Ego escrita por Nipatsu


Capítulo 6
Convicção




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Machina ofegava um pouco, de maneira bem baixinha, em minha frente. Aparentemente foi um pouco mais difícil de realizar esta tarefa em alguém que não fosse ele mesmo.

Não que isto me importasse, afinal... Agora eu tenho um corpo, pronto para conseguir fazer tudo sozinho e de forma independente.

Tentando me levantar, notei que ainda estava fraco. Provavelmente devido à falta de costume e inadequação. Cambaleei um pouco, me apoiando na parede mais próxima.

— Você está bem? Deveria ficar um tempo de repouso, você não está acostumado com isso...

Eu mal ouvia o que ele estava dizendo. Meus olhos e meus ouvidos doíam pela intensidade e nitidez dos sons e das cores. Eu conseguia ouvir e também conseguia ver quando estava retido no interior da espada, mas não imaginava que a diferença seria tamanha – ou melhor, eu não me lembrava dessa aludida diferença.

Machina segurou um de meus braços, me guiando de volta ao chão.

— Fique aqui, quieto. Não faça muito esforço, com o tempo você irá se acostumar. – disse, levantando-se e indo buscar alguma coisa do outro lado da sala, flutuando levemente como de costume.

Era de noite e o local estava sem muita iluminação, exceto pela lareira improvisada e a luz lunar que banhava o recinto. Se eu já não conseguia enxergar ou ouvir direito nestas condições, sequer consigo imaginar como seria no dia seguinte, com a luz do sol e demais sons que viriam.

Coloquei as mãos sobre a minha cabeça, apertando levemente. Uma leve dor era tudo o que eu sentia, mas consigo afirmar que valia a pena. Valia muito a pena estar livre daquela carcaça metálica, embora eu continuasse preso a Zero.

Senti o toque morno da mão de Machina em minha bochecha esquerda.

 - ... O que está fazendo, pare com isso-

Dei um pequeno tapa, afastando a mão dele.

— A não ser que eu dê permissão expressa, não toque em mim!

Não era muito transparente, mas de algum modo eu conseguia detectar uma certa decepção vindo dele. Seguia me observando, com um fundo de decepção em seu olhar através das lentes que enfeitavam seu rosto. Odeio admitir mas ele era ainda mais bonito quando visto de perto.

— ... Como desejar. – Ele se afastou mais, estendendo um recipiente com um pouco de água em seu interior.

Sem hesitar, peguei e tomei um gole. Talvez me ajudasse a me recuperar de forma mais rápida.

Tudo era estranho. Parando para pensar, eu tinha a sensação de que já nos conhecíamos antes do dia na caverna. Eu só não conseguia me recordar de nada.

— Deus. – Disse. Seus olhos heterocromáticos encontraram os meus olhos novamente. – Por um acaso... Você se lembra de algo antes de se tornar uma arma?

— Negativo. Quando uma alma é transformada em um núcleo de energia para fomentar este tipo de armamento, diversas memórias se perdem para otimizar espaço e tamanho. Normalmente é julgado inútil mantê-las, mas nunca foi feito um estudo neste ramo pois... A forja deste tipo de arma não é usual. São raras, e existem apenas três que foram um sucesso.

— Você também é um, então são quatro.

— Não acredito que eu possa me considerar semelhante a vocês pois não conheço e nem tenho informações do modo de forja utilizado para a minha criação.

— Mas você também tem um núcleo semelhante ao meu, então somos quatro.

Deus não respondeu. Aparentemente apenas aceitou que eu estava certo. Não acredito que seria justo excluí-lo da classificação apenas por não ser uma espada ou por ter sido construído através de meios desconhecidos.

— ... Enfim. Existe algum meio de recuperar as memórias apagadas durante o processo de criação?

— Acredito que não. O processo é muito específico... Pelo que sei, quando um ser vivo morre, a alma é encaminhada para Hades. A principal linha que passa por Ernas é o Expresso 301, enquanto o que passa por Elyos é o Expresso 563. Até onde consegui entender, existem várias linhas divididas e ligadas entre diversas dimensões, com a específica finalidade de transportar almas para o submundo. Inclusive na mesma dimensão existe mais de uma linha.

Maluco, o negócio foi de zero a mil em alguns segundos. Eu nunca iria imaginar que existe uma máfia ferroviária que transporta almas para o submundo!

— As almas apenas embarcam totalmente após um período de tempo, que varia de acordo com a quantidade de informação que esteja sendo levada. É quase como o que chamo de backup.

Não entendi um nada do que ele estava falando, mas parecia ser sério e não baboseira inventada pra me zoar.

— Ao chegar em Hades, as almas desembarcadas passam por um prévio julgamento realizado por Velvet, a juíza do submundo. Isso possui a finalidade de-

— Ok, espera aí. Eu tenho uma pergunta a fazer.

Deus olhou para mim, aguardando que eu as realizasse.

— Como você sabe de tudo isso mesmo?

— Possuo contato direto com o Criador e suas decisões. Embora acredite que eu nunca tenha visitado Hades, eu posso consultar diversas fontes de informação por causa disto.

— .... Certo, eu vou engolir esta desculpa por enquanto. – Parecia muita loucura para o meu gosto.

— Pois bem, o julgamento realizado por Velvet tem a finalidade de realocar as almas para seus devidos locais.

— Como assim “locais”-

— Primeiramente, cumpre destacar que Hades é dividida em “setores” ou “ilhas”, como preferir. Por lá, eles são chamados de “círculos”. Atualmente existem nove, e um círculo central, no qual está alocada a Prisão Maior.

Ele reajustou os óculos em sua face, logo tornando a falar.

— Os círculos são divididos pelo que é conhecido no dizer popular como “pecado”: avareza, luxúria, gula, ira, inveja, preguiça e orgulho.

— Ok, até o momento você citou sete, existem mais pecados condenáveis que não se encaixam em nenhum desses? – Eu sabia contar e sabia que os principais eram esses, sendo que as condutas dos seres vivos poderiam se encaixar em pelo menos um desses pecados.

— Não exatamente. Um dos círculos é conhecido como o “purgatório”. O purgatório é o local para onde as almas que foram julgadas boas vão para aguardar a reencarnação. Em verdade, as memórias apenas são aproveitadas pela “juíza” para que ela analise a conduta individual e destine cada uma das almas para o local onde ela pertence.

— Você tá me dizendo que dentro do trem ainda existem memórias nas almas transportadas?

— Sim, na verdade elas existem até o momento oportuno, qual seja o da reencarnação. No momento do retorno ao plano terrestre, seja qual for, as memórias são apagadas para que se inicie um novo ciclo.

— Quem porra é essa juíza, afinal?

— Velvet é aquela que foi escolhida para realizar os julgamentos divinos. É uma outorgada pelo Criador para realizar especificamente esta tarefa no purgatório, “controlando” os fios do destino. A existência de Velvet é tida como uma espécie de “lenda urbana” pelos cidadãos mais comuns de Hades. Quase um rumor. Os que atestam a sua existência são os que acabam por trabalhar diretamente com almas, como os “funcionários” do Expresso e também os Caçadores de Recompensa.

— ... Tá. Afinal, o que acontece com as almas que não passaram pelo teste da tal juíza? Até o momento me pareceu tudo muito suave, você pega uma viagem de trem de graça e espera o fim da linha pra voltar à vida. - Cara, isso é muita informação para a minha cabeça, tá louco!

— Como eu disse antes, a juíza irá realocar as almas para os locais onde elas pertencem. Dependendo do pecado e da sua gravidade, podem ir para o purgatório, aguardar a purificação e a reencarnação, ou podem ser realocadas para algum dos círculos. Os círculos, ao mesmo tempo que abrigam as cidades em que os Haros se desenvolvem, possuem cadeias apropriadas para o pecado cometido e para que seja cumprida a pena que a juíza sentencia para cada alma.

Ele olhou pela janela, a luz da lua refletia em sua pele um tanto pálida.

— O nono círculo, porém... É completamente destinado à Prisão Maior. É nela que acontece a realocação das almas com as maiores penas, por serem consideradas perigosas demais para a reencarnação. Aliás, é de lá os maiores índices de fuga- ... Você está bem?

Acredito que eu estava com uma expressão muito esquisita, pelo jeito que ele me olhou, interrompendo a sua fala. As chances eram grandes.

— ... Estou, só não entendo muito do que você está dizendo.

Machina soltou uma leve risada.

— Tudo bem, eu compreendo. Não é algo que as pessoas conseguem entender de primeira e sem um exemplo prático. Meu caso é um pouco diferente pois possuo acesso irrestrito a este tipo de informação em razão do Criador.

— Certo, mas qual a finalidade dessa enxurrada de informações mesmo?

— Ah sim. Era apenas para que você conhecesse o processo de recebimento de almas em Hades, já que a pergunta inicial era sobre a eventual possibilidade de restauração de memórias. – Machina se acomodou no local em que estava sentado. – O processo chamado de “forja anímica”, criado pelo mago Oz Pone Max Reinhardt, era um tanto peculiar. Ele era um mestre em manipulação de almas.

— Cacete, o velho era tudo isso?

— Você não chegou a conhecê-lo? Acredito que saberia disso, até porque ele é o seu criador...

— Eu conheci, mas era apenas um velho babão emburrado!

Deus se silenciou.

— .... Que foi, era isso mesmo!

Quando conheci Oz, ele já havia me enfiado dentro da espada. Era um velho eremita, vivia enfurnado no covil dele, apenas estudando, dia após dia. Também foi ele quem criou Zero. Não sei exatamente como, mas foram diversas tentativas até criar um guerreiro capaz de me empunhar.

Eu não cedia a qualquer um. Imagine você, se tivesse um corpo metálico em formato de espada. Caso seu espadachim fosse qualquer um, ele morreria em qualquer batalha aleatória e você ficaria onde caísse para todo o sempre, correndo o risco de ser recolhido e virar sucata.

— Oz era um grande cientista. Lembro-me que o senhor Vince, após eu ter sido entregue a Veigas, comentava com alguns conhecidos sobre ele ter utilizado há tempos a alma de Edna para curar a doença da herdeira dos Crimson River. Acredito que isto foi antes de você ter sido criado.

— Eu não me lembro disso, então com certeza foi.

— Aparentemente, a extração da alma de Edna foi a primeira extração de sucesso feita por Oz. Curiosamente não consigo localizar registro de outro feito desta espécie antes disto.

— Pelo que notei ele fez isso por diversas vezes.

Machina tirou seus óculos e começou a limpar as lentes em sua blusa.

— Até se tornar um mestre de manipulação de almas, ele tentou por diversas vezes, muitas vezes sem sucesso. Você teve sorte de ter sido extraído após Edna.

Um calafrio percorreu meu corpo. Certamente era para eu estar morto a estar horas. Quer dizer, eu estou morto, mas tive quase que uma “segunda chance” de continuar sendo quem eu sou. Se não fosse por Oz eu provavelmente já teria reencarnado, se as coisas que Machina diz forem verdade.

— Os métodos dele são pouco convencionais. Utilizando-se de magia e da proximidade a um corpo sem vida, ele conseguia traçar a rota de uma alma e “abduzi-la” do interior do expresso, gerando uma forma física estável que pudesse ser utilizada. Você já viu um núcleo de perto?

— Não que eu me lembre. - Zero nunca havia aberto o compartimento da espada para retirar seja lá o que estivesse lá dentro, e tampouco Oz me explicou didaticamente ou com exemplos do que se tratava um núcleo de alma.

Trazendo o cubo para perto, ele abriu uma das faces do sólido geométrico, retirando de dentro uma espécie de orbe cor-de-rosa. Não era maior do que uma bola de tênis e parecia feito de vidro, emitindo constantemente uma luz não muito forte.

— Isto, Magnum, é um núcleo de alma. – Disse, posicionando-a logo à frente de seu rosto.


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Notas finais do capítulo

A partir deste momento, começo a introduzir algumas personagens originais, pois fazem parte da minha montagem pra Hades e Elyos.
A Velvet pertence ao meu amigo ShiroganeRyo, podendo ser verificada no blog de atualização da história da mesma: https://gcfanchar-velvet.tumblr.com/
Desde já agradeço a colaboração do Ryozito e quero que ele saiba que ainda sou muito feliz pelas nossas histórias se entrelaçarem!
Espero estar fazendo um bom trabalho ♥



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