O Casarão escrita por Aurora


Capítulo 4
Raios e Trovões




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CAPÍTULO QUATRO

RAIOS E TROVÕES

 

O inverno fora severo aquele ano. Não que Aurora tivesse notado tanta diferença, estava na maior parte do tempo junto de Viola perto da lareira, bordando ou estudando - e isso dependia muito da companhia em que as damas estavam - e isso significava que se Valentin estivesse na sala Viola e Aurora bordavam, já se não estivesse, ambas conversavam sobre ciências novas e notícias da Nova Inglaterra.

Viola gostava quando Aurora ensinava-lhe sobre ervas medicinais, e ficava grata com as infusões preparadas pela garota para melhorar sua saúde, porque nos últimos tempo a senhora do lugar acabou adoecendo. E mesmo com esforços de Tia Isabela em deixá-la cada vez mais confortável, ou os da Ama em cozinhar comidas nutritivas, ou os da Duquesa, que agora frequentava muito mais a casa do que anteriormente e fazia companhia para ela na hora do chá, a situação de Viola não parecia melhorar.

Aurora agora sempre estava ao seu lado e fazia tudo ao seu alcance para deixá-la bem. “Boas amigas”, como Viola costumava dizer às vezes durante conversas com a sua dama de companhia.

—Notei que tem estudado mais a noite, Aurora. - disse Viola enquanto olhava o fogo na lareira e a menina ler sentada na poltrona junto ao fogo. - O que acha tão interessante que te faz perder o sono?

—Plantas, - a menina mostrou o livro. - Estou tentando achar os sintomas da senhora em algum lugar para ajudá-la. Já que não sabemos o que é e os chás só amenizam os sintomas, mas eu…

—Aurora, me escute. Você se preocupa demais. - Viola se levantou e se juntou a Aurora. - Você está se cobrando demais, muitas mulheres ficam fragilizadas no inverno. - ela olhou para sua barriga e sorriu. - Principalmente as grávidas.

—Mas a criança... - a menina se levantou e depositou seu livro na mesa dos vasos de flores. - A criança tem que estar forte, ela deve ser para o começo de abril.

—Ele. - Viola corrigiu a menina. - É ele. Eu posso sentir. - Viola se levantou e olhou para a janela. Estava nevando lá fora. - Valentin ainda acha que pode ser uma menina. Mas eu tenho certeza de que é um menino.

Aurora sorriu. Ela sabia a suspeita de Viola e também suspeitava que seria um menino. Um lindo menininho. Chamado Henrique.

Cavalo foram ouvidos ao longe.

—Valentin. - Aurora falou indo até a janela. - Mas está acompanhado. - Viola olhou pela janela também.

—Conheço o que está perto de Valentin. - ela disse. - Lauren, amigo da família, creio que o outro seja um desconhecido para mim.

—Devo me arrumar? - Aurora perguntou entre dentes desgostosa.

—Como sua senhora, devo dizer que sim. - Viola disse, logo depois sorriu como uma criança. - Mas como somos amigas, devo dizer que você pode fazer o que achar prudente para se apresentar aos homens.

Aurora sorriu de canto e apenas alisou suas vestes.

—Vou preparar um chá! - exclamou e saiu deixando Viola sentada a cadeira novamente.

Enquanto rumava para a cozinha Aurora ouviu Valentin abrindo a porta da frente da casa e chamando por Viola e ouviu uma tia Isabela muito atrapalhada descendo rápido as escadas para fazer a corte aos convidados.

O chá não demorou a ficar pronto na bandeja, pois pelo o que Aurora havia notado a Ama já sabia que alguém viria já que quando chegou o chá já estava no fogo. A menina pegou a bandeja e foi a sala com a maior rapidez e cuidado que conseguia.

—...e então pensamos que poderia se chamar Henrique, já que é o nome do avô materno de Valentin. - Viola contava alegremente enquanto colocava as mãos sob a barriga. Aurora depositou a bandeja na mesa e cruzou as mãos em sua frente endireitando o corpo. Seu olhar foi diretamente para ambos os convidados que agora olhavam para a menina, um era mais velho e corpulento, com cabelos grisalhos e um nariz torto, o outro era mais jovem, os cabelos eram escuros e os olhos tempestuosos, pele pálida e este, ao contrário do outro, parecia realmente interessado na presença da garota naquele recinto.

—Esta é a senhorita Porter. - apresentou Viola. - Uma de minhas damas agora que estou grávida. - Aurora sorriu e fez uma leve mesura aos convidados. O homem mais jovem levantou-se de imediato e estendeu a mão para a garota.

—Senhorita Porter. - Aurora estendeu a mão e ele a beijou mais demoradamente do que seria necessário. - Posso pedir-lhe senhorita, o seu primeiro nome?

—Babá. - respondeu Valentin que havia se distanciado um pouco da esposa e agora encara o homem mais novo com um sorriso que beirava a diversão.

—Aurora. - a menina retrucou fechando os olhos como se fizesse uma força descomunal para não achar aquilo ultrajante e quando reabriu os olhos sorriu amavelmente. - Meu nome é Aurora.

—O meu é Philipe. - ele sorriu para a moça. - Philipe Lauren.

—Vamos filho, pare de babar na moça, ela só está tentando nos servir chá. - o homem mais velho deu uma risada que parecia estremecer a casa.

Aurora se limitou a sorrir e a servir o chá nas xícaras.

Philipe voltou a sentar-se porém quando Viola voltou a falar foi interrompida pelo mesmo.

—Me desculpe, me desculpe, sei que é indelicado. - ele disse com a boca aberta em um sorriso. - Mas você me lembra alguém, e o sobrenome Porter me é familiar.

—Artur Porter. - Aurora respondeu entregando a xícara para ele e para o homem mais velho, e logo em seguida para Viola, esquecendo-se de Valentin propositalmente. - Exército, talvez já tenha me visto ao lado do meu irmão. Ou de meu pai, Charles.

—Ah sim, Artur Porter, creio que conversei com ele uma ou duas vezes. - o homem disse interessado. - E como ele está agora? O que tem feito?

—Exército. - respondeu Aurora que estava achando a atenção toda muito incômoda. - Está em serviço, assim como eu. - ela disse olhando para Viola. - Precisa de meus serviços no momento, senhora?

—Não, creio que pode se retirar. - Valentin respondeu antes que Viola, que apenas bebericou um pouco mais seu chá olhando para Aurora.

—Ah meu amigo, creio que possa deixar a dama ficar. - retrucou Philipe.

—A senhorita Porter não deseja ficar aqui, isso ficou bem claro com a pergunta que a mesma fez. - Valentin disse como se encerrasse o assunto. - Pode sair, babá.

Aurora levantou-se e caminhou até a porta da sala.

—Com licença, senhores, senhora. - ela deu uma última olhada para a sala e saiu do ambiente não sem antes ouvir Viola ralhar um pouco sobre “os péssimos modos com os quais Valentin tratou a menina”.

 

***

 

Anoiteceu antes que Aurora pudesse ouvir os cascos dos cavalos indo embora, o que sinalizava que agora teria como ir para a sala e ver se Viola precisava de alguma coisa. Descendo as escadas rapidamente, Aurora parou antes de abrir a porta da sala.

Tia Isabela estava ao lado da porta com os ouvidos colados na madeira. A menina logo percebeu o porquê, as vozes que vinham da sala não pareciam estar amigáveis.

—Eu não podia simplesmente deixar que alguém sugerisse isso dentro da minha própria casa. - sibilou a voz de Valentin.

—Eu também não concordo, mas você foi rude. - embora não tivesse gritando, a voz de Viola estava em seu tom normal e não sibilada como a do marido. - Eles são amigos da família.

—Da sua família. - Valentin retrucou.

—Estou pedindo que não faça mais isso, sim? - a voz de Viola se mantinha calma.

—Então eu quero que alguém se certifique que aquele lá não vai mais sugerir nada com relação à menina. - Valentin sibilou de volta. - Ela é empregada da casa, não quero esse tipo de comportamento com quem está sob meu teto. Seja família, amigo ou empregado.

—Por que Valentin? Nunca se incomodou com isso. Sei que a moça não te agrada. Mas seu comportamento… Valha-me Deus!

—Eu só não quero o tipo de sugestão que ele fez novamente! - dessa vez a voz saiu estridente e alta.

—Eu cuidarei disso. - Viola disse mais calmamente e ouviu-se o som da cadeira rangendo e os passos de Viola. - Eu prometo.

Tia Isabela agora arrumava os cabelos e abriu a porta enquanto batia desajeitada como se tivesse acabado de chegar ali, e não como se estivesse ouvindo tudo há alguns minutos.

—Me desculpe, mas o jantar está na mesa. - Aurora espiou por trás da governanta da casa e pode ver Viola abraçada a Valentin que agora a aninhava em seus braços. A mulher sorria, mas Valentin parecia inconformado e tudo piorou quando viu Aurora atrás de Tia Isabela. Valentin fechou a cara e soltou-se da esposa.

Viola sorriu amavelmente.

—Aurora, querida, esqueceu seu livro. - ela disse indicando a mesa com as flores.

—Oh! Mil perdões, eu… eu… - ela olhou de Valentin para Viola. - Eu gostaria de saber se a senhora precisa de alguma coisa. - ela concluiu com a cabeça baixa.

—Não, querida, pode ir se preparar para o jantar e eu farei o mesmo. - ela olhou para Valentin, deu-lhe um beijo e saiu da sala, assim como Tia Isabela que foi ao seu encalço perguntando sobre como tinha sido a visita.

A garota que ainda estava parada na soleira da porta entrou rapidamente e pegou seu livro enquanto o outro jogava-se na poltrona.

—Porter. - o som da voz de Valentin a fez parar antes que saísse do cômodo. Era a primeira vez que pronunciava seu sobrenome, e não o substantivo que a irritava.

—Sim, senhor. - ela parou e virou-se para ele que tinha uma das mãos na têmpora. Parecia em dúvida sobre o que dizer. Ideias conflitantes pareciam tomá-lo.

—Pode ir. - ele disse após uma longa pausa.

A garota saiu correndo do cômodo como um raio.

 

***

 

A sopa foi servida e ninguém sequer ousou falar algo durante o jantar. Era palpável o clima tenso e até mesmo o tempo lá fora parecia fazer jus aos sentimentos dos presentes na mesa. O vento rugia, e as portas e janelas, mesmo fechadas chacoalhavam violentamente, ao longe ouvia-se uma tempestade se formando.

—Devo colocar mais cobertores para os senhores essa noite, senhora? - perguntou a Ama que não parava de segurar o pequeno colar de ouro com a imagem de Santa Clara e olhava assustada para o tempo lá fora.

—De certo. - Viola respondeu. - A tempestade promete piorar.

—Arrume o quarto no escritório também, Ama. - pediu Valentin em tom despreocupado. - Tenho que verificar alguns papéis essa noite, e não quero atrapalhar minha esposa.

Viola apenas o encarou como se perguntasse silenciosamente o que estava acontecendo, mas nada disse até o fim do jantar, quando se recolheu para o seu quarto desejando uma boa noite a todos. Valentin rumou para o escritório e Tia Isabela e Ama foram aos seus aposentos assim que acabaram de arrumar a casa e checar todas as portas e janelas.

A menina Aurora, por outro lado, subiu para seu quarto apenas para pegar seu livro de ervas e flores para em seguida descer novamente para a cozinha. Com o vestido de rendas no pulso que a aquecia, a menina folheava o livro ao lado de algumas folhas de papel de carta e uma caneta tinteiro á mão. Flores de todos os tipos desenhada cuidadosamente nas páginas do livro indicavam suas propriedades e como utilizar cada uma de suas partes.

O temporal não diminui e o tempo passou-se com Aurora ainda acordada na cozinha lendo sob a luz de velas quando um trovão estrondou do lado de fora da casa.

—Dios mio, - a voz rouca de Valentin saiu da escuridão do corredor, para revelar depois o homem saindo das sombras e entrando na cozinha apenas com as calças e encharcado de suor.

—Senhor Montes. - Aurora levantou-se rapidamente mirando o senhor que embora sempre imponente parecia, naquela situação, assustado, olhando a todo momento para os lados e estremecendo com os trovões que vinham de longe. - O que faz acordado uma hora dessas, senhor?

—Creio que não devo satisfações par… Diablo - a frase foi entrecortada pelo susto de um novo trovão, ainda mais alto que o primeiro e pelo barulho das janelas batendo ferozmente contra os batentes da casa.

A menina se aproximou do homem o encarando delicadamente e tocou-lhe o ombro. O toque fez Valentin olhar para a menina e se afastar rapidamente, como se seu toque doesse.

—Está suando. E quente. - a menina novamente o tocou preocupada agora com a mão em sua testa. - Oh céus, está ardendo em febre…

—Não é nada de mais babá. - ele disse retirando a mão da menina de sua testa e dando a volta na mesa, coisa que, Aurora percebeu, foi apenas para tomar a maior distância possível da garota. - Por que você está acordada?

—Estudando. - a garota informou ainda com o olhar de preocupação em sua face. - E o senhor? Precisa de algo? Um chá? - ela perguntou.

—Preciso de mais do que um chá. - Valentin falou sorrindo ironicamente.

—Qualquer coisa que o senhor quiser. - Aurora respondeu encarando-o esperando por uma ordem, coisa que só fez o homem rir novamente.

—Como se pudéssemos cuidar do envenenado com mais veneno. - ele murmurou.

—O que quer dizer?

—Quero dizer que não quero sua ajuda, babá. - ele disse mais alto do que o som da chuva lá fora, e para Aurora aquilo bastou para que toda a sua empatia se partisse. Era óbvio que ele seria tão rude como das outras vezes, mesmo doente.

—Pois bem, boas noites para o senhor. - a menina pegou os livros e rumou em direção a porta.

—Espere. - a voz do homem saiu quase em um sussurro, e Aurora se virou para encará-lo. - Poderia… - Valentin parecia imensamente incomodado. - A senhorita poderia ficar?

—Eu?

—Sim.

—Aqui?

—Sim.

—Com você?

—Sim.

—Durante a chuva?

—Sim.

—Porque o senhor tem medo.

—Sim. Não…

—Não era uma pergunta.

—Quem te deu autorização para...?

Como se estivesse esperando o momento um raio iluminou a casa e o som do trovão explodiu ali perto. Valentin se encolheu e xingou em uma língua que para Aurora parecia enrolada e sem sentido.

—Já que o senhor não tem medo estou me retirando. - a menina disse e deu as costas novamente para o homem.

—Não, não, não, não. - as mãos de Valentin seguraram o braço da menina e a puxaram de volta para a cozinha. - Eu tenho medo, está bem? Eu tenho medo. Só… Fique um pouco comigo.

A menina o analisou de cima a baixo como se pondera-se se deveria aceitar ou não o pedido, o medindo com os olhos e o semblante nada amigável.

—Por favor, senhorita Porter. - Valentin pronunciando seu sobrenome e não o costumeiro “babá” fez Aurora ceder e sorrir - era a segunda vez em um dia, nada mal. Ela mal abrira a boca para consentir em ficar quando um novo raio cortou os céus o que fez Valentin a abraçá-la quando o trovão veio forte e imponente.

Os braços de Valentin a apertaram com força, mas a menina não recuou e nem mesmo o homem pareceu perceber o que estava fazendo.  Os dois, em pé, na entrada da cozinha esperaram a tempestade que já não parecia tão forte ir passando vagarosamente. A mãos de Aurora estavam nas costas de Valentin fazendo pequenas carícias, para acalmá-lo, e a respiração do homem começou lentamente a diminuir enquanto os minutos se passavam e a tempestade ficava cada vez mais distante.

A menina sutilmente deu tapinhas em suas costas e tentou se afastar, sendo liberada rapidamente pelo homem que agora parecia ter percebido o que fez.

—Me desculpe. - ele pediu.

—Tudo bem. Se o senhor precisar de algo pode me chamar. - Aurora disse sorrindo amavelmente - Boa noite, senhor Montes. - esta pegou seus livros da mesa e fez uma leve mesura com a cabeça.

—Boa noite, babá. - o homem falou enquanto acompanhava com os olhos Aurora ir pelo corredor para a escadaria que a levaria para seu quarto.

A chuva já havia passado. Por que precisaria dela novamente?


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