertido considerando que cada palavra é escrita por ele agora. Será que ele está feliz por todas as vezes que me encheu o saco pra ler as partes em que era citado? Deixo a cargo da imaginação de cada um. Será que ele teria vergonha de escrever sobre o momento do sofá, em que eu descaradamente tasquei um beijão nessa boca gostosa? Ok, estou sendo maldosa só pra ver ele com vergonha, já acabei. 

A Miriam não estava em casa, nem a mãe dele. 

— Elas tinham uma reunião de amigas pra ir — ele explicou, quando chamei por elas e não tive resposta. Então estávamos mesmo sozinhos em casa! Eu comecei a rir. Não consegui acreditar em como estava de bom humor depois de tudo que passou na minha cabeça naquela madrugada. 

Enquanto ele parecia querer se fundir com o sofá, cheio de vergonhas bobas, eu resolvi revirar os armários dele e fazer um almoço. Estar sozinha e em silêncio durante o dia era diferente do que eu tinha passado no quarto… Era bom. Eu só queria me concentrar em fazer algo pra comer depois de armar uma cena desnecessária em casa e sair sem comer depois de uma noite contemplativa só pelo bem de uma piada. 

Foi difícil. Quase deixei cair uma panela no meu pé, e me locomover com as muletas era um desafio. A pior parte era me equilibrar pra ficar completamente parada. Mesmo assim, eu consegui! Isso me fez sentir melhor de uma forma que eu não esperava, mas entendi o porquê bem rápido: apesar de tudo, eu estava me virando como podia no momento. Será que em estágios mais avançados da doença eu conseguiria levar a minha vida tão independente quanto possível? Enquanto eu tiver esse pingo de liberdade, ainda terei esperança. 

— O que vai ter aí? — Vader chegou do nada na cozinha, aparentemente recuperado de seu episódio de timidez.

— Carne moída — falei, confiante, mexendo com maestria a carne na panela. É estranho como o nível de intimidade afeta os nossos comportamentos, quer dizer, eu simplesmente cheguei na casa do menino e tirei a carne da geladeira dele pra fazer. — Com pão — acrescentei, e ele ergueu as sobrancelhas. — Que você vai sair agora pra comprar ali na esquina. 

Ele me olhou com cara de morte, porque tínhamos acabado de subir de elevador e sozinho ele preferiria encarar aquelas escadas enormes… Mas foi. 

Assim que ele saiu, eu fiquei assustada. A Miriam é vegana. Por que tinha carne moída nessa casa? Fiquei pensando nisso até ela ficar pronta, então fiquei longos minutos encarando a panela. Cheiro de carne, aparência de carne.

— Não é carne de verdade — disse um Vader ofegante com um saquinho de pão na mão, enquanto colocava suas chaves em cima da mesa e olhava pra mim com um sorrisinho engraçado. — Você tá olhando pra ela com uma cara estranha. Relaxa, é carne vegetal. 

Olhei pra ele por um momento. Já era a segunda vez em pouco tempo que ele lia meus pensamentos sem que eu precisasse dizer nada.

— Você tá dentro da minha cabeça? —  reclamei. — Não gosto disso. 

Ele chegou pertinho.

— É o poder da amizade! 

Aproveitei pra olhar ele de perto e conversar direito: 

— Desculpa por te deixar com vergonha, eu só queria fazer uma piada. Se serve de consolo, foi uma piada engraçada. 

Ele pegou guardanapos pra gente e tirou os pães do saquinho. 

— Eu gosto das suas brincadeiras. O problema foi achar que seu pai ia me chutar até a lua. — Ele parou por um momento e encarou o nada. Depois, como se não tivesse acontecido, deu uma risadinha. — Mas você tá certa, foi engraçado. Além do mais, não é como se a gente tivesse um motivo real pra fechar a porta além do sistema de isolamento sonoro.

— Você acha que a gente não tem? — brinquei. Foi uma brincadeira

— E temos? — Ele ergueu as sobrancelhas. 

Preciso fazer uma pausa. Não achei que ia ser difícil contar essa parte, mas agora eu também fiquei com vergonha. Talvez no futuro a gente devesse, sei lá, deixar um gravador rolando e o Vader transcreve sozinho, pelo menos é menos um pra ficar tímido em uma conversa altamente constrangedora em que parece que a gente tá revivendo tudo; eu estou me esforçando muito pra não fazer do momento de escrever a história uma parte da história, mas com o Gustavo me olhando com essa cara engraçada fica cada vez mais difícil. 

— Não, por enquanto — eu respondi. — Mas sei lá. Se algum dia você tiver vontade de me beijar de novo, eu tô dando um sinal verde de que eu não acharia ruim. Só se a situação surgir de novo, sabe?

— Tá. — De alguma forma, ele parecia muito bem, apesar de eu estar me sentindo uma bobona. — Do meu lado também. Se você quiser me beijar de novo algum dia, tudo bem por mim.

— Então a gente nem precisa se avisar? Só chegar e beijar?

— Só chegar e beijar, por mim. — Ele parecia estar falando sério. O clima de brincadeira tinha sumido. Mesmo que seja… estranho, eu também estava. — E por você?

Fiz que sim com a cabeça.

Só pra dar um spoiler: ainda não aconteceu, o que não quer dizer que não vai, mas também não quer dizer que vai. Só uma possibilidade em aberto. 

Comemos em silêncio depois disso, mas só precisou de alguns minutos pra deixar de ser um silêncio constrangedor com dois adolescentes bestas querendo enfiar a cara no tapete. No fim, ficou normal. Éramos só nós, Helena e Vader, como sempre fomos. Estávamos normais de novo. Quando ele lavou nossos pratos, olhou pra trás e perguntou:

— O que você quer fazer hoje?

Eu não precisei nem pensar pra responder.

— Absolutamente nada.

De fato, fomos pro quarto dele, ligamos o sistema de led e escolhemos filmes de anime bobinhos pra passar a tarde toda. A porta ficou aberta, porque não tinha motivo de isolar o som sem ter ninguém em casa, e não tinha motivo pra fechar senão isolar o som. Eu fiz um rolinho com as cobertas dele em volta do meu corpo e ele ficou do meu lado, descoberto como o calorento miserável que é. Não sei quando paramos de falar e ficamos completamente imersos nos filmes, nem sei quando a gente chegou mais perto até ficarmos apoiados um no outro. 

Eu senti cada um dos meus músculos naquele dia. Senti como foi difícil ficar de pé pra fazer o almoço e me coordenar com as atividades simples de cozinhar, e como foi fácil deitar sem fazer nada. E eu não estava triste com isso.

Talvez eu tenha finalmente achado a altura certa pra voar com as minhas asas de cera. E, se eu for alto demais, sei que vou ter pessoas que eu amo pra me segurarem se eu cair. Ícaro porra nenhuma.

Aqui quem fala é a Helena (com a ajuda do Vader), 

Câmbio e desligo. 


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Notas finais do capítulo

Então... é isso. Me conta aqui nos comentários se gostou, ou se tava com tanta saudade dessa história quanto eu hahaha muito obrigada por tudo. Se você tá aqui, quer dizer que me acompanha de verdade.
Beijinho!



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