Mirror escrita por Lua Chan


Capítulo 9
Uma garota flamejante




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Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

 – Luís de Camões

Faz um tempo que estávamos enfiados no trem. Enquanto Cassie descansava a cabeça em meu ombro, eu observava a paisagem se desbotar do lado de fora da janela, acompanhando o fumegar desnorteante da chaminé. Era tudo tão incrível, que me surpreendia dizer que eu ainda estava perto de casa. Minha cidade não era assim.

Senti algo na minha perna, enterrei a mão no bolso da calça e peguei o que parecia ser um pedaço de papel. Anexado a ele, tinham 3 fotos pequenas. Puxei os objetos amassados e forcei a vista para entender o que estava escrito. Ah, como eu sentia a falta dos antigos óculos! Por sorte, consegui arranjar um par na casa de Jason. Ao mencionar o nome dele, um arrepio se formou em minha espinha, junto a um nó de marinheiro no estômago. Lembrar de alguém como meu irmão me fazia perguntar como eu poderia confiar em outro alguém, mas era impossível. Só podia confiar em mim e em Cassie.

Balançando a cabeça, espantei os pensamentos ruins. Tentei desamassar o papel que descobri ser a carta que Cassandra me enviara como resposta à minha.

— Isso é o que eu acho que é? - a garota acordou, deixando um bocejo escapar de seus lábios.

— Depende. - falei, virando o rosto para ela - Se estiver pensando na coisa que me deixou deprimido por dias, então acho que sim.

Cassie desviou o olhar, como se estivesse incomodada com o comentário. Ela suspirou e fingiu um sorriso que saiu bem desajeitado.

— Sinto muito, mas você me machucou com aquela coisa de "se afastar do mundo". Achei que aquela fosse uma carta de suicídio. Por isso enviei a minha para Jason, talvez você pudesse receber antes de fazer qualquer coisa estúpida. Quando soube de sua morte... - seu olhar percorreu pela poltrona acolchoada do vagão. Baixei a cabeça, o arrependimento parecia empurrá-la ainda mais para baixo - Eu sofri, Millard. Não posso esconder isso de você.

Desdobrei a carta, que possuía por fora o nome de Cassandra. Se a caligrafia de Jason fosse comparada a dela, seria humilhado na mesma hora.

Millard,— li em voz alta a primeira palavra, notando que antes de "Millard" havia um "querido" grosseiramente rabiscado - Sinto uma dor forte no peito, um fúnebre vazio no coração, um frio na alma. O que isso deveria significar? O que tudo isso quer dizer? Por horas fiquei me perguntando como poderia sofrer dessa maneira por alguém que deveria ser meu melhor amigo. Me perguntei até quando viveria com esse buraco negro excruciante me puxando para baixo.

Por que fez isso comigo? Eu merecia? Fiz algo que te magoou e esta seria sua impiedosa vingança? Oh, Millard! Queria que soubesse o que estou passando, até que sentisse minha imensurável dor. Por quanto tempo acha que precisei viver angustiada por te amar e nunca saber que a sensação era recíproca! Quando finalmente tive o contentamento de saber que me amava, você se apartou de mim da maneira mais misteriosa possível. Eu fui cegada pela inocência e confesso que até agora, estou completamente cega. Você é meu veneno. Sim, você é.

Mas não se preocupe, já estou decidida. Eu te destesto, Millard George Nullings. Te detesto por te amar demasiadamente.

De sua ex-amiga,
Cassandra Valentine

P.S.: Não quero estas fotos. Elas me lembram dos momentos prazerosos com você.

Uma lágrima teimosa percorreu pela minha bochecha. Dificilmente eu chorava, mas aquelas palavras me faziam lembrar do quão egoísta eu fui ao não contar nada para Cassie. Ainda me perguntava como ela teria me perdoado, mas apenas fiquei grato. Cassandra se aproximou ainda mais de mim, encostando uma mão fria em meu peito. É estranho dizer que alguém finalmente me fez sentir visível?

— Não faça isso de novo. - alarmou - Se não queimo todos os seus livros.

— Eu não trouxe muitos, de qualquer forma. - tentei soar despreocupado, mas depois dessa ameaça, tive medo de ela realmente pensar numa vingança como essa.

— Então queimo suas roupas. Quero ver como vai se virar com metade do corpo invisível. - seu nariz ficou levemente arrebitado, numa postura arrogante.

— Você não faria isso, amor.

— Nunca duvide de uma mulher, Millard Nullings. - nos abraçamos novamente e tiramos um cochilo mais sossegado.

. . .

Chegamos em Cairnholm há 20 minutos, depois de ter pego uma embarcação que nos levou até um pequeno bar, Priest Hole. Tirando o boteco, a paisagem de Cairnholm era surpreendente e inspiradora. Perguntei-me quantos autores românticos teriam passado por aqui, apenas para admirar o cenário bucólico e escrever versos de poesias deprimentes.

Não havia muitas pessoas, como disse Larry. A ilha parecia ser abandonada, se não fosse por um ou dois depósitos de pesca, vastos campos e casas por determinados lugares. Eu e Cassie decidimos rondar por diferentes locais sem pedir ajuda, inicialmente. Não queríamos chamar a atenção dos galeses. Eles tinham a fama de fofocarem da vida alheia e eu, definitivamente, não gostaria de ser o assunto da capa de um jornal: "Garoto invisível chega na Ilha Misteriosa". O quão esquisito seria?

— Mill! - Cassie me tirou dos pensamentos, correndo até minha direção hiperventilando - Você tem que vir aqui.

Sem mais delongas, segui os passos desjeitosos de Cassie, mesmo com a cabeça cheia de dúvidas. Ela me levou até o que parecia ser uma caverna. O local era um breu, mal pude enxergar a minha namorada, que estava a poucos centímetros de distância de mim.

— Que lugar é esse? - pedi, me forçando para escapar da completa escuridão - Você não tem um fósforo por aqui?

Como se uma resposta imediata, uma chama azulada se originou repentinamente a uns metros de nós dois. Nos entreolhamos receosos e aproximamos da pequena labareda de fogo. Ela dançava sobre um pedaço de palha, não parecia ter sido feita há muito tempo. Ao chegar mais perto, a chama ia se apagando, como se estivesse com medo de nós.

— Quem deveria ter feito? Não tem ninguém aqui. - Cassie tinha razão, não havia ninguém além de nós dois. Puxei a garota para perto e caminhamos lentamente até o outro lado da parede de pedras. Ao dar poucos passos, senti uma energia estranha invadir meu corpo. Cassie deve ter sentido o mesmo, ela piscou os olhos repetidas vezes e chegou perto de cambalear para o lado.

— O que foi isso? - perguntou, como se a resposta estivesse na ponta da minha língua. Por sorte, acabamos encontrando um feixe de luz que vestiu, timidamente, as rochas ásperas do lugar.

— Vamos descobrir.

Continuamos a andar, dando passos generosamente curtos até a luz, que nos revelou uma saída para o outro lado da caverna. Saímos de lá com um suspiro de alívio. Abracei a garota e falei para procurarmos um lugar para ficar, até que fui interrompido por alguém, que pressionou o que parecia ser uma lâmina contra minha garganta. O coração quase foi empurrado para meu exôfago.

— O que são vocês e quem os enviou para cá? - a voz escorregadia e ameaçadora pertencia a uma garota. Cassie deixou um grito escapar.

— S-Só estamos precisando de ajuda! - respondeu por mim - Por favor, solte-o!

A garota pareceu entender nossa situação, pois no mesmo instante, me atirou na grama pontiaguda do local. O impacto fez com que minha meia se esticasse, revelando minha canela - ou o que não se podia ver dela.

— V-Você é como eu! - a garota da faca exclamou.

— O quê?

— Olhem. - ela largou o objeto no chão e fez um movimento delicado com a mão direita. Uma labareda graciosa se originou, deslocando-se de um dedo para o outro - Sou uma peculiar.

Meu fôlego parecia ter sumido assim como minhas pernas já me traíram, um dia. Cassie estava tão estupefada que congelou.

— Eu já ouvi esse termo. - falei, lembrando-me do meu irmão ao me falar sobre seu extraordinário segredo - Também sou peculiar. Millard Nullings. Essa daqui é Cassandra Valentine. Sou um garoto invisível.

— Não é o que parece. - a menina falou num tom de flerte. No mesmo instante, Cassie reprimiu um gemido - Emma Bloom.

— Pois é. Meu namorado está desaparecendo aos poucos. - Cassandra se pronunciou, atraindo os olhos de Emma para ela.

— E você? - a menina flamejante pediu - Qual é sua peculiaridade?

— Eu não sou como vocês.

— Não? Impossível! - berrou Emma, como quem repelisse um veneno - Somente peculiares podem passar por essa caverna.

Eu e Cassie nos entreolhamos nervosamente.

— Está me dizendo que eu sou uma peculiar? - Cassandra questionou com as sobrancelhas tortas, o ar se esvaindo de seus pulmões tão rápido quanto entrava.


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