Lucca escrita por littlefatpanda


Capítulo 27
XXVI. Children


Notas iniciais do capítulo

E aí, gente linda? ♥

O nome do capítulo faz brotar na minha mente (toda santa vez) aquela música do Creed: "Children, don't stop dancing, believe: you can fly. Away, away". Hahahhaa. Vou confessar: até combina com o capítulo!

Vocês sabiam que, orfanatos como ditos cujos, não existem mais? Ou melhor, em todo o mundo, existem muito muito poucos? Eu tava vivendo em uma caverna. #mortaestou.

Boa leitura! ♥



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Junho

Algumas semanas se passaram até que o psicólogo atual de Lucca autorizasse a visita à uma instituição infanto-juvenil. Especificadamente, a visita à instituição acolhedora Humanitarian Hope, sugerida por Lisa e indicada por Gloria. Tratava-se de uma instituição residencial de acolhimento, com crianças de até dezoito anos, e embora tomasse conta de mais de trinta crianças e adolescentes, a instituição já não mais era considerada um orfanato, embora abrigasse um número alto de crianças. Haviam poucos destes restantes no país, visto que este tipo de sistema estava sendo derrubado aos poucos, em direção à um melhor e mais eficiente para as crianças acolhidas. E a HH já havia evoluído muito neste aspecto, desde o momento em que fora fundada quase sessenta anos antes. 

Nigel sugeriu que Abigail ficasse em casa desta vez, porque a mulher estava tão preocupada com a reação de Lucca que acabaria deixando-o nervoso por si só. Com isto, foram apenas os dois no veículo já mais antigo do que o Walker gostaria de admitir, em direção à cidade vizinha, Geneviel. Nigel, apesar de apreensivo com a viagem, pôde observar que Lucca não parecia estar querendo sair pela janela, embora tivesse o corpo inteiro tenso pelo movimento do carro. Já houvera começado a acostumar-se com tal. 

A fachada principal era um tanto simples, assemelhava-se à uma comum residência, embora fosse enorme e bem conservada com o tempo. O portão era simplório, e não havia qualquer tipo de segurança antes que o grande caminho esverdeado acabasse na entrada da residência. Os dois permaneceram ali, no porche de entrada, após tocarem o interfone e anunciarem seus nomes, antes de passarem para o hall de entrada, onde havia um grande e sério segurança e uma secretária. 

Tão logo ajeitaram suas identificações, uma das professoras com tempo livre apareceu para acompanhá-los na visita, a Srta. Julia.

— Não estamos muito acostumados com visitas, para falar a verdade — disse ela, com um sorriso de canto, ao indicar-lhes as duas grandes portas em direção à instituição. — Geralmente, temos três, quatro escolas que trazem os estudantes para conhecer um pouco desta realidade e para contribuir. Este ano recebemos apenas uma e um jornalista que estava pesquisando esta área. 

Nigel assentiu, enquanto Lucca se perdia nos detalhes da sala principal. Os quadros, os retratos, os móveis lustrados, o lustre antigo, um segurança - que de segurança nada exalava, devido aos traços simpáticos e a idade - até pararem em um grupo de crianças muito pequenas. Eram cerca de seis, entre quatro e nove anos, e estavam sentados em forma de índio no tapete, de frente para uma professora, que lia uma história com bastante desenvoltura. 

— Estamos muito contentes em recebê-los, na verdade — continuou ela, relanceando Lucca. — Sabemos da história de Lucca, é claro, por conta da televisão e por ter ocorrido logo aqui ao lado. — Nigel assentiu, mas Lucca sequer prestava atenção, com os olhos fixos nas crianças. — Apesar de haver sido uma honra recebê-lo sob nossos cuidados, ficamos muito felizes que ele tenha encontrado uma família sem acabar no sistema. 

Nigel sequer conseguia pensar a respeito, sobre ter Lucca longe deles no momento, já que o garoto havia iluminado aquela casa. 

— Obrigado, nós também. — Sorriu, passando uma das mãos sobre os cabelos desgrenhados de Lucca, que despertou do transe e ergueu os olhos negros para o Walker. — Quantos vocês abrigam? — perguntou ele, interessado, ao voltar a atenção à Julia. 

— No momento, temos trinta e oito crianças e adolescentes — respondeu ela, não deixando passar desapercebido a surpresa do mais velho. — Eu sei, são muitas. Este é um dos principais motivos que levam à instituições como a nossa fecharem. 

— Oh, eu não quis dizer... 

— Não se preocupe — interrompeu ela, sorrindo. — Temos assistentes sociais, professores, orientadores, enfermeiros, uma médica, pedagogos, guardas, estagiários. Somos uma grande equipe, que compensa o número de abrigados, e estamos totalmente dentro da lei. — Era possível ver, antes que chegassem nas grande portas pelas quais passariam em seguida, a quantidade de portas que desencadeavam em salas adaptadas para estudos, lazer e brincadeiras.  — Venham, estamos quase lá. 

Assim que passaram pelas ditas portas, encontraram-se em um pátio enorme, e também encontraram a explicação de como podiam haver trinta e oito menores residindo, estudando e dormindo por ali. 

Havia um grande espaço de pátio, ao ar livre, com desenhos feitos com giz no chão de pedra, que provavelmente sairiam na próxima chuva. Nas laterais deste, havia uma área destinada à quadra de esportes, outra para uma pracinha e outra para um grande e bonito jardim bem-cuidado, todos cobertos mas visíveis de onde eles estavam. E após o prédio principal e o pátio, haviam mais dois enormes prédios que, ao contrário do primeiro, pareciam ter sido construídos bem depois, com toda a estrutura mais moderna. 

— Do lado direito — apontou ela, para o maior edifício — ficam os dormitórios. São separados lá mesmo entre o feminino e o masculino. E do lado esquerdo, é o prédio destinado às aulas — finalizou, enquanto os outros dois passavam os olhos pela menor estrutura, de apenas um térreo. 

— Uau, é bem maior do que eu pensava — confessou Nigel, olhando ao redor. Ao observar, pôde perceber o porquê da segurança ser escassa na parte principal. Em torno de todo o condomínio, havia um grande e alto muro de pedra, com um sistema de segurança. 

— É grande, sim, mas é apenas o suficiente para a quantidade que temos — confessou, erguendo os ombros. — É seguro afirmar que estamos lotados. 

— E qual a média de idade deles? 

— Recebemos crianças e adolescentes até os dezoito anos. Depois disto, não podemos fazer muito a não ser deixar a lei seguir seu curso. — Julia relanceou Lucca, que sequer parava os olhos em um ponto específico, com curiosidade. — Mas a maior parte são adolescentes entre doze e dezesseis anos. Os mais novos eram aqueles que estavam na sala principal, e a mais nova tem quatro anos. — Nigel arqueou as sobrancelhas. — Ela chegou aqui com três e acho que foi a mais nova a vir parar aqui na última década. 

— São todos órfãos? — volveu a perguntar Nigel, curioso. 

— Não. Na verdade, poucos deles são. A maioria apenas acabou no sistema por um infortúnio, voluntária ou involuntariamente, pela incapacidade de ficar com a família por motivos diversos. E claro, se não houverem outros parentes que possam ou queiram abrigá-los. Em geral, o tempo deles aqui é curto e temporário. Nós só fazemos o possível para que esta experiência não se torne, de todo, desagradável. 

Ao passo que contava sobre as regras da instituição e contava histórias emocionantes sobre os jovens, Julia mostrou o máximo que podia de todo o local. Nigel permaneceu atento, já que sabia muito pouco sobre aquelas instituições e orfanatos, e estava gostando bastante da experiência. Lucca permaneceu em silêncio, mas Nigel soube que não era por desagrado. 

Lucca, conforme ouvia as palavras de Julia, já compreendia mais ou menos como as coisas funcionavam ali. As aulas que tinha toda semana com a Sra. Jones eram muito esclarecedoras e todo o monstro que havia em sua mente de coisas desconhecidas ou que simplesmente não compreendia passava a iluminar-se aos poucos com elas. E quanto mais esta parte de sua mente recebia um pouco de claridade, mais facilmente o que lhe era dito fazia sentido. 

A ideia principal era que Lucca conhecesse pessoas de sua idade, ou de algo aproximado disto. Foram levados, então, à uma das salas de aula, onde haviam poucos alunos espalhados por ela e um professor entusiasmado. 

Lucca foi apresentado para a toda a turma e, embora se sentisse em estado de alerta pela quantidade de pessoas não tão sensatas quanto adultos, cedeu rapidamente à tentativa de conhecê-los. 

Julia os deixou ali, sentados bem atrás da pequena sala para não chamar tanta atenção - o que não era possível, de qualquer forma -, enquanto observavam o restante da aula e Lucca se acostumasse com a proximidade. 

A sala de aula, embora diferente da convencional, tanto vista na televisão ou falada ao seu redor, fez bastante sentido para Lucca. Era fascinante ver aquilo desenrolar-se à sua frente. 

Haviam apenas nove alunos naquela aula tão informal, de matemática, na média de idade de catorze anos. Apesar de intrigado com o avanço daqueles números que eles estavam estudando - muito mais avançado que a parte onde Lucca parara com a Sra. Jones -, a atenção de Lucca acabava sempre nos alunos que, vez ou outra, olhavam para trás. 

O que também havia de distinto se comparado à televisão eram as vestimentas normais deles, nenhum uniforme, embora isto sequer chamava atenção em comparação ao resto. As posturas entediadas de alguns e atentas de outros pareciam comuns à um primeiro olhar, mas o silêncio à parte da voz do professor era como se gritasse. Nos filmes, não era assim que funcionava, eles geralmente não ficavam quietos. E nos filmes, não havia aquele elefante enorme na sala. 

Era o que mais discernia aqueles meninos e meninas da televisão: aquela pontada de melancolia que parecia tomar forma entre eles. E justamente aquela diferença é que deixava Lucca confortável naquele canto da sala, e normal, porque o mesmo havia dentro dele. Neste quesito, aquele lugar fazia total sentido para Lucca, enquanto que o demonstrado na televisão era tão estranho quantos as pessoas nela. 

Quando a aula acabou e eles se dirigiram para o pátio, assim que Lucca pôs os olhos neste, pôde perceber que havia uma quantidade significativa de garotos e garotas jogando futebol. E aqueles que saíam da mesma sala de aula que ele, lhe direcionando olhares curiosos, também se dirigiram para a partida. 

Antes que Lucca pudesse falar com Nigel, uma mãozinha fechou-se em seu pulso. Lucca arregalou os olhos, e faria menção em afastar-se no mesmo segundo, se não visse que a criaturinha era ainda menor que ele e tinha grandes olhos castanhos curiosos em si. 

— Você tá perdido, moço? — perguntou a garotinha, de aproximadamente uns sete anos de idade, com as palavras enroladas devido à chupeta em sua boca. 

Estando ali há mais de um ano, Heather já conhecia todos os rostos. Sempre que alguém novo chegava, ela sabia do que se tratava. Era muito esperta para sua idade. 

— Não. — Lucca franziu o cenho, encarando a mão que ainda segurava seu punho. — Você tá? 

— Não. 

Nigel reprimiu um riso, relanceando a mulher responsável pela garota, que também sorria para a cena. Aparentemente, ela estava cuidando apenas da menina, e ao perceber o rosto inchado e os olhos levemente avermelhados, Nigel supôs que tivesse a ver com o prévio choro. 

— Seu cabelo é estranho, sabia? — perguntou ela, largando o pulso de Lucca para apontar para os cabelos desgrenhados, os olhos castanhos fixos neles. 

— Heather! — repreendeu a mulher, atrás dela, mas com um sorriso. — Você sabe que não se deve dizer coisas rudes às pessoas. 

— Mas é verdade — murmurou ela, atrás da chupeta. 

Lucca permaneceu com os olhos negros por sobre os da garota. Ela era alta para alguém de seis anos, embora Lucca não soubesse disso, tinha os cabelos castanhos como os olhos e a pele alva. As roupas eram coloridas e os cabelos tão lisos que pareciam querer sumir, estavam presos em um elástico que pendia pro lado da cabeça, de maneira fofa. Toda ela era fofa, talvez por isto Lucca não conseguia desviar o olhar. 

— Meu nome é Heather. Olha — disse ela, indicando o blusão que dizia na costura seu nome, com cada letra de uma cor diferente. — Viu? Heather. H-E-A-H... Não — resmungou, puxando a blusa e tentando enxergar. — H-E-A-T-H-E-R. Heather. 

— Lucca — disse simplesmente, sob o olhar de Heather. — Não diz na minha roupa. 

Lucca piscou, sem saber o que mais dizer, mas tendo aquele impulso involuntário de querer apertar as bochechas da dita Heather. Quando foi a última vez que deparou-se com uma criança que não fosse ele mesmo? 

Mas antes que sua mente lhe respondesse com rapidez, Lucca fez questão de travar o fluxo das memórias, já de forma automática. No meio do processo, a garotinha começou uma discussão muito bem articulada sobre como garotas podem falar o que quisessem e como cabelos podiam ser complicados, já que, segundo ela, haviam diversos tipos diferentes. 

Com um último pedido de desculpas por parte da educadora, elas se retiraram de mãos dadas. 

Nigel despertou o garoto do transe com a risada. 

— Que gracinha. — Referiu-se à garota. — Às vezes eu esqueço que você é mais velho do que aparenta, Lucca. 

Lucca assentiu, sabendo que isso era verdade. Afinal, ouvia a mesma coisa diversas vezes. Não que desgostasse, mas era impossível ignorar algo que se repetia várias vezes. 

— Você está gostando? — perguntou Nigel, enquanto eles caminhavam para mais perto da partida. — Quer ir embora, talvez? Temos mais alguns minutos, mas se você quiser ir antes, não tem problema. 

— Não — disse ele, rapidamente, ao focar os olhos negros nos azulados de Nigel. — Quero ficar. 

— Muito bem. — Nigel sorriu, enquanto atravessavam o pátio para a cobertura externa do prédio principal. — Ficaremos o restante do tempo, então. 

Ali havia uma maior quantidade de adolescentes, cerca de catorze no pátio de pedra, jogando, onde haviam os desenhos embaçados feitos de giz, e mais ou mensos a mesma quantidade na quadra destinada para as partidas. 

Assim que Nigel e Lucca decidiram sentar nos bancos de pedra que ali haviam, de frente para a partida no pátio principal, de pedra, caíram em um silêncio confortável. O silêncio, em si, era a maior característica em comum entre eles, já que ambos pareciam totalmente confortáveis com o mesmo. 

Nigel notou que a partida à sua frente era mais livre que a do lado, os rapazes e garotas não jogavam à sério no princípio, já que conversavam ou resmungavam entre si no meio da partida. Depois é que começaram a jogar de verdade, sempre alguns relanceando os dois intrusos. 

Julia apareceu novamente, perguntando como havia sido, se eles haviam tido algum problema. Nigel levantou-se e foi conversar com ela, afastando-se um pouco para dar um tanto de privacidade para Lucca, onde ainda pudesse manter um olho nele. Ele não parecia querer fugir pra lado algum, desta vez, de qualquer forma. 

Lucca estava fazendo um esforço enorme para bloquear o rumo dos seus pensamentos, só que quanto mais via aquela garotada e mais tempo permanecia ali, mais difícil se tornava. Em grande parte, tinha a ver com o fato de que crianças nunca foram algo totalmente desconhecido para Lucca. Crescera com crianças, ou ao menos, crescera com elas até ser abandonado. 

— Venha, Lucca. É só fazer o que eu digo — dizia Kai, aprontando-se para escalar a árvore. Lucca optara por permanecer onde estava, com os olhos assustados olhando ao redor por alguma indicação de que seriam pegos. — Não tem muito mistério, vamos! 

Lucca piscou, desviando o olhar da partida para as próprias mãos em seu colo, mas sequer estava ali.

As mãos tremiam, e eram da metade do tamanho que tinham agora. Ele girou o rosto para olhar em torno da floresta. Os moradores trabalhavam em seu entorno, e foram eles que haviam os visto, mas nada disseram. E os tiranos, como eram chamados, fumavam, conversavam, e vigiavam, sempre com aquelas armas em mãos ao vagar pelo terreno. Lucca e Kai estavam atrás de uma tenda, onde havia aquela árvore fácil de escalar, ao menos para Kai, e traquineiro do jeito que ele era, decidiu que era hora do mais novo aprender a fazê-lo também. Gargalhou ao parar os olhos verdes nos olhos arregalados do menor. 

— Ah, Lucca — disse ele, com humor, quando o garoto três anos mais novo esfolou o joelho e as palmas das mãos na primeira tentativa. Kai limpou-lhe as lágrimas, com cuidado, acabando por sujar o rosto de Lucca devido à sujeira de suas mãos. — Você ainda tem muito o que aprender. 

Lucca piscou, voltando à realidade, embora houvesse checado para ver se suas mãos tremiam mesmo. Ao confirmar que sim, fechou-as em punho, tentando engolir o nódulo na garganta. 

Alguns minutos se passaram antes que um dos garotos deixasse a partida e corresse para beber água em um bebedouro ao lado do banco em que Lucca se encontrava. 

O garoto negro, com uma cicatriz não tão bem disfarçada na bochecha esquerda, tinha os olhos castanhos em Lucca quando terminou o que fazia. Fez uma careta, dividindo o olhar entre ele e a partida e logo parando nele. Suspirou, ajeitando o boné já velho na cabeça, e sentou-se ao lado de Lucca. 

— E aí, cara? — chamou a atenção de Lucca, embora o garoto estivesse bem ciente de que seu espaço pessoal estava quase sendo ultrapassado por um desconhecido. — Quer jogar uma partida com a gente? 

Lucca, com os olhos escuros sobre a expressão entediada do garoto ao lado, demorou alguns segundos antes de negar com cabeça. 

O garoto voltou a portar uma careta no rosto, analisando Lucca com cuidado. — Tem certeza? 

— Certeza — afirmou ele, franzindo o cenho. 

Só que o garoto não se retirou. Pelo contrário, permaneceu ao seu lado no banco, com uma distância razoável entre eles, e o corpo meio virado para o lado de Lucca. Os olhos castanhos, é claro, percorriam todo o rosto e as roupas de Lucca em uma análise um tanto involuntária, assim como a careta em seu rosto. 

Ele aparentava ter mais ou menos a mesma altura de Lucca, os cabelos curtos e crespos quase todo tapado pelo boné de cor vermelha, e roupas ainda mais largas que as que Lucca costuma usar. 

— Tá, ok — murmurou o outro, com lentidão ao ainda analisá-lo. — Agora... — Fez uma pausa dramática ao sorrir de canto. — O que há com você, mano? — Lucca piscou algumas vezes, atordoado. — Não, é sério. — Então, riu-se. — O que 'cê tá fazendo aqui, afinal? Qual é a sua? — Então, forçou uma seriedade para indicar que queria mesmo uma resposta, apesar de divertido com a situação. — Sério mesmo. 

Lucca, apesar de não ser burro e compreender as palavras que saíram da boca do garoto - algumas, ao menos -, não entendeu de todo a junção delas na frase. Sem compreender, não tinha exatamente uma resposta, o que contribuiu para mais um árduo silêncio. Desta vez, com um enorme ponto de interrogação desenhado em sua testa. 

— E sério, qual é a das pantufas? — acrescentou a pergunta, balançando a cabeça com incredulidade ao encarar os enormes Pikachu's em seus pés. 

Lucca também desviou o olhar para as pantufas amarelas, mas ponderou se tinha mesmo que explicar o porquê de não gostar de calçados. 

O garoto arqueou as sobrancelhas, também com um ponto de interrogação pairando ao seu redor, ao tentar estimular o segundo garoto a responder. Quanto mais tempo o silêncio prosseguia, maior a desconfiância de ambos os garotos aumentava. 

— 'Cê não é analfabeta, né? — perguntou, aproximando-se um tanto para ver se podia ver a resposta estampada na testa de Lucca, ao que parecia. 

— Não. 

— 'Cê tem alguma deficiência, será? — volveu a perguntar, desta vez em um murmúrio, mais para si mesmo, encarando o outro com certa perturbação. 

— Não. Você tem? 

O garoto desconhecido encara Lucca pelo que parece uma eternidade antes de deixar-se rir mais uma vez. 

— Se ter uma vida de merda é um tipo de deficiência, então eu tenho. E das grandes — acrescentou, embora a brincadeira tivesse um quê de realidade. Não que Lucca tenha captado qualquer brincadeira na brincadeira, mas ele não tinha culpa se entendia as coisas ao pé da letra.   

— O quê? 

— Cara, que idade 'cê tem, maluco? — perguntou o outro, embora não fosse sua intenção ser mal-educado. Era apenas o jeito que era acostumado a falar, ele e todos os outros. Não que Lucca se importasse também. 

— Dezesseis — limitou-se a responder, porque não sabia dizer se era realmente maluco ou não. 

— Dezesseis — testou o outro, duvidoso, ao voltar a encarar Lucca dos pés à cabeça. — Certo. Então 'cê é de outro mundo, cara. 

— Eu sou — respondeu ele, simplesmente, pensando que viera de um mundo cheio de árvores, liberdade e solidão. Agora já tinha a absoluta certeza de que as pessoas não costumavam crescer em florestas. 

A careta do outro apenas se aprofundou ao encarar Lucca com total incredulidade, como se ele realmente fosse maluco. 

Passados alguns segundos de mútua análise e ceticismo das duas partes, Lucca relaxou. 

Pela primeira vez, enxergou sensatez em uma pessoa. Não que conhecesse o garoto, mas a desconfiança que havia naqueles olhos castanhos ao olhá-lo dos pés à cabeça, trazia a sensação de que finalmente conhecera uma pessoa normal. Porque não era normal confiar na pessoa sem antes conhecê-la, como todos faziam, e o indivíduo ao seu lado parecia compartilhar do mesmo pensamento. 

— Tyler — apresentou-se, por fim, ao também relaxar os ombros. Estendeu uma das mãos para Lucca. 

— Lucca. 

O rosto de Tyler se retorceu mais uma vez ao perceber que sua mão não seria, sob hipótese alguma, tocada pela mão de Lucca no comum cumprimento. Lucca pensou que nunca havia visto tanta expressão facial na vida quanto agora, e elas nunca eram a mesma em Tyler. 

— Falou, mano. — Lucca piscou de novo, mas o outro nem pareceu perceber, baixando a mão em desistência. — Por que está aqui? — perguntou uma segunda vez, os olhos curiosos sob Lucca.  

— Estou visitando. 

— Sim — falou o outro, devagar, como se Lucca fosse retardado —, mas por quê? 

Lucca permanece em silêncio, pensando numa resposta razoável para o garoto desconhecido. Não encontrou nenhuma que fizesse sentido. Estava ali porque lhe fora sugerido, ou porque a Dra. Lisa e seu novo psicólogo acharam que seria bom, ou porque precisava conhecer mais pessoas, como ouvira a tia Abigail dizer. O que tudo isto significava, aí sim lhe escapava a compreensão. 

— Ok. Eu desisto. — Ergueu as mãos, balançando a cabeça ao soltar um riso pelo nariz. 

— Ei, Tyler! — chamou outro dos rapazes, com as mãos erguidas, e Lucca pôde ver tatuagens nelas. — Qual é, mano? Estamos no meio de uma partida, cacete! 

— Chad! — repreendeu a Srta. Julia, com os olhos semicerrados, já que ainda estavam próximos da quadra e ele havia praticamente berrado. — Os modos. 

— Sim, professora. Desculpa, professora — gritou em um tom entendiado e automático, como quem já está acostumado com as repreensões. — Vamos, Tyler! 

— Não espalha, mas odeio futebol — disse Tyler, inclinando-se para que Lucca ouvisse. Então, balançou a cabeça com tédio. — Sim, 'tô indo! — berrou para Chad, que deu as costas, chutando a bola para uma das garotas. — Até mais, estranho — deixou por último, ao levantar-se e focar os olhos em Lucca. 

— Até mais — repetiu ele, embora no fundo não quisesse que o garoto fosse.  

— Se você vier visitar — deu ênfase no verbo, desconfiado que os pais de Lucca quisessem largá-lo por ali como muitos fazem — de novo, vê se traz um lanche pra gente dividir. A comida daqui enjoa pra caralho. 

Lucca sequer teve tempo de responder antes que Tyler desse as costas depois de um aceno estranho e corresse para o meio da partida novamente. 

O garoto dos cabelos emaranhados permaneceu ali, ora observando o jogo, ora bloqueando memórias incômodas, até que Nigel parasse à sua frente. Com os cabelos cabelos esbranquiçados curtos, a roupa quase em seu total da cor cinza, e as mãos nos bolsos, ele sorriu de canto. 

— Vamos pra casa? 

Lucca ainda demorou os olhos negros na quadra onde os adolescentes estavam, mas assentiu em seguida. 

O percurso para casa inicialmente foi tomado de perguntas por Nigel, querendo saber se ele havia gostado, se queria voltar mais vezes, o que lhe havia sido dito pelo garoto do boné vermelho, se ele havia feito amizade. As respostas foram curtas e em sua maioria, positivas. Só que Lucca não soube o que pensar sobre "haver feito amizade".

Como exatamente se faz uma amizade? 

Perdido em seus próprios pensamentos tumultuados, então, o restante do percurso foi feito em silêncio. Nigel até quis dar um descanso para o garoto, visto que no momento em que chegasse em casa, perguntas iriam chover em sua direção e não tão discretas quanto as dele.

Sorriu, sozinho, relanceando Lucca mais uma vez. Mal sabia ele que os pensamentos de Lucca acerca da instituição houveram sido todos interrompidos e substituídos por algo que recém houvera digerido.

Ele estava indo para casa, porque ele tinha uma casa agora. 


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Notas finais do capítulo

*Mudei a linguagem dos guris no fim em português porque a linguagem dele fica diferente no inglês também (supondo que este é o idioma original da história). Estou falando das gírias e daquele jeito doidão que o pessoal da área de onde eles vieram costumam falar. Hhahahah. Tudo bem? 

IMPORTANTÍSSIMO:

GENTE, eu não queria dar spoiler pra vocês. Mas já faz um tempo que eu troquei a categoria de Lucca de yaoi pra shounen-ai (caso tenha sido isto que te fez vir aqui, sinto muitíssimo, foi bocabertisse minha! Perdão!), mas isso não foi por eu ter mudado a história. A história é a mesma, só que eu fui bocaberta e eu não lembrava que "yaoi" também significava que haveria sexo na história, só lembrei do boyxboy. Essa parte mais física entre eles não era algo que eu havia planejado (tipo, nunca), embora eu tenha pensado em deixar em aberto (vocês sabe como leitores são ahahahahhah) e mudar os avisos só depois, caso eu decidisse escrever algo a respeito. SÓ QUE, meus queridos, eu me dei conta que a história já está no capítulo 26 (27 na contagem com prólogo), e enquanto eu revisava meu rascunho de planejamento, me dei conta também de que ela vai ficar bem mais longa do que eu planejava. Isso quer dizer que, qualquer coisa extra, ou fora do que eu havia planejado, provavelmente irá permanecer assim.

Tsc. Eu não sei porque minhas longfics saem looooooong mesmo, e pra caralho. Hahahhahahaha.

MINHA PERGUNTA É A SEGUINTE: vocês se importam que chegue, sei lá, aos 60 capítulos? Porque eu acho muita coisa, só que se eu encurtar, vai mudar totalmente a essência da fic, e os capítulos geralmente são razoáveis, com a média de 3k palavras (ao contrário de MOF, por exemplo, que eu diria a média ser 5).

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam! ♥



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