E Ainda Assim, Eu Me Levanto escrita por Eponine


Capítulo 1
Eu Me Levanto




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Podes inscrever-me na História

Em mentiras amargas e retorcidas.

Podes espezinhar-me no chão sujo

Mas ainda assim, como a poeira, vou-me levantar.

 

Marie Laveau observou Godric Gryffindor admirar-se com seus artefatos mágicos, simplesmente embasbacado em como os bruxos afro americanos não precisavam de varinhas para performar magia:

“É meio selvagem, não é atoa que teve que correr de fogueiras. Varinhas são mais sofisticadas”, riu o homem, olhando Marie com deboche. Ela lhe sorriu de volta, apertando o chalé, sem conseguir piscar para desviar seus olhos daquele homem. Olhou para seus outros colegas, tocando tudo que podiam tocar. Provavelmente adquirindo conhecimento, mas essa é apenas a forma sofisticada de dizer que estavam roubando.

Seu crédito nunca viria, e ela não esperava por ele.  

“Realmente... É mais sofisticado”, concordou a bruxa, ainda sem piscar para o homem branco.

 

Minha impertinência incomoda?

Por que ficas soturno

Ao me ver andar como se tivesse em casa

Poços de petróleo jorrando?

 

Joan D’Arc tentou sentir algo que não fosse vontade de chorar de decepção. Não acreditava que aqueles homens que ela salvou a vida estavam prestes a queimá-la viva. Fechou os olhos com força, tão trêmula que mal conseguia manter-se parada, ela era uma guerreira. Observou a praça lotada, com a boca seca. Não conseguia se concentrar em um rosto, todos falavam ao mesmo tempo, o sol queimava seu rosto e ela sabia que haviam bruxos dentre aquela multidão.

Provavelmente estavam rindo dela.

Olhou o homem encapuzado perto de uma banca de frutas. O homem continuou impassível, analisando-a como uma pintura.

Não foi em vão, não foi em vão”, sussurrou para si mesma, quase engasgada em choro. Não ia dar esse prazer para aqueles que iam contribuir com sua morte injusta. Engoliu o choro, erguendo o queixo, sentindo as lágrimas queimarem seu rosto.

“Eu sou, eu sou, eu sou...”

 

Como as luas e como os sóis,

Como a constância das marés,

Como a esperança alçando voo,

Assim me levanto.

 

Helena Ravenclaw arregalou os olhos quando sentiu algo atravessar suas costas. Uma dor ensurdecedora a atingiu em menos de um segundo, fraquejando seus joelhos. Ela ainda estava em estado de choque quando Max virou-a, desesperado, tentando estancar o rio de sangue que saia no abdômen de Helena, onde ele esfaqueara.

“Me perdoe, eu te amo... Eu te amo... Eu te amo tanto...”

Estava tão fraca que sequer conseguia falar, só queria ter forçar para afastá-lo. Não sabia que amor podia matar alguém tão covardemente, mas não eram seus livros românticos que diziam que o amor de um homem pode ser letal? Um jovem apaixonado... O desespero de um homem apaixonado é capaz de loucuras de amor...

“Eu te amo! Eu fiz isso porque te amo! Eu te amo...”

 

Querias ver-me alquebrada?

Cabeça pensa e olhos baixos?

Ombros caídos como lágrimas,

Enfraquecida de tanto pranto?

 

Batilda Bagshot releu novamente a carta, sentindo um silêncio sólido cair em sua cabeça.

Era a terceira editora que rejeitava o manuscrito d’A História da Magia. Em breve, se completariam quase dez anos que ela tentava publicar aquele livro, e o fato de não ter nenhum co-autor, no masculino, diga-se de passagem, ela estava quase perdendo as esperanças. Aqueles sete anos de pesquisa foram em vão. Sentou-se novamente, certa de que iria ter que usar um heterônimo masculino.

Olhou para sua estante, observando “Um Teto Todo Seu”, da escritora trouxa Virginia Woolf. Quando ela disse que uma mulher precisa de um teto todo seu, com tranca na porta, para escrever, ela se esquecera de que ela também precisa escalar um muro de homens para alcançar uma caneta e o papel?

Se Batilda escrevesse um romance, certamente já estaria publicado, pois mulheres só podem escrever sobre o que entendem, segundo os homens...

Releu a carta de rejeição, pronta para escrever outra.

 

Podes fuzilar-me com palavras

Podes lanhar-me com os olhos

Podes matar-me com malevolência

Mas ainda assim, como o ar, eu me levanto

 

Bellatrix Black olhou para a sala cheia de homens novamente, levemente trêmula.

“Se formos por esta rua, os Aurores nos...”

“O que você sabe, afinal?”, cortou Travers, rindo com um charuto no canto de sua boca. Sua fala deu liberdade para os outros explicitarem seu escárnio sobre Bellatrix, não que eles se esforçassem para ignorá-la ou praticar descaso, como se ela fosse burra. Olhou para Scabior, seu único amigo naquele meio, mas o mesmo parecia concordar com os outros.

“Eu sei disso porque eu...”

“Você não sabe de nada, mulheres da sua classe nem podem sair à noite!”, riu Dolohov, “Digo, não que você cumpra muito as regras...”, olhou maliciosamente para os outros, fazendo Bellatrix corar, o que lhe irritou profundamente.

“O que você quer dizer com isso, seu imundo...”

Senhorita Black”, ela congelou, abaixando a cabeça rapidamente. O Lorde das Trevas estava no fundo da sala, apenas ouvindo o debate, e Bellatrix fora incômoda o suficiente para fazê-lo se manifestar. “A senhorita não percebe que está causando discórdia?”

Olhou os vinte homens ali reunidos e engoliu seco, sentindo-se nua com os olhares. Pela revolução, pela revolução..., pensou trêmula.

“Me perdoe, milorde, eu tentarei...”

“Tente ser breve da próxima vez. Vocês, mulheres, tem a tendência de falar demais”, cortou-a.

 

Minha sensualidade perturba?

Por acaso te surpreende

Que eu dance como quem tem diamantes

Ali onde as coxas se encontram?

 

 

Lílian Evans sorriu ao ver sua amiga dançar com Sirius pela pista.

“Sempre que Marlene bebe ela fica tão vulgar”, comentou James, tomando mais um gole de cerveja amanteigada. A ruiva olhou para seu marido lentamente, ainda embalando Harry em seus braços.

“Isso quando ela não cai bêbada pelos cantos... É vergonhoso”, riu Peter, também na mesa.

“Você fez isso literalmente semana passada”, relembrou Lílian, completamente assombrada com a conversa da mesa.

“Eu sei, mas eu sou homem”, disse, como se aquilo explicasse tudo. Ela continuou de sobrancelhas unidas, sem piscar para o homem diante dela.

“Você não entende o que queremos dizer”, disse James, lembrando-a o quanto ela odeia seu tom de voz pretensioso e pedante. “Aliás, está um pouco tarde para uma mãe ficar nesse tipo de ambiente, vamos embora?”.

James demorou alguns segundos para notar que o rosto duro e o olhar congelado de Lílian em sua direção não eram momentâneos.

 

Do fundo das cabanas da humilhação

Me levanto

Do fundo de um pretérito enraizado na dor

Me levanto

Sou um oceano negro, marulhando e infinito,

Sou maré em preamar

 

Hermione Granger manteve-se séria com seu diploma nas mãos.

O fotógrafo tirou os olhos das lentes mais uma vez, visivelmente incomodado com o rosto fechado da garota após tirar tantas fotos de estudantes recém-formados sorridentes. Conteve a vontade de perguntar mais uma vez o porquê dela preferir sair séria e voltou para a lente, contrariado.

Não conseguiu e saiu das lentes novamente, olhando-a:

“Sério mesmo que não vai sorrir?”, questionou mais uma vez.

“Sim!”, confirmou, começando a irritar-se.

“Quando olhar essa foto, você vai querer se ver sorrindo, lembrar de tudo que conquistou”

“É exatamente por isso que quero estar séria”, reforçou Hermione, assistindo o homem voltar para a lente irritado por ser contrariado. Ela quer olhar esta foto e lembrar-se dos anos de racismo que passou naquele lugar, de todos os nomes que fora xingada e teve seu afro puxado. Queria lembrar-se de todas as vezes que chorou diante do espelho incomodada com os dentes que Deus lhe dera apenas porque ele incomodava os outros. Queria lembrar-se de todas as humilhações, de todo o preconceito pelo sangue que corre em suas veias. Queria lembrar-se de todas as vezes que sua razão foi questionada apenas pelo órgão genital que tinha entre as pernas.

Queria lembrar-se de todas as vezes que chorou, de todas as humilhações, cada uma delas.

E como pisou nelas, e levantou-se em seguida.

 

Para além de atrozes noites de terror

Me levanto

Rumo a uma aurora deslumbrante

Me levanto

 

Lílian Luna arrumou seu cabelo escovinha para trás mais uma vez, olhando-se no espelho.

“Você consegue, você consegue...”, falou, focada.

Saiu do dormitório, de cabeça baixa, com as mãos nos bolsos de sua calça social. Todas as meninas naquela noite de Baile de Inverno estavam de vestido, mas Lílian nega a feminilidade todos os dias, aquele não podia ser diferente.

“Olha lá a maria macho”, alguém comentou quando ela passou pela Sala Comunal lotada, ignorou os risos e saiu, firme. Cada passo, uma resistência, cada passo... Desceu as escadas, ainda de cabeça baixa, ignorando os chamados de um grupo de garotos. Atravessou a multidão de adolescentes que riam de sua cara, negando-se a olhá-los.

Chegou ao Salão e foi para a mesa de bebidas, pegando um suco.

Não tinha um par, porque se houvessem lésbicas em Hogwarts, elas estavam trancafiadas em seus armários, e sair com a única lésbica butch* daquele colégio seria explodir o armário. Tomou um gole de seu suco, ignorando os comentários ao redor dela.

Observou os casais na pista, mordendo seu copo.

Tentou manter a cabeça erguida.

 

Ainda me levanto

Me levanto

Me levanto

 

 

 

 

 

 

 

 


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Notas finais do capítulo

Isso é fraco.

Isso é burramente fraco, porque nós, mulheres, sofremos muito mais que o constrangimento de um mansplaining. Não podemos nos esquecer das meninas nordestinas aliciadas (ou vendidas pelos próprios pais como mercadorias) à prostituição desde novas, mutilação genitalia de meninas na Somália, o feminicidio na China e Índia de bebes que morrem apenas por terem uma vagina, as milhares de mulheres estupradas e violência doméstica diariamente por todo o mundo, as vítimas de aborto caseiro, julgadas por um Estado que controla nossos corpos, as mulheres do exército americano estupradas e silenciadas nesse ambiente de ""igualdade"", as mulheres vitimas de casamento infantil, as mulheres silenciadas do Oriente Médio, que tem educação negada apenas por serem mulheres, as mulheres carcerarias que são obrigadas a usar miolo de pão como absorvente, mulheres vitimas de maternidade compulsória e violência obstetra, as mulheres lésbicas vitimas de estupro corretivo, as mulheres anorexas com qualquer disturbio, vitimas do mito da beleza.

Não podemos nos esquecer das 130 proletárias que morreram carbonizadas numa fábrica, 8 de março de 1911.

Caça às Bruxas não acabou, só mudou o método.


Marie Laveau: "O termo é uma junção de bro (curto para brother, irmão, mano) e appropriating(apropriação) e se refere a quando um homem se apropria da ideia de uma mulher e leva o crédito por ela em reuniões." http://www.geledes.org.br/o-machismo-tambem-mora-nos-detalhes/#gs.q=A7ZBY

Joan D'Arc: Quando era criança, presenciou o assassinato de membros de sua família por soldados ingleses que invadiram a vila em que morava. (...) Cortou o cabelo bem curto, vestiu-se de homem e começou a fazer treinamentos militares. Foi aceita no exército francês, chegando a comandar tropas. Suas vitórias importantes e o reconhecimento que ganhou do rei Carlos VII despertaram a inveja em outros líderes militares da França. Estes começaram a conspirar e diminuíram o apoio de Joana D’arc.

Em 1430, durante uma batalha em Paris, foi ferida e capturada pelos borgonheses que a venderam para os ingleses. Foi acusada de praticar feitiçaria, em função de suas visões, e condenada a morte na fogueira. Foi queimada viva na cidade de Rouen, no ano de 1431.


Helena Ravenclaw : Morta porque Barão Sangrento ama demais, assim como Eliza Samudio, Eloá Cristina, Nívia Araújo, Mércia Nakashima, Ione da Silva Araújo, Marília Rodrigues Silva Martins, Isamara Filier, Amanda Bueno, Janaína Mitiko, e outras milhares de mulheres, mortas por homens que amam demais.


Batilda Bagshot: a dificuldade da mulher na literatura, http://gelbcunb.blogspot.com.br/2017/03/essas-mulheres.html?m=0

Bellatrix Black e Lílian Evans: famoso mansplaining e também o slutshame, http://movimentomulher360.com.br/2016/11/mm360-explica-os-termos-gaslighting-mansplaining-bropriating-e-manterrupting/

Hermione Granger: esse INFELIZMENTE eu não lembro o nome e nem tenho link, foi um post no facebook de uma aluna de direito que foi quase forçada a sorrir na foto de formatura, mas ela explica o porque dela querer ter tirado a foto séria, assim como escrevi, ela dizia que ela não tinha motivos pra sorrir depois de todo a misoginia e racismo que passou na faculdade.

Lílian Luna: Para Luana dos Reis, uma mulher lésbica e negra, agredida por PMs ao exigir que uma policial do sexo feminino a revistasse. Ela foi brutalmente espancada no dia 8 de abril de 2016, quando levava o filho ao colégio.


*Butch: garotas lésbicas que não performam feminilidade, tanto como por resistencia como por falta de identificação. São as """"bofinhos"""" (termo escroto).