Inquebrável escrita por Larissa Carvalho, MorangoeChocolate


Capítulo 16
Time, Truth and Hearts


Notas iniciais do capítulo

Hellou, galera!
Perdão pelo atraso! Esse capítulo está imenso e não gostamos de dar ponto sem nó! Esperamos que gostem! Ah, para quem gosta de ter uma visualização melhor de alguns detalhes, vou deixar uns links nas notas finais.
Sem mais delongas, boa leitura!

xx



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/727942/chapter/16

“Minha mente é um lugar agridoce

Sempre deixa um gosto agridoce

Quando eu vou lá, não quero ficar

Vamos visitar outro dia

Mas humano é uma doença difícil, sim, está me matando lentamente”

Horizon – Hollyn

 

   A claridade atingiu meu rosto, me fazendo esfregar os olhos e abri-los vagarosamente. Me estiquei de forma preguiçosa, senti meu corpo dolorido e minha cabeça latejar. Lentamente comecei a me recordar de ontem: febre, mal-estar, lasanha, medicação, Alberta, fadiga, Dimitri, sopa... Dimitri?! Me lembro de tomar sopa e de sentarmos no sofá para assistirmos um filme e depois... bom, depois tudo se tornou um borrão gigante. Flashes de estar flutuando em uma nuvem, Dimitri me abraçando.

   “Eu estava delirando ou ele tinha me abraçado até que eu pegasse no sono? Será que ele ainda está aqui?”

   Sentei devagar, ainda sentindo como se um caminhão tivesse passado por todo meu corpo muitas e muitas vezes, sem pausas. A dor de cabeça começava a aumentar gradativamente. Olhei para o relógio na minha mesinha de cabeceira e sorri, sem nem mesmo perceber o que eu estava fazendo.

   Dimitri estava mesmo ali, eu não tinha sonhado com a noite anterior. Ele tinha ido cuidar de mim. Então, como uma outra fisgada de dor de cabeça, eu me lembrei que tinha aceitado a proposta dele. Eu me xinguei por ter me deixado baixar tanto a guarda.

   Mesmo prezando muito pela minha independência, eu sabia que seria difícil morar sozinha e, honestamente não achei que o casamento fosse ser tão rápido. Achei que eu teria um tempo para juntar um dinheiro e procurar um canto só para mim, mesmo que menor inicialmente, até eu terminar de pagar meu fundo estudantil e os gastos que eu e mamãe tivemos quando ela adoeceu. Eu queria muito conseguir seguir sozinha, mas por hora, a melhor escolha seria aceitar a proposta do russo.

    Há algum tempo também venho pensando que deveria trocar meu carro por uma moto, seria mais econômico e eu sentia falta da velocidade, da sensação de liberdade e relaxamento que pilotar me proporcionava. Traços da minha antiga vida, antes da minha mãe partir.

   Me desviei dos pensamentos respirando dolorosamente, por conta da minha cabeça e me forcei a sair da cama. O cheiro de ovos e bacon fez meu estômago roncar. O camarada ainda está aqui. Graças aos céus eu não ia comer sopa de novo.

   Aproveitei que ele estava na cozinha e caminhei até o meu banheiro, para melhorar um pouco a minha aparência. Separei roupas íntimas, uma calça de moletom jogger rosa iogurte, essas calças são bem úteis, e uma blusa justa branca de mangas curtas que ia até um dedo acima do meu umbigo, na frente lia-se “cherry baby” em letras desenhadas em vermelho.

   Tomei um banho, escovei os dentes e me vesti. Me senti um pouco tonta no processo, pelo mal-estar e por não ter me alimentado ainda, mas nada que me afetasse sériamente. Me olhei no espelho, soltei os cabelos e desembaracei rápidamente as mechas que se desenrolaram cortadas em camadas até a metade de meus quadris com leves cachos em suas pontas, passei um protetor labial que deixava meus lábios mais hidratados e levemente avermelhados, o que melhorou a minha cara de doente e automaticamente me fez sentir um pouco melhor. Bom, quantos as olheiras não tinha muito que eu pudesse fazer. Desci o olhar pelo espelho e observei parte da tatuagem floral que a blusa deixava à mostra, ela subia pela minha cintura e seguia até a minha costela direita, um pouco abaixo do seio. Sorri levando os olhos para o furo vazio em meu umbigo. Eu passava tanto tempo trabalhando e dormindo nas horas vagas que esquecia…  esquecia que um dia eu tinha sido uma adolescente rebelde, com descontrole de raiva que deixava a mãe de cabelos em pé. Foi interessante o jeito que ela decidiu lidar com isso. Eu sentia tanto a falta dela… Aquela foi a época em que ficamos mais próximas do que já éramos. Queria saber quais conselhos ela me daria quando visse a montanha russa emocional que eu tenho vivido, “oh,  a montanha russa” ri com meu trocadilho bobo. Pisquei guardando as memórias, me dirigi para a cozinha, precisava muito de um café da manhã reforçado e aspirinas.

                                                                       ***

   Melhor que Dimitri cozinhando, era Dimitri cozinhando de costas, de camisa regata preta e moletom, com o cabelo molhado e expressão concentrada enquanto tirava os pães prontos da torradeira. Aproximei-me devagar e sentei-me na bancada silenciosamente o observando, ele parecia estar de bom humor e o cheiro de seu pós-barba chegava até mim misturado ao aroma do café, era uma mistura interessante. Algo bom. Eu costumava guardar cheiros e músicas como recordação de momentos.

  Dimitri curvou levemente o canto dos lábios ao virar e me ver, a maioria das vezes ele era assim, sério e taciturno, ele era alguém que mais observava do que falava, parecia estar atento à todo instante. Poucos momentos ele tinha saído da concha, e esses momentos eram maravilhosos, me faziam pensar que algo além da vida como policial o moldou desse jeito. Eu tinha inúmeros materiais criativos para tirá-lo gradativamente da concha, para que ele cedesse e gargalhasse. Era o melhor som do mundo. Dimitri parecia ter um imenso coração em baixo da casca, e eu sentia que aos poucos estava conhecendo-o de verdade.

— Bom dia, camarada! – falei enquanto me levantava para pegar os pratos e talheres.

— Bom dia, Rose. – Respondeu e me analisou, parando o olhar no pedaço de pele tatuada em minha cintura. Balançou a cabeça e riu pelo nariz.

— O que foi? – Abri um sorriso, já sabendo do que se tratava.

— Você é uma caixinha de surpresas, Roza. – Disse ainda me analisando, com um ar levemente divertido. Uh, era um daqueles momentos. Se eu bem conhecesse Dimitri, diria que ele estava confirmando também se eu estava bem o suficiente para ficar de pé. E talvez eu tivesse observado um brilho curioso em seus olhos.

— Se eu posso te dizer algo é que alguém não fez a tarefa de casa direitinho, camarada. A ficha que você fez sobre mim está bem incompleta, se você quer saber. – Sorri um pouco melancólica com as lembranças, enquanto levava o bule à bancada e servia café nas nossas xícaras. - Apesar de ter muitos fatos relevantes, é claro.

   Meu nariz estava menos vermelho que ontem e eu estava me sentindo um pouco mais disposta. Dimitri tinha cuidado de mim direitinho e parecia ter ido para casa hoje de manhã, dado o cabelo molhado e as roupas limpas.

   Ele sorriu sorvendo o café e me fitou com uma das sobrancelhas arqueadas, enquanto me sentava na bancada e prendia os cabelos com a própria mecha, em um coque bagunçado que ainda sim deixou alguns fios soltos ao lado do meu rosto e na minha nuca. Eu me perguntei se ele tinha dormido a noite toda aqui, ou se tinha me deixado dormindo e ido para sua própria casa após eu pegar no sono. Ou nossa casa. Isso ainda soava confuso.

   Espantei esses pensamentos e voltei-me para meu prato, me servindo de torradas, ovos e bacon. Dimitri bebericava seu café encostado ao fogão, e eu sabia que seus olhos focavam em minha tatuagem visível em baixo do balcão.

— Camarada... - Dimitri ergueu as sobrancelhas direcionando a atenção ao meu rosto, ainda envolvido com seu próprio café. – Isso está incrível! Você cozinha muito bem. Como não te fisgaram ainda?

Será que esse homem existe mesmo?!

— Eu não sou um peixe, Roza... - disse, com uma leve risada. Eu sorri, o observando. “É sim, camarada! Um dos grandes!”— Você está se sentindo melhor?

   Eu sorri, espantando o pensamento bobo que eu tive.

— Nada que um dia de folga e os remédios que você já me fez tomar não ajudem. - falei. Dimitri me observou mais atentamente. Ele parecia olhar para a minha alma. Eu gostava disso. - Você trabalha hoje?

   Dimitri suspirou, aproximando-se do balcão. Eu poderia jurar que ele estava preocupado e nervoso, mas não comigo. Podia ser algo do trabalho. Sua expressão voltou para o policial durão de sempre e eu fiquei triste por ter feito a pergunta que o fez perder o sorriso.

— Sim. Eu estou com um caso importante e que está me tirando do sério. - Dimitri levou a mão livre à têmpora. Ele parecia realmente incomodado.

   Eu larguei o talher em cima do prato e observei Dimtiri mais atentamente.

— Você está com dor de cabeça?

— Sim. - disse, quase que em sussurro. Dimitri ainda pressionava as têmporas de maneira incorreta.

   Eu levantei-me lentamente e dei a volta no balcão, ficando de frente para ele. Dimitri pareceu ficar tenso com a minha aproximação sem aviso e eu ativei meu modo médica para deixá-lo um mais confortável. Ele pareceu sem reação quando eu tirei suas mãos da têmpora e sua xícara de café da outra mão, apoiando-a na bancada.

— Aonde dói? - perguntei.

— Aqui.

   Dimitri apontou para sua testa e eu logo diagnostiquei uma enxaqueca, provavelmente causada por estresse. Euolhei para cima, nossa notável diferença de altura.

— Senta ali, por favor. – Pedi apontando para uma das cadeiras da bancada.

   Ele se sentou, me observando. Me posicionei em pé entre as pernas de Dimitri, o banco ainda o deixava mais alto que eu, porém, menos do que se estivesse em pé. Levei minhas mãos ao seu rosto, que me observava atentamente. Seus olhos chocolate eram como um aquecedor em mim, que me estudavam e tentavam prever todos os meus passos.

   Eu poderia jurar que ele estava em alerta.

— Relaxa, camarada. Eu não matei ninguém fazendo isso… ainda. – Sorri e ele riu pelo nariz, pelo menos um pouquinho mais relaxado.

   Endireitei minha postura, e pressionei meus polegares de cada mão entre a boca e o nariz dele, de cada lado de sua face.  De início levemente, depois com um pouco mais de tensão. Aos poucos alívio foi passando por seu rosto e ele fechou os olhos por alguns segundos. Eu não queria tirar minhas mãos de seu rosto, mas o fiz lentamente. Aproveitando um pouco mais da eletricidade que seu corpo e seu toque me causavam.

   Me afastei em um passo ou dois e sorri, quebrando toda aquela tensão.

— Roza… o que você fez? – Acho que pela primeira vez desde que o conheci, vi uma sombra de surpresa em suas feições.- Passou!

   Eu ri.

— É uma técnica que aprendi durante um curso que fiz antes da faculdade. - falei. Dimitri estava entre deslumbrado e divertido com o milagre que a ciência tinha causado nele. - É usado para alívio de dores de cabeça causadas por sinusite, dor de dente e estresse. Acredito que seu problema deve ser o último.

Dimitri tirou o sorriso do rosto aos poucos e me observou. Eu sorri novamente, sentindo todo o meu corpo pedir para que eu sentasse.

— Obrigada. - disse ele, por fim.

— De nada! - falei, de volta. - Um cuida do outro, certo?

Dimitri sorriu. Não qualquer sorriso. Um bem largo e brilhante.“Esse sorriso, camarada.”.

— Sim, Roza.

   Nos encaramos por um tempo. Talvez tempo suficiente para não conseguir mais desviar o olhar. Dimitri sempre me surpreendia, eu nunca sabia quando ele ia rir ou não demonstrar expressões. Eu apenas gostava de estudá-lo e entender ele. Na maior parte das vezes, eu acabava conseguindo pegar uma emoção ou outra naquele rosto lindo, que estava sério na maioria das vezes.

— Bom... - Dimitri começou a interromper aquela bolha. Eu bateria nele, se eu conseguisse. - Eu preciso mesmo ir agora. Seus remédios estão em cima da mesinha, eu estou com o alarme para todos eles e vou te ligar para garantir que você tomou.

   Eu tentei fazer aquela coisa maneira com a sobrancelha que ele fazia, mas falhei miseravelmente. Apenas revirei os olhos e me contentei com um Dimitri mandão.

— Eu não sou obrigada a nada, camarada! - retruquei. - Eu vou te bloquear.

— Não. Não vai não. Eu sou seu vizinho e futuro colega de quarto, então você não vai se livrar de mim por muito tempo. - ele se aproximou e sorriu, bem perto de mim. O cheiro de pós-barba me atingiu. - Eu tenho uma sirene e eu não tenho medo de usá-la para chegar aqui bem rápido.

   Dimitri beijou minha testa, com seus lábios quentes de puro cuidado e eu me senti arrepiar. Ele se afastou depois de um tempo e sorriu novamente conferindo se eu estava bem e confortável com aquele gesto.

— Eu volto mais tarde, com o jantar. Tem almoço pronto na geladeira, e preciso mesmo que você se hidrate.

   Eu apenas assenti, porque o beijo que ele tinha me dado tinha me paralisado. Dimitri caminhou em passos largos até a porta. Sorriu mais uma vez e bateu a porta atrás de si.

   Despertei do transe ao ouvir o som da porta, corri para alcançá-lo ainda descalça, ele esperava o elevador. O abracei, encostando meu rosto em seu peito e respirei profundamente.

— Obrigada, camarada.

   Senti ele me envolver vagarosamente, e corresponder meu abraço apertado. O fitei, ele sorriu em compreensão balançando a cabeça lentamente.

— Estou aqui, Roza.

   Sorri, e me soltei dele assim que o elevador chegou. Acenei e entrei novamente em meu apartamento.“Parece que eu não tinha mais apenas Lissa para de fato me compreender. Há muito tempo eu cuidava, não me permitia nem ao menos ficar mal ou doente com algo, eu não queria atrapalhar a vida corrida da minha melhor amiga. Eu sempre fui independente, autossuficiente, podia cuidar de mim mesma… Quer dizer, eu aprendi a me virar muito cedo. Mas, parece que agora eu não tenho apenas Lissa. De alguma forma, Dimitri me entende, ainda que não me conheça profundamente. E me assusta o quanto eu gosto disso.”.

   Eu me permiti finalmente suspirar ao encostar as costas na porta. Eu queria tanto que meus sentimentos se enganassem. Eu não podia estar começando a me apaixonar por meu novo melhor amigo.

— Droga, Dimitri. - murmurei para mim mesma, enquanto voltava para meu prato de ovos com Bacon. - Você não podia ter um perfume ruim e um sorriso feio?

Terminei meu prato, lavei a louça e estava indo buscar um cobertor quando ouço a campainha.

   Fui em direção à porta já pensando nas minhas piadinhas para algo que Dimitri poderia ter esquecido. Meu momento chegou! Eu sempre era a desconcentrada e atrapalhada. Mas, agora era minha vez e zombar dele por ter se esquecido de alguma coisa importante.

⁃Você esquec...- fui interrompida, foi como se tivesse recebido um  soco no estômago! Pisquei algumas vezes, ainda assustada e ele estava lá parado.

   Ele era um pouco mais alto que eu, cabelos densos e grisalhos misturados com alguns escuros, a pele bronzeada. Olhos castanhos e um brinco na orelha esquerda, nenhum pouco sútil. Seu terno era em um tom de azul petróleo brilhante e sua cashmire era um tom vivo de vermelho. Parecia bastante cara.

   Ele provavelmente estava me analisando da mesma forma, porque ainda estamos em silêncio e nos encarando. Seus sapatos de pele de cobra me chamaram mais atenção do que sua total falta de senso para moda. Ele pigarreou, ainda com uma expressão estranhamente irônica.

⁃ Acho que não preciso me apresentar, certo?

   Eu senti a gargalhada sem humor travar na minha garganta, assim como o restante do meu corpo estava. É claro que não precisava. Ethan tinha me mostrado fotos durante a conversa que tivemos e também insistiu bastante para que nos conhecêssemos, mas eu não estava pronta. Eu não sei se queria estar.

   Minha voz começou a se formar lentamente, e eu quase não consegui escutar meus próprios sons. Então pigarrei.

⁃ Eu não tenho um exame de DNA, se é isso que veio buscar. – Respondi em um sorriso irônico, agora eu sabia de quem tinha o herdado.

   Ele riu, orgulhoso.  

⁃ Não seja tola, garotinha. - disse andando em minha direção e se convidando ao apartamento. Eu ainda estava em choque quando bati a porta atrás de mim. Ele analisou todo o ambiente e voltou-se pra mim. – Você me parece doente.

   Eu levantei às mãos, já irritada.

⁃ Essa foi a melhor coisa que pensou em me dizer?

   Ele deu de ombros. Suas mãos magras tinham vários anéis, assim como nas fotos de Ethan. Eles também se pareciam.

⁃ Na verdade, eu não costumo pensar muito antes de falar. - ele me olhou, curioso. - Parece que você também não! A genética é mesmo algo impressionante.

   Eu sorri, desgostosa.

⁃ Oh, claro! Esse é o momento em que devo te agradecer pelo cabelo incrível e o dinheiro que economizo em bronzeamento?

⁃ De nada! - murmurou, vitorioso.

   Eu suspirei e comecei a caminhar até uma das cadeiras de madeira perto da mesa. Ele ainda analisou a situação em que estaríamos prestes a passar e sentou-se à minha frente, no lugar que eu apontei. Ibrahim tamborilou os dedos à mesa. Nós nos encaramos por um tempo e então, senti uma atitude cautelosa. Como se ele estivesse com medo de começar a falar ou de ser enxotado.

⁃ Não sou mais uma adolescente revoltada. - cortei o silêncio. - Perdeu a parte mais divertida, e que minha mãe mais suou para lidar.

⁃ Você tem um namorado? - perguntou ele. Eu levantei uma das sobrancelhas em sua direção, como Dimitri costumava fazer. Porém, mais uma vez. Eu falhei!

⁃ Não! – disse. A imagem de Dimitri de camisa social dobrada até os cotovelos, comendo pipoca no meu sofá com meus pés em seu colo me veio à mente, trazendo uma leve sensação de conforto.

“Não vá por aí, Rose”. Balancei a cabeça levemente.

⁃ Então não perdi a parte divertida. - falou ele parecendo um tanto mais relaxado.

⁃ Ethan pediu para você vir?

⁃ Não! - disse que quase instantaneamente. - Eu vim por conta própria. Foi fácil te achar.

Revirei os olhos. Por que todo mundo sentia prazer em fazer um dossiê da minha vida, ou me caçar?

⁃ Está alguns anos atrasados, velho!

Abe arfou.

⁃ Não sabia que estava atrasado para algo. - disse ele, com desdém. Eu observei sua expressão suavizar um pouco. Ele parecia estar com o olhar distante. - Sinto muito. Soube de Janine há poucas semanas. Eu realmente sinto muito, Rosemarie.

⁃ Só Rose. - cortei, de forma rude. Respirei fundo segurando qualquer vestígio de sentimento e entrelacei minhas mãos em cima da mesa. - Pode me chamar de Rose.

   Ele assentiu ainda me observando cautelosamente. Eu tinha corrigido meu tom. Não podia continuar falando daquele jeito, se eu estava tão confusa quanto ele. Estava tão acostumada a estar sozinha e sofrer esse luto apenas comigo mesma, que era estranho sentir o mesmo tom de dor na voz de outra pessoa, que não fosse a minha.

   Seus olhos escureceram em um local fixo da minha sala. Como eu, ele estava pensando nela.

⁃ Ela não costumava falar de você, sabe… - comecei, ele manteve seus olhos em mim enquanto relaxava na cadeira. - Eu também não costumava perguntar. Eu sabia que ela trabalhava muito para manter meus poucos luxos e um bom estudo. Não me custava evitar um assunto que poderia ser incômodo.

⁃ Então, não sabia sobre mim? Ou sobre suas origens?

⁃ Não. - murmurei. - Sabia que você tinha uma ironia indescritível, ótimas respostas e uma beleza diferente. - ele sorriu irônico.

⁃ Nós, turcos, somos encantadores.

   Eu abri a boca para emitir algum som, mas meu queixo caiu. Ele era turco. Eu era turca. Oh, meu Deus! Eu era turca mesmo!

⁃ Você… eu… Nós?

⁃ Sim! - ele disse. - Tem muito mais sobre si mesma que você deveria descobrir.

⁃ Talvez eu não queira. – É claro que eu queria!

⁃ Eu respeito e entendo. - falou Ibrahim. - Não vim te pedir para que me ame ou forçar minha entrada na sua vida. Só queria conhecer a minha…

   Nós nos olhamos novamente, dessa vez de forma mais profunda e dolorosa. Ambos querendo falar a última palavra, e ambos com medo do som da mesma ecoando na sala. Era algo surreal.

⁃ Queria saber por que ela foi embora. - disse ele. - Eu e ela estávamos esperando um menino. Não gêmeos. Achei que ela não queria aquilo pra ela e deixei ela ir. Queria que ela estivesse com a gente porque era seu lugar. Não por obrigação.

⁃ Mas sempre soube onde ela estava, não sabia?

⁃ Sim… Bom, em parte. Ela esteve em vários lugares até eu perder seu rastro. Sempre te escondeu muito bem. Janine era muito inteligente, ela me conhecia melhor que ninguém e sabia que eu saberia onde ela estava.

⁃ Como não percebeu uma gravidez de gêmeos? - perguntei irritada. – Raros os casos em que é difícil saber.

Ele respirou fundo

⁃ Eu não sabia mesmo. - disse ele. Parecia quase derrotado, meu coração apertou vendo seu olhar. - Eu não era presente. Tinha muitas reuniões, estava reerguendo a empresa, e também coisas de família para resolver. Sou filho único, a fortuna e responsabilidade foi toda para mim. Durante a gestação foi mais difícil ainda estarmos juntos, e quase impossível estarmos sós.

   Minha respiração acelerou e eu senti meu coração bater mais forte. Ele não era presente nem para ela, seria para mim? Ele causou isso? Ele fez ela ir embora por negligência? Ela se sentiu sozinha? Por que deixou o Ethan? Por que me levou?

⁃ Sei que deve estar se fazendo muitas perguntas, mas eu também estou. Tinha apenas um filho, e há alguns meses descobri você de uma forma totalmente inesperada. - Abe se interditou na cadeira. - Não me leve a mal, Rose. Você foi uma surpresa maravilhosa, mas ainda sim fiquei anos me perguntando aonde eu errei com Janine para descobrir que…

⁃ Ela nunca vai te falar. - terminei, com um tom dolorido.

⁃ Sim. - disse ele.

   O silêncio tomou conta de nós mais uma vez e eu me senti febril. Não sabia se estava quente pela interação ou se era a gripe atacando novamente. Abe pareceu reparar em mim e tentou pegar minha mão em cima da mesa, mas eu a recolhi rapidamente. Ainda não.

⁃ Vamos com calma. É muito para entender e eu preciso sabe o porquê de tudo isso apesar de você também estar perdido.

⁃ Eu sei. Mas eu realmente não sabia de você ou porque ela foi embora

⁃ Talvez você tenha feito algo, talvez tenha faltado nos momentos importantes.

⁃ Me culpo por isso há 23 anos. - disse ele. - Mas eu sempre amei a Janie, Rose, nós nos amávamos. E conhecendo ela, acho que seus motivos devem ter sido suficientemente fortes.

   Eu suspirei, cruzando os braços. “Janie”.

⁃ Talvez ela tenha me levado porque queria você com ela. Mas felizmente, ela foi suficiente pra mim.

⁃ Eu tenho certeza que sim. Ela era uma mulher extraordinária.

   O silêncio tomou conta de nós novamente. Eu respirei fundo, tentando piscar as lágrimas para longe. Eu não choraria na frente dele ou de ninguém.

⁃ Como se conheceram? - perguntei, tentando lembrar de alguma memória em que minha mãe dava a entender isso. Mas não tinha, ela nunca falava dele.

⁃ Em uma festa. - ele falou. Sorrindo. - Nós estávamos em uma festa na Turquia, ela estava tão linda com um vestido verde esmeralda. Era tão perfeita e angelical.

⁃ Ela não parecia muito angelical quando eu aprontava. - retruquei enquanto olhava para os meus dedos deslizando por uma pequena rachadura na mesa de madeira. 

⁃ Para mim, sim. Eu adorava vê-la brava por algo bobo. - seus olhos brilharam em amor. Eu sabia que ele não estava mentindo. Então deixei ele continuar. - Ela era uma jovem escritora que tinha juntado algum dinheiro durante a adolescência para conhecer alguns lugares. Janine fez amizade com um casal turco, que coincidentemente eram conhecidos dos meus pais. Eles a levaram em uma festa da alta sociedade Turca e então, eu estava lá. Sem conseguir tirar os olhos de qualquer lugar em que ela estivesse.

⁃ E ela?

⁃ Ela pareceu ter a mesma reação. - ele gargalhou sem som, com o olhar longe. – Janie era durona, independente e autêntica. Ela era leal a si mesma, não tinha vergonha de ser e mostrar quem era, o que sentia. Tinha um coração puro, bondoso e único. Ela era uma força da natureza, Rose. Eu amei a sua mãe até o dia em que ela foi embora, e descobri a verdadeira força desse amor depois que ela foi.

⁃ Devia ter ido atrás dela. - falei, por fim.

   Ele assentiu, com uma expressão ressentida.

⁃ Eu deveria. Mas eu não queria que ela estivesse obrigada ao meu lado. Jamais suportaria vê-la infeliz.

   Nós finalmente nos encaramos de novo. O silêncio já não era mais tão desconfortável. Senti meu corpo queimar e meus olhos arderem. A dor de cabeça estava ali novamente.

⁃ Acho que preciso de um tempo. - eu precisava de muito tempo. - Talvez passar tempo com o Ethan.

Ele assentiu, ainda me analisando.

⁃ Claro. - disse ele. - Ethan te chamou para o baile da empresa, certo? Pode levar alguém se quiser. A amiga que mora com você ou…

Eu franzi o cenho.

⁃ Ou?

⁃ Ou alguém especial.

   Eu assenti devagar. “Dimitri. Leva o Dimitri. Vá com o Dimitri”.

⁃ Eu vou pensar a respeito. - eu disse. - Se conseguir uma folga dos meus plantões, eu vou.

⁃ Ótimo!- ele levantou-se em um pulo. - Aliás, pode me chamar de Abe. Soa mais fácil e informal.

   Eu sorri, sem humor. Levantei minha cabeça para analisar ele.

⁃ Não é como se eu fosse te chamar de papai, certo?

   Minha mãe não foi embora à toa, ela não deixaria fácil assim o cara que dizia amá-la tanto, e segundo ele o sentimento era recíproco. Eu vou descobrir o que aconteceu.

⁃ Um dia quem sabe. - disse ele, com um sorriso irônico. - Deveria deitar um pouco, parece arrasada.

⁃ Você é muito gentil, velhote. - retruquei, ainda sem humor. Ele deixou seu sorriso ainda mais largo.

⁃ Algumas pessoas discordariam de você, querida!

   Abe andou lentamente até minha porta e voltou-se para mim, enquanto segurava a maçaneta. Ele me analisou por uma última vez e sorriu, lentamente.

⁃ Qualquer coisa que precisar, qualquer dia que precisar… - começou, hesitando apenas para abrir a porta. - Eu estarei aqui.

   Eu assenti, sentindo meu coração acelerar. Eu parecia não estar mais sozinha. E eu senti… Bom, em seus olhos, Abe realmente queria fazer parte de minha vida. E eu… Eu acho que eu também queria isso. Mas, eu ainda tinha muitas dúvidas.

⁃ Obrigada! Eu consigo me virar bem.

   Abe sorriu passando pela porta e voltando-se para mim apenas mais uma vez antes de ir embora.

⁃ Eu não duvido disso, garotinha.

   E então, ele foi.

   Respirei fundo e busquei uma manta no quarto, me encolhendo enrolada no sofá.  Ainda pensava no que acabou de acontecer quando o alarme em meu celular tocou, realmente o camarada não estava brincando. Tomei a medicação e voltei para debaixo da manta. Pelo menos o remédio me faria dormir e consequentemente não pensar no assunto.

                                                              ***

   Acordei no sofá algumas horas após a partida de Abe. Nossa conversa foi intensa e eu definitivamente não sabia se me trouxe mais respostas ou mais dúvidas, fazem apenas algumas semanas que descobri ter um irmão gêmeo, e também um pai. Lógico que todo mundo tem um pai tendo vínculo afetivo ou não, mas é que era um desejo que eu mantinha bem enterrado nas profundezas dos meus sentimentos, cada momento que precisei ser afirmada, que quis ser protegida e defendida, me sentir segura em um colo de pai, cada momento que senti revolta por ver minha mãe se virar sozinha para me criar. Ela nunca falou sobre isso e eu evitava tocar no assunto com receio de magoá-la, afinal eu podia secretamente sentir muito a falta de ter um pai, mas Janine foi a melhor mãe do mundo para mim e isso bastava até eu entender que cada um tinha uma posição na minha vida, e a dele estava ali, vazia. Deus, eu tentei preencher com tantas coisas! Eu sentia tanta raiva por pensar que tínhamos sido abandonadas e essa era a causa de minha mãe não tocar no assunto, quer dizer, eu pensei isso por longos 23 anos.

    Cada lágrima que derramei desejando ter um pai para me abraçar e segurar junto de mim as mãos de minha mãe durante cada quimioterapia, cada vez que ela ficava mais fraca, nauseada ou perdia seus lindos cachos ruivos. Ela se mantinha firme para mim, mas eu via seus olhos azuis tristes ao se olhar no espelho, ao pensar que me deixaria só como um dia ouvi ela conversar com Alberta, meu pai deveria estar lá e apoiá-la, dizer que era linda de qualquer forma, que era amada e que independente do que acontecesse ele estaria ali por mim, por nós. Cada noite que me encolhi na minha cama de madrugada, aproveitando o sono profundo de mamãe por conta das medicações fortes, me sentindo fraca demais para suportar vê-la partir, tendo que acordar e me fazer de forte para que ela não sofresse mais do que já estava sofrendo. O meu sofrimento após a partida dela, os antidepressivos que precisei tomar, as crises de pânico e ansiedade.

     As noites que Lissa correu para me abraçar e chorar comigo em meu quarto me dando colo e alisando meus cabelos até eu adormecer novamente. Os gritos e as crises de choro que minha amiga suportou, ela cuidou de mim com tanta paciência e carinho.  E então eu descubro após todo esse sufoco que eu tinha alguém que poderia ter me dado suporte e sofrido comigo também, quer dizer, duas pessoas que sentiriam tanto quanto eu a perda da minha mãe. Que toda a raiva que senti, que nada era como eu tinha pensado. Por esse plot twist eu com toda certeza não esperava. E pensar nisso tudo me deixou melancólica. Pensar nela e em tudo o que passamos principalmente no fim de sua vida, me trazia uma profunda tristeza e claro, saudades dela.

  Levanto do sofá organizando meus cabelos e enxugando as lágrimas que derramei sem perceber com as costas das mãos.

— Quer saber? Eu não vou pensar em nada disso pelo menos por hoje.

  Conferi o horário, cinco e meia da tarde, juntei aquela coberta que levei para o sofá, dobrando-a e guardando no closet como se guardasse minhas próprias dúvidas e sentimentos ruins. Hoje não! Hoje eu vou me arrumar, sair e me divertir. Eu vou ficar bem, eu preciso ficar...

   Coloquei uma das minhas playlists favoritas para tocar e segui para o banheiro ao som de “All these things that i’ve done”. Tomei um banho quente e fiz uma hidratação de cinco minutos nos meus cabelos, as mechas estavam precisando de um cuidado. Ainda de roupão, sequei meus cabelos no secador e decidi passar uma chapinha, fiz uma maquiagem rápida, porém bem elaborada.  Separei uma calça que Lissa me deu de presente no natal passado, um cropped branco de mangas longas e tênis brancos. Tive que fazer certa ginástica para colocar o cropped sem manchá-lo de base ou batom, eu sempre me esquecia, se bem que fazia tanto tempo que eu não parava para me arrumar de fato e fazer uma maquiagem bem feita... Eu tinha colocado até mesmo cílios postiços!

    Não sei o que aconteceu ao certo, mas algo em mim clamava por mudanças, para me levantar do poço de sentimentos tristes que eu tinha me enfiado e pelo menos hoje eu não iria visitá-los.

    Após me vestir, segui até minha caixinha de jóias e troquei o piercing conch em minha orelha direita por uma argola dourada que continha pequenos cristais e uma fina corrente que o ligava ao delicado ponto de luz que eu usava no segundo furo que eu possuia, no primeiro furo eu optei por um brinco alongado e fino, parecia um pequeno bastão dourado que seguia até o fim da minha mandíbula. Na orelha esquerda eu usei apenas o par do primeiro e segundo furo, fiz uma combinação de delicados anéis dourados na mão direita, e por fim, coloquei uma fina corrente dourada com um pingente de uma pequena rosa que minha mãe me deu no meu aniversário de dezesseis anos. Olhei para meu umbigo, dei um sorriso e decidi por o piercing que eu não usava há alguns anos, tive um pouco de dificuldade de por o pequeno bastão com um ponto de luz em cada extremidade, mas no fim deu certo.

  Passei um perfume, peguei minha bolsa e um casaco mais quente bege. Eu não estava bem para dirigir, então chamei um uber e em poucos minutos eu estava no shopping. Segui em direção ao cinema.

   Quando eu me sentia muito triste, eu buscava algo que me desse prazer em fazer.  Eu amava ir ao cinema, mesmo que fosse sozinha. Comprei o ingresso de algum filme de ação e estava na fila da pipoca quando recebi uma mensagem de Dimitri.

“Cadê você?” 19h50

Oi? Achei abuso! Ora essas!

“Boa noite, camarada! Estou bem, e você?” 19h51

“Você entendeu, Roza. Cheguei no seu apartamento e você não estava. Sua cartela de remédios está cheia no último horário de hoje.” 19h51

Como ele?... Ah, chave extra debaixo do tapete. Droga.

“Ah, não seja chato. Quer vir no cinema comigo?” 19h53

“Cinema? Rose você ainda não está bem.” 19h53

“Camarada, existem coisas piores do que uma gripe. Estou melhor sim. Vem ou não?” 19h53

“Estarei aí em 20.” 19h54

“Okay.” 19:54

   Eu sabia que possivelmente ele estava vindo me dar um imenso sermão sobre eu precisar cuidar mais de mim mesma, e me arrastar para casa. Bom, estou cuidando de mim mesma, no caso da minha saúde mental.  Acho que Dimitri precisa esquecer os problemas e sorrir mais um pouco também, vou fazer dessa noite nossa pequena bolha do hakunamatata. Ele deveria se sentir honrado, só dividi esse momento até hoje com a Lissa.

   Comprei um ingresso extra para o filme de ação e decidi comprar apenas um refrigerante médio, afinal ainda faltavam ao menos duas horas para o início do filme. Retirei o casaco, a calefação do shopping funcionava muito bem, e segui tomando do refrigerante pelo canudinho e olhando as sinopses dos filmes em cartaz, apesar de já ter escolhido o mesmo.

   Não demorou muito até eu sentir uma mão grande, e intrusa diga-se de passagem, em minha testa. Mordi o canudinho olhando para cima. Dimitri estava maravilhoso em trajes escuros, o cabelo preso em um pequeno rabo de cavalo enquadrava o rosto sério com a testa franzida demonstrando certa preocupação.

— Olá, camarada. – Sorri com o canudo entre os dentes.

— Rose, o que aconteceu? – Questionou-me ao recolher sua mão e cruzar os braços de forma rígida.

Será que…? Não, ele não me conhece tão bem assim…

Nada, camarada. Por que haveria algo? – Questionei disfarçando.

Ele me olhou de testa franzida e olhos estreitos, parecendo avaliar minha alma.

— Rose, não tente me enganar… Houve alguma coisa.

— Dimitri, eu só não quero pensar em nada hoje. Eu só quero poder ver um filme, olhar lojas, me divertir sem sentir que a minha cabeça está lotada e que as minhas emoções são como uma bomba-relógio. – Desci a mão com o refrigerante, deixando-a ao lado do corpo, me sentindo levemente ansiosa. Olhando-o nos olhos, toquei sua mão entre seus braços cruzados, algo em tocá-lo me acalmava. – Mesmo que eu apenas esteja fingindo, ou melhor, guardando minhas preocupações atuais em uma gaveta, que eu sei que vou precisar lidar depois. Mas, apenas por hoje eu não quero pensar em nada. E já que você está aqui comigo faça isso também, por favor. Comigo. Só hoje.

   Relaxando as feições, me observou de cima a baixo, parando o olhar na minha cintura que mostrava parte do piercing e da tatuagem. Balançou a cabeça e olhou em meus olhos, focando ali por alguns segundos. Suspirou, e com a sombra de um sorriso pegou meu casaco da minha mão esquerda.

— Certo, Roza. Deixe que eu levo isso, e a pipoca é por minha conta. – Disse com um tom compreensivo e levemente divertido.

— Certeza? Posso me acostumar com isso, camarada! – Sorrio fitando.

— Minha mãe me criou para ser um cavalheiro, Rose. – Ele sorriu em uma lembrança. – Que horas começa a sessão?

— As dez. Falando em sua mãe, como ela é? Digo, você me falou sobre ela e suas irmãs, mas superficialmente. – Sorri observando sua expressão atenta, eu terminava meu refrigerante enquanto caminhávamos na frente de algumas lojas. Ainda eram oito e dezessete, tínhamos algum tempo antes do filme começar.

— Última sessão?

— Sim, na minha opinião é a melhor. – O observei de soslaio, imaginando que devo ter invadido demais seu espaço pessoal com a pergunta.

   Dimitri tinha uma postura invejável, demonstrava autoridade e imponência. Sabe aquele cara que tem presença? Pois bem. Isso aliado a sua altura, o pós-barba, voz grossa e as veias sobressaltadas nos braços… Eu estava resistindo bravamente. Não sentia que era a hora de me apaixonar, eu estava passando por muita coisa no momento. E o pior em resistir era que Dimitri parecia saber me desvendar só em me olhar. Tirando todo o papo do dossiê, lá não tinham detalhes profundos sobre mim, o fato é que Dimitri me sacava. Isso era absolutamente apavorante para mim. Ele me fazia sair da minha própria concha sem o menor esforço. Depois de cinco anos terríveis, com trauma do último relacionamento e sem ter coragem e nem tempo para sequer pensar em me dar ao luxo de ter alguém, eu simplesmente não sei mais como funciona isso de estar apaixonada. Eu não sei nem como me portaria se de fato ele gostasse de mim dessa forma, o que claro seria puro delírio meu, Dimitri não gosta e nem gostaria de mim dessa forma. Não mesmo. Impossível.

“Nada de problematizações, Rose. Hakuna Matata.”

— Olena. – Ouvi a voz grossa depois de uns segundos.

 - Hm?

— O nome de minha mãe é Olena Belikov. Ela é juíza aposentada. Vem na cidade às vezes para fazer consultorias freelance, para antigos clientes dela de sua época de advocacia. Passa a maior parte do tempo na chácara que mora com minha avó, Yeva. – Seu tom de voz parecia saudoso.

Sorri ao ouvi-lo se abrir.

— Defender as leis é algo de família, então?

— Você não imagina o quanto.

— Sua família é da Sibéria, mas você cresceu aqui mesmo, ou na chácara? – Parei em frente a uma loja de maquiagens, observando o meu gloss favorito que a propósito estava no fim.

— Está curiosa hoje, Roza.

Observei Dimitri de soslaio, voltando a andar com um sorriso irônico.

— Qual é, camarada?! Você tem um dossiê sobre mim, e só me contou sobre você meio por cima! – Joguei na cara mesmo!

— Não precisa apelar, Roza! – Seu tom era divertido. Eu continuava o encarando. – Certo, certo! Você venceu, o que quer saber?

Sorri abertamente.

— Sobre você. Eu falei, ouvi e descobri muito sobre mim nos últimos dias, quero saber de você. Onde cresceu, como é sua família, seus hobbies, sua comida favorita…

—  Ok, vamos por partes. Não fui criado em nenhum dos dois lugares. Nasci e fui criado lá em Baia, viemos para cá quando eu tinha dezessete anos. Como já te falei, minha família não é muito grande, somos eu, minha mãe, minha avó e minhas três irmãs.

— Wow! Não é grande? Sua mãe teve quatro filhos, camarada! Essa informação ainda é bem impactante para mim! – Parei e o olhei assombrada.

Ele riu parando ao meu lado.

— Roza, uma família russa considerada pequena tem três filhos.

Eu engasguei com o restinho do refrigerante. Levei a mão esquerda ao peito.

— Achei que estivesse acostumada, é pediatra. – Riu segurando meu cotovelo enquanto eu me recuperava da pequena crise de tosse.

— Não me leve a mal, eu amo crianças! Mas quatro de uma vez? Sua mãe é uma santa! – Ainda o encarava surpresa enquanto voltávamos a andar. Seu braço ainda apoiava o meu, eu não me afastei.

— Não é como se fôssemos quadrigêmeos, Roza. Temos idades diferentes! – O ar de riso continuava. Falar da família o tirava de sua bolha pessoal.

— Certo. Antes de vir para cá, eu fazia o acompanhamento de sêxtuplos de uma prima de Lissa.– O Russo me observou com um olhar divertido, me incitando a falar mais. – Yelena só faltava chorar. Lembro de me imaginar na situação dela, eu teria pirado.

— Seis é um bom número. – Ele provocou enquanto ria da minha cara de desespero.

— Nem de brincadeira, camarada! A pobre não tinha nem mais criatividade para tantos nomes, lembro que todos começavam com J! Ela esquecia quem era quem, as vezes dava de mamar para a mesma criança três vezes e duas ficavam chorando. Ela achava que era cólica, mas era de fome mesmo. O marido dela quase fez as malas e saiu correndo quando soube da gestação de tantos bebês, se bem que mesmo se fosse um só eu acho que aquele cara não saberia lidar. – Ri, de nervoso é claro.

Ele riu pelo nariz.

— Frouxo. Como se ela tivesse feito sozinha. – Balançou a cabeça negativamente.

“Droga, Dimitri. Me ajuda a te detestar, peste!”

— Nem sempre as pessoas são o que esperamos que elas sejam, camarada. E as vezes descobrimos isso no momento em que mais precisamos delas.

   Observei a vitrine de uma prataria parando o olhar em um colar de prata com uma pequena esmeralda circulada de brilhantes, fazia conjunto com brincos parecidos com o pingente.

— Parece saber bem sobre isso. – Ele me observava atentamente.

— Um longo processo de erros, camarada. As vezes sinto que vivi sessenta anos em vinte e três. – Sorri complacente, continuando nossa caminhada. – Mas, lembra, hoje quero saber sobre você!

— Certo, onde paramos? – Ele me fitou de soslaio, decidindo não me pressionar.

   Não é como se eu tivesse escondendo coisas, Dimitri me passa confiança. É um bom amigo. Mas, quero conhecê-lo também. Com certeza é muito mais fácil ele descobrir tudo sobre mim, do que eu sobre ele.

— Quatro filhos… Hobbies…

— Eu gosto de ler, cozinhar e atirar. Ir em um estande de tiro me relaxa bastante.

— Tirando ler e cozinhar, hobbie clichê para um policial, camarada!

   Ele sorriu contido, dando de ombros. Voltávamos em direção ao cinema.

— Sou um cara simples, Roza.

    Sorri irônica. “Nem que você quisesse muito, conseguiria ser simples, camarada!”

— Comida favorita? – Questionei.

— O pão escuro que minha mãe faz.

— Pão escuro? Só conheço aquele do Outback.

— Não, Roza. Aquele é um pão australiano. – Disse me olhando divertidamente.

— Então seria um pão russo?

— Pode-se dizer que sim.

   Sorri quando chegamos ao cinema.

— Que horas?

— Nove e quarenta e oito. – Me respondeu enquanto olhava no relógio de pulso.

— Ok! Você me prometeu pipoca, e eu quero a big de manteiga! – Ele riu. – Já deveria saber que não se promete comida pra mim, camarada! Eu levo rigorosamente a sério! – Sorri abertamente.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Roza!. – Me observou sorrindo contido.

   Eu checava meu celular enquanto Dimitri terminava de comprar a pipoca. Haviam 3 chamadas perdidas de Alberta e 15 de Lissa. Observei o aplicativo de mensagens, elas queriam saber como eu estava. Respondi Alberta dizendo que eu estava melhor, e medicada.

   Olhei as mensagens de Lissa, preocupada com minha saúde. Ela e Christian estavam fora da cidade durante essa semana pois Lissa queria contratar uma empresa de decoração de lá, aparentemente estavam acertando esses detalhes.

   Respondi que estava ótima, mas que precisávamos de algum tempo juntas. Lissa sempre sabia o que me dizer. Ela concordou dizendo que estaria de volta em três dias, e queria organizar uma noite das garotas. Ri em animação pela idéia. Lissa perguntou se eu estava em casa de repouso. Pedi para Dimitri tirar uma foto minha quando voltou com a pipoca. Enviei para Lissa. Ela me mandou um áudio de quase dois minutos surtando. Respondi a ela que precisava disso e que quando nos víssemos eu contaria tudo o que tem acontecido à ela, o que a fez se contentar, mas ainda me alertando de que eu precisava de repouso pois ainda parecia um pouco abatida. Sorri e mandei um áudio dizendo que não precisava se preocupar, e me despedi entrando no cinema com Dimitri.

— Dinossauros, Roza? – Questionou no começo do filme.

— Pois é, parece que nada de faroeste para você hoje, camarada! – Sorri irônica.

Ele riu, dando de ombros.

Após o ótimo filme, andávamos pelo shopping passando pelas lojas fechadas em direção ao elevador para o estacionamento. Ele levava minha bolsa atravessada no corpo e os nossos casacos no braço esquerdo. Eu segurava o balde de pipoca quase no fim.

— Mas aquele cara era um lunático, camarada! Como assim ele decidiu recriar seres tão perigosos! Tá na cara que ia dar em um desastre colossal! Se isso acontecesse realmente, vocês teriam que prender um maluco desses! – Eu falava revoltada.

— Calma, Roza! Foi apenas um filme! – o olhei com indignação. Ele riu divertido. – Ok, na sua situação hipotética eu te protegeria dos dinossauros, Rose!

— Que bom, porque ainda parece que estou vendo dinossauros por todo lado!

   Dimitri gargalhou com meu comentário. Ora essas, era verdade! O filme era em 3D!

— Certo, camarada. Eu sei que você adora se divertir às minhas custas, mas aquele refrigerante precisa sair! – Sorri caminhando em direção aos banheiros.

   Dimitri me seguiu, parando na área próxima ao banheiro e pegando o balde vazio de pipoca das minhas mãos. Sorri em agradecimento.

 Não demorei nem cinco minutos para fazer um xixi inocente e lavar as mãos, e ao sair do banheiro me deparo com um Dimitri parecendo desconfortável e sem graça, em frente a uma senhora loira que parecia ser vovó de Alberta!     Que ela não me escute dizendo isso e eu posso até ter exagerado, mas será que ela não enxerga que ele não está a fim?

   Respirei fundo com os punhos apertados. Dimitri me encarou pedindo para irmos logo com o olhar. Se bem que…

   Coloquei meu melhor sorriso estilo matadora, e em passos elegantes e felinos cheguei calmamente próxima a Dimitri, que me olhava questionador.

— Obrigada por esperar, querido. Você é o marido mais gentil do mundo! – Sorri me aconchegando em Dimitri que me abraçou prontamente. Pus a mão sobre seu peito. Ele sacou o teatrinho.

— Quem é você? – A quarentona com a cara esticada me encarava com desdém.

— Oh, perdão! Não vi a senhora! Sou Rosemarie, esposa dele. – Sorri doce com olhos perigosos. Agora eu sabia, herdei de meu pai.

— Sou Clarice Von denBricht, filha do prefeito! Esposa? Mas você nem… - Ela ia retrucar.

   Me virei para Dimitri, beijei seu peito sobre a blusa e me estiquei abraçando seu pescoço, ele me olhava profundamente nos olhos. Sorri e acariciei seu rosto de leve.

— Vamos, amor? As crianças devem estar sentindo nossa falta! E eu não esqueci nossos planos para mais tarde. – Usei minha voz mais romântica e sugestiva, sorri e pisquei para ele.

— Crianças? Mas ele… – A dona estava vermelha.

— Sim, temos sêxtuplos! – Dimitri sorriu entrando na brincadeira. Repousando a mão grande na minha lombar. Oh, eu me acostumaria facilmente com isso também. — Claro, minha Roza, vamos que quero colocar eles logo para dormir. – Sorriu sugestivo.

“Ai, agora eu queria que isso fosse real. Mesmo que tivéssemos sêxtuplos! Credo, Rose!”

   Fomos até o estacionamento abraçados, sob o olhar indignado da senhora.

   Ao sair da vista dela, rimos até chegar no carro de Dimitri.

— Você é maluca, Rose! – Ele me olhava com uma diversão quase infantil.

   Gostei de vê-lo com esse sorriso de menino, leve. Parece que a noite do hakuna matatafuncionou para nós dois!

— E você ainda duvidava disso, camarada? – Ri procurando algo para ouvir no radio dele. Só tinham velharias.

— Eu não imaginava que você deixaria a senhora tão irritada! Ela ficou tão vermelha que eu pensei que ela fosse explodir! – Dirigia com a janela aberta, alguns fios soltos voavam. Queria poder fotografar aquela imagem.

— O problema é todinho dela! Velha abusada! Ela tinha tanta plástica naquela cara feia dela que eu acho que quando ela morrer, só com exame da arcada dentária pra identificar! – Zombei enquanto colocava “simple man” para tocar. Achei uma que eu gosto.

   Dimitri riu me encarando incrédulo. Dei de ombros sorrindo com o riso dele.

— Se você não existisse, teria que ser inventada, Rose.

   Sorri cantando baixo a letra.

— Eu sei que você não viveria sem mim, camarada. Tudo bem, eu sei que sou engraçada e irresistível! – Sorri, cruzando as pernas em lótus no banco.

— E muito modesta! – Ele riu, mas não negou!

   Cantei a música até o final, me divertindo com o vento da janela soprando em meus cabelos. Eu me senti desafogada ali.

— Pode falar, camarada. A minha performance foi demais! – Brinquei.

— Parece que você não precisa de mais alguém para encher seu ego, Roza! – Ele riu. – Mas, sim, você tem uma bela voz.

   Ri sincera. O olhei profundamente, a cabeça levemente inclinada para a direita.

— Obrigada, camarada. – Sorri sincera. Ele sabia que eu não dizia sobre a música.

— Eu já te disse, Roza. Sempre que precisar, a hora que for, estou aqui. –Aumentei o sorriso lembrando do nosso pequeno momento mais cedo. É, eu não me sentia mais tão só. – E você ainda tem mais um remédio para tomar antes de dormir.

   Fiz uma leve careta, mas sorri internamente com o cuidado. Chegamos no condomínio conversando sobre a infância de Dimitri na Sibéria.

— Então você nadava em um lago congelado, e ia para a escola em um trenó puxado por huskies? – Ri já de pijama e medicada, tomando o chá que Dimitri preparou. Eu gostava de pegar no pé de Dimitri sobre aquele assunto. Toda vez era divertido.

— Eu já disse que não é assim lá, Roza! – Eu ri mais uma vez, era divertido implicá-lo.

   Acabei adormecendo pouco depois de me despedir de Dimitri, sorrindo com o tempo bom que tivemos juntos. Acho que o hakuna matata ganhou um novo significado para mim hoje.

 

 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E aí? Palpites sobre qual foi o motivo da Janine?

Links:

Rose moletom: https://pin.it/2T5Ojqu

Cherry baby: https://pin.it/1fM9VP8

Rose shopping: https://pin.it/3gcoScd

Casaco bege: https://pin.it/1eM0bOY

Tatuagem Rose: https://pin.it/6tNZTBi

Abe: https://pin.it/58jy9VW

Dimitri: https://pin.it/YVqJW2c



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Inquebrável" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.