Mirror escrita por Lua Chan


Capítulo 15
Os refugiados




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A amizade é uma alma com dois corpos.

— Aristóteles

"Alex me beijou"

Nunca pensei que 3 palavras pudessem ser tão afiadas quanto uma faca de dois gumes. Eu ainda estava paralisado, sem saber o que dizer, sem ouvir absolutamente nada a não ser minha trépida respiração - ou o que aparentava ser -. Cassie empurrou ambas as mãos contra o rosto, como se elas fossem capazes de esconder toda a vergonha que sentia. Agora as coisas faziam sentido. Agora eu entendia o motivo de tanta estranheza entre os dois, mas isso não melhorava nada. Não aliviava a dor.

— Você retribuiu? - perguntei, meu tom de naturalidade não fazia jus ao que sentia dentro do peito. Cassie curvou as sobrancelhas, como se eu tivesse feito uma pergunta absurda.

— Claro que não! - protestou com a voz trêmula - É você quem eu amo, Mill. Só estávamos conversando, quando de repente Alex se aproximou de mim e encostou nossos lábios. Ele pediu desculpas, mas não estava com cabeça para perdoá-lo!

Como Alex poderia ter feito isso? Nossa amizade não significava nada para ele? A raiva consumia cada fibra do meu corpo invisível, se eu pudesse, viveria a eternidade sem olhar para ele. Infelizmente, a eternidade é tempo demais até mesmo para alguém tão ambicioso quanto Jason. O nó que fazia presença em meu estômago foi se afrouxando à medida que eu processava tudo. Ergui-me da mesa, sem saber se poderia acreditar em Cassandra, e fui ao encontro do garoto alado. O choro dela preencheu o ambiente abafado.

. . .

A grama do jardim era tão pontiaguda que me fez abaixar umas quatro vezes para coçar os pés. Eu estava lá há alguns minutos e, honestamente, o tempo que fiquei aqui só piorou minha condição. Não estava com raiva só de Cassie. Estava, injustamente, furioso com todos. Com Alex Mubarak, por me trair; com Alma Peregrine por ter curado o garoto; com Millard Nullings, por ser paranoico nos piores momentos possíveis.

Meus pensamentos foram interrompidos pelo chacoalhar das asas mecânicas de Alex, que acabara de chegar do seu voo vespertino. Ele pousou abruptamente no chão, o que quase me fez cair para trás. Alex não expressava nenhuma emoção, mas era compreensível. Eu, se estivesse em seu lugar, também não o faria.

— Por que você fez aquilo?! - rugi, afastando-me da parte lúcida que me mantinha são. Cheghei tão perto do anjo que pude ouvir o barulho das engrenagens que moviam seu coração metálico. Nossa distância era de, no máximo, um palmo.

— Mill, me desculpa. - implorou, deslizando as asas nas costas, como se estivesse guardando-as - Eu não sei o que deu em mim, eu só-

— Vou dizer o que deu em você. - interrompi, esticando um dedo acusador para sua cara - Você pediu para ficar um tempo sozinho com a minha namorada. Então você beijou a minha namorada e acabou traindo a nossa amizade, seu medíocre!

— N-Não foi assim, é que-

— Que ridículo! - continuei, erguendo as mãos para o alto. Alex deve ter acompanhado o movimento pela sombra projetada na grama - Estava sentindo que você e Cassie escondiam coisas de mim, mas não sabia que era algo tão baixo!

— Millard, escuta! - sua voz, imediatamente, me calou. Pela primeira vez depois de minutos, Alex demonstrou algum sentimento. Em seu rosto havia uma mistura decadente de arrependimento, medo e raiva, que ele planejava expulsar em suas próximas palavras, suponho - Cassie não teve culpa de nada. Eu a beijei. E não pedi para que ficássemos a sós por isso. Acha que não me sinto idiota pelo que fiz? Que não me arrependi assim que Cassie saiu correndo pelas escadas?

— Quer mesmo ouvir uma resposta ou era para ser uma pergunta retórica? - provoquei, fazendo-o encolher mais ainda.

— Millard, por favor. Acredite em mim. A única pessoa que eu pude amar está morta. Cassie me lembrava muito da Khay. Sempre que eu a via, a imagem dela se formava na minha cabeça. - parou para tomar um ar -Quando vocês se beijaram lá em cima... aquilo rasgou o meu coração, porque tudo me fazia lembrar dela. Khay Morris foi a única pessoa que me amou de verdade, que não me tratou como uma aberração.

Fiquei sem ação, o nó do estômago voltando a me importunar. A culpa parecia ter se instalado no peito, e mesmo assim, a dor não fez questão de passar. A vida nunca foi fácil para nenhum de nós, por que eu teria que perdoá-lo só por pena? Deveria ouvir o meu coração e tentar visualizar as coisas pelo seu ponto de vista ou continuo vivendo com raiva de Alex e com a culpa que sempre iria me pinicar como um alfinete?

— Quer saber? Tanto faz. - sibilei, virando-me de costas e cortando a grama com os pés. A culpa começou a se aconchegar em uma parte do meu coração, aninhando-se como faria um gato perdido.

— Millard! - gritou. Olhei para trás por curiosidade. O tom eufórico de sua voz me fazia querer ouvir suas últimas palavras - Tem toda a razão de ficar com raiva de mim, mas não culpe Cassandra. Ela não fez nada, além de ser cúmplice dos meus próprios atos.

"Vou tentar ouvir seu conselho", desejei responder, mas o orgulho tapou minha boca e me obrigou a seguir até o orfanato, assim como Alex - apesar de ele ter entrado por uma das janelas da cozinha e eu, pela porta de entrada.

Ao entrar, fui abordado por uma eufórica srta. Peregrine, que me fuzilou com o olhar. Estava tão apressada, que parecia o coelho branco de Alice.

— Onde você e o sr. Mubarak estavam? - exclamou - Céus! Vocês não poderiam escapar em outra circunstância?

— O que houve? - pedi, sendo arrastado à força por seus finos braços até a cozinha, onde todos os peculiares se dispuseram numa linha reta. Uns penteavam os cabelos dos outros como se fôssemos receber o presidente dos Estados Unidos. Até Alex estava lá, cabisbaixo e sem saber para onde olhar.

— Horace teve outro sonho profético ontem à noite. - explicou com uma tosse seca - Os peculiares viriam hoje. Bem, ele estava certo.

Em seguida, nossa mentora apontou para a porta de entrada, revelando 5 figuras distorcidas, que só fizeram sentido para mim quando a luz se pôs em suas cabeças. Claro! Como pude esquecer. Horace teve uma visão sobre 5 refugiados, assim que cheguei. Fiquei meio cético no início, mas agora era tarde de duvidar das capacidades de Somnusson.

— Olá. - sussurrou o garoto mais alto do grupo - Sou Caleb Wander e viemos de outra fenda, infelizmente destruída. Essa é minha irmã, Marie.

Todos acompanharam o que ele dizia, Olive estava quase flutuando dos seus sapatos de tanta felicidade. Teria novos "amiguinhos", como afirmara. Semana passada, recebemos mais alguns membros para a família, o que incluia Claire, uma garota que possuia uma boca na nuca. Ela e Olive se deram muito bem.

— Sou Richard Brown. É um prazer conhecê-los. - o garoto do meio fez uma exagerada mesura e se recompôs imediatamente - Essa é Jasmine Truman. Ela não fala muito. - a menina forçou um aceno e se encolheu para perto de um garoto loiro de olhos profundos e rodeados por protuberantes olheiras. Ele pigarreou e começou a falar.

— Sou Enoch O'Connor. - revelou, com um forte sotaque inglês - Nós estamos... uhm... ér...

— Desculpem pelo Enoch - "Marie" o interrompeu, disfarçando um sorriso bobo - Ele não é muito bom com agradecimentos. Estamos agradecidos pela hospitalidade e por nos manterem aqui.

— Será uma honra receber a todos. - srta. Peregrine garantiu, afastando para seu lado esquerdo e deixando que todos seus pequenos pudessem ser vistos - Antes de tudo, quero que conheçam seus novos irmãos.

E então a interminável lista de nomes e peculiaridades foi sendo ditada por Alma, que só permitiu que comêssemos algo após todas as apresentações. Depois disso, fiquei conversando com Richard, ele parecia um cara legal. De vez em quando eu pensava em Cassie e de como ela deveria estar se sentindo culpada por algo que ela não fez. Sua confiança em mim teria se tornado algo tão forte ao ponto de ela ter ficado paranoica, assim como eu. Não parecia certo deixá-la sozinha, por isso decidi que iria falar com ela no mesmo instante.

Ao subir o lance de escadas, dirigi-me ao corredor que me levaria à Cassandra, passando, antes, no quarto da srta. Peregrine. Eu continuaria normalmente meu percurso se não fosse por um pedaço amassado e curioso de papel que estava no chão. Era a imagem de um homem robusto e de aparência austera. Ele tragava um cigarro e olhava para uma provável e vazia imensidão - o que não pude comprovar, exatamente. Havia um apertado "Olá, minha querida" escrito delicadamente num pedaço da fotografia, o que me fez pensar se era mesmo para srta. P. (comprovei minhas suspeitas ao espiar o verso do papel e ter visto o nome do destinatário. Era mesmo dela!)

O fato de a imagem estar um pouco chamuscada fazia parecer com que a nossa mentora estivesse tentando se livrar dela, assim como fazia com as flores negras que recebia

O fato de a imagem estar um pouco chamuscada fazia parecer com que a nossa mentora estivesse tentando se livrar dela, assim como fazia com as flores negras que recebia. De repente, uma ideia maluca veio à minha cabeça. E se este homem da imagem fosse "Morte"?


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