O medo da guerra escrita por Kash
Era noite cerrada quando mais uma bomba caiu.
O baque surdo enganador, com a sua máscara de inocência, foi logo sobreposto por um estrondo que nada tinha de inócuo; o som da morte e do desespero veio para substituir a calma e aparente amenidade.
É com um olhar frio que se concebe a guerra, não mais do que um amontoado de números armazenados em livros. Mas quem é que nos permite olhar assim para as pessoas, para as almas das vítimas que não têm opção senão deixarem-se ceifar, abandonadas à sorte daqueles que ditam as regras? Enquanto seres humanos, que tamanha soberba é necessária para achar que podemos ser melhores, mais valiosos que outros da mesma espécie e origem?
Uma senhora agarra-se a mim — mal lhe vejo a face, mas sei que chora.
Está coberta em pó. Pede-me, implora-me que lhe salve os dois filhos soterrados pela explosão. Seu olhar torna-se opaco quando percebe que já não há nada a ser feito, e o seu luto junta-se ao de outras dezenas de famílias que, como ela, perderam ali partes da alma.
Poucos são os que ainda têm capacidade de chorar; aqueles a quem a angústia não sufoca as lágrimas.
Imagens como esta serão transmitidas para todo o mundo. Causarão choque nas famílias que, no conforto e segurança das suas casas, sentir-se-ão incomodadas por instantes, até escolherem ignorar ou esquecer. É sempre uma realidade que parece muito distante para que nos aborreçamos — não são os nossos pais que morrem na guerra, nem os nossos irmãos que lamentam sobre os corpos uns dos outros.
Não está nos livros de história o pranto das mulheres que perderam os seus maridos, ou o choque nas faces das crianças que se habituaram cedo demais ao medo e à incerteza. Não há lá senão números, datas, nomes. Falta informação; o constante temor e desalento, tão comuns e, mesmo assim, tão ignorados.
A função de um médico, durante a guerra, não é só de tratar os feridos. O médico é um sinal da morte — é de nós que um pai tem que ouvir que sua família não sobreviveu, e é em nós que, mesmo assim, deposita a sua fraca fé.
Mas a verdade é que nem mesmo nós mantemos a esperança.
Vemos pessoas que se agarram com força aos motivos que têm para viver, e muitas outras que perderam o pouco que tinham e agora vagam pelos corredores, como almas sem rumo ou propósito. Vemos histórias de sobrevivência, mas também de tormento e tristeza.
Criticamos a indiferença, mas temos que ser indiferentes; porque é com frieza que, durante o caos, se protege a sanidade e a compaixão.
Como se diz a um pequeno que não voltará a ver os pais, que perdeu tudo o que tinha no mundo? Como se consola uma criança que se culpa pela própria sobrevivência?
Pessoas que já perderam tanto não precisam de mais lágrimas senão as delas próprias. E é então que nos tornamos insensíveis — de tanto ver, passamos a não sentir.
No meio de um inferno, o que me assusta não são os ataques aéreos, as bombas. Não é a visão da morte ao início de cada dia. Assusta-me que chegue um dia em que já não sentirei a empatia, o luto que sinto por cada história que passa por mim. Assusta-me perder a emoção ou a capacidade de chorar. Assusta-me tornar-me desumano; em nada melhor do que aqueles que, por vontade própria, ignoram e esquecem a dor alheia. Ou, pior, desprezam-na.
Olho à minha volta e vejo choque e amargura. São poucas as faces que mostram alívio — as poucas que ainda têm algo pelo que lutar.
A guerra arranca-lhes a dignidade e a condição de ser humano; a nós, destrói a sensibilidade.
Durante este tormento, receio que um dia o dever de parecer frio se torne mais do que um necessitar, mais do que uma obrigação, e traduza-se em puro torpor. Temo pela minha humanidade tanto quanto temo pelas pessoas que me rodeiam, cujas histórias ouço todos os dias.
Tornamo-nos tão diferentes do que éramos e, no fundo, é a mesma incerteza do amanhã que assusta a todos: não saber se ainda iremos viver, ou se ainda nos acharemos capazes de chorar, quando outra bomba cair.
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