Você é meu mundo escrita por Blue Butterfly


Capítulo 4
Um mundo que nos fez sangrar


Notas iniciais do capítulo

E a desgraça começa em 5, 4, 3, 2...



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—Que mundo é este?

—Essa luz? É um lugar bem especial. Na verdade este mundo estava em uma grande guerra que envolveu quase todos os lugares que existem nele, muitos jovens foram convocados para defender sua pátria.

—Parece um lugar perfeito para o Kurogane.

—Você não deveria fazer suposições tão rapidamente.

—Como assim? Ele é um guerreiro, proteger e lutar faz parte de quem ele é, um mundo em guerra é tudo o que ele pode almejar.

—Um mundo sem seres sobrenaturais te atacando é tudo o que você pode almejar, Wa-ta-nu-ki?

—Não faça perguntas ridículas, é claro que sim!

—Mesmo que para isso tudo seja invertido?

—Como assim?

—Digamos que você se livra dessas criaturas, mas para isso alguém que os repele naturalmente no nosso mundo, como o Doumeki-kun, por exemplo, vai ser perseguido. Esse é um bom mundo?

—Bom? É perfeito! Queria ver aquele idiota sobreviver se tivesse que ficar no meu lugar por apenas um dia.

—Você tem certeza?

—Por que eu não teria?

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Um quarto simples, uma cama, uma escrivaninha velha, um guarda-roupas meio vazio. A roupa de cama era pobre, mas pelo menos estava limpa, os únicos livros presentes eram os da escola e um pequeno caderno de poesias, guardado com todo cuidado numa bolsa de couro. Em cima da escrivaninha repousava restos do que um dia tinha sido uma coroa de flores. Quando ele entrou, a porta rangeu denunciando sua idade e a madeira de má qualidade, porém, pela primeira vez ele não olhou com desgosto para ela. Aquele era um dia especial, ele estava nervoso só por sonhar com o que aconteceria mais tarde. Quase sem querer seu olhar repousou sobre o que sobrara da coroa de flores, as lembranças inundando seu coração.

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“-Kuro-pi!

O pequeno e magrelo loiro pulou nas costas do moreno, rindo descontroladamente enquanto passava seus braços predatoriamente ao redor do outro.

—Sai – o maior deles mandou, franzindo a testa com raiva.

Num gesto carinhoso, o loiro cutucou a bochecha do outro, seus lábios tocando de leve o ombro forte e musculoso escondido pela camisa preta. Com graciosidade ele voltou para o chão, sua mão alcançando a do outro e a segurando firmemente.

—Bom dia, Kuro-pi – saudou com um sorriso brilhante.

—É Kurogane, idiota!

Entretanto, ele não soltou a mão do outro nem por um segundo, se possível segurou ainda mais forte a pequena mão pálida, a sombra de um sorriso brincando em seus lábios rachados.

—Como foi?

O loiro entendeu a pergunta, mesmo que ela viesse de forma tão crua e incompleta. Naquele dia eles não tinham ido juntos para a escola, como sempre faziam, o pequeno estava envolvido na criação de um grupo de protesto e a atividade ocupava suas noites e, a partir daquele dia, também suas manhãs.

No início, Kurogane teve vontade de espancar o garoto e assim tentar colocar um pouco de juízo naquela cabeça de vento. Eram tempos difíceis, criar confusão não era inteligente, já havia bagunça demais no mundo para o loiro querer criar mais.

Só que o outro explicou que não era confusão que ele buscava, pelo contrário, o seu grupo protestaria contra a guerra que tomava o mundo todo, e não apenas contra uma nação, ele também não usaria violência, tampouco infligiria qualquer lei. O que seu movimento pregava era um mundo baseado na paz e no amor, onde todos seriam aceitos e teriam seu lugar ao sol, independente de sua origem, de seus status, de sua crença e de sua opção sexual.

—Aprendeu algo novo hoje? Ou ainda estão fazendo coroa de flores? – Kurogane provocou, se divertindo com o delicado beicinho que o loiro fez.

—Hoje começamos nossos cartazes. Eles vão ser todos bonitos e coloridos. E eu finalmente consegui terminar uma coroa de flores sozinho – revelou com orgulho.

O moreno revirou os olhos, fazia duas semanas que o loiro estava lutando com espinhos e ramos para fazer a tal coroa.

—É tão importante?

—Claro que é, eu tenho que fazer uma coroa bonita para presentear Kuro-pi com algo tão bonito quanto ele.”

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—Kurogane?

O homem ignorou a menina pálida ao seu lado, ele não tinha ideia de como ela tinha entrado em seu quarto sem ele perceber. Uma mão pequena e feminina tocou seu ombro num gesto que poderia ser de conforto e cuidado, ele se encolheu, dando alguns passos para longe dela.

—Por que veio? – ele perguntou com mau-humor.

—Fiquei sabendo que Fay volta hoje.

O nome fez o homem se encolher ainda mais. Um suspiro escapou de seus lábios cerrados e ele estremeceu. Fay…

—Se você quiser, pode levá-lo para minha casa. Está tudo pronto para recebê-lo.

—Não!

A menina recuou, tremendo com o tom violento do seu primo, ela estava lá para ajudar, era tão difícil entender que ela também se importava com o loiro?

—Algum dia você vai me perdoar? – Tomoyo perguntou, a voz falhando enquanto ela lutava para manter as lágrimas para dentro.

—Eu não sei – Kurogane confessou com sinceridade, sem se importar se suas palavras machucavam ou não a menina.

—Eu não sabia. Eu achei que estava protegendo você!

—Eu sei – Kurogane revidou sem olhar para ela – Mas isso fez com que ele fosse mandado para o inferno em meu lugar. Como posso te perdoar?

Silêncio recaiu sobre eles, uma parte dentro do homem o lembrava que Tomoyo não tinha culpa, ela não tinha ideia que ao salvar seu amado primo ela estaria condenando Fay, só que foi o que aconteceu.

—Eu ainda ofereço ajuda. Se você… Se ele precisar, por favor, me procure.

E quando ela saiu derramando suas lágrimas pelo chão, novas lembranças surgiram.

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“-Kurogane.

O moreno congelou. Nada bom vinha quando o loiro dizia seu nome por completo, mesmo que eles brigassem por causa dos estranhos apelidos que o menor vivia lhe dando, Kurogane sempre os preferiu ao seu nome correto; mais do que uma demonstração de carinho, os apelidos eram uma garantia de que tudo estava bem.

—O que aconteceu?

Ele perguntou antes mesmo de se voltar para o loiro, os punhos fechados com força, pronto para defender com a vida seu pequeno sol particular. O que ele viu o congelou no lugar, Fay estava a beira de um ataque de pânico, o moreno já tinha visto isso antes, quando Yui, o irmão gêmeo do loiro morreu, Fay foi atormentado por horrores noturnos por um bom tempo, eram pesadelos que dificilmente se quebravam, o loiro gritava e se debatia e nem com os maiores esforços Kurogane conseguia acordá-lo. Quando finalmente acordava, sua aparência era terrível. Como a de agora.

—Fay!

Ele correu para o loiro, o abraçando com força, uma mão repousando protetoramente nos cabelos dourados enquanto a outra apertava o pequeno contra si. O loiro engasgou e começou a chorar em silêncio, o corpo tremendo em espasmos violentos.

—O que aconteceu? – repetiu cada vez mais nervoso – Você está machucado? Alguém fez alguma coisa? Você…

—Eu fui chamado.

As palavras caíram inapropriadamente entre os dois, a mente do maior ficou completamente em branco, ele sabia o que aquelas palavras significavam, mas não queria aceitar. Não podia estar acontecendo, não com Fay.

—Eu não entendo – Kurogane sussurrou com medo.

—Eu vou para a guerra. Eles me chamaram essa manhã…

—Não!

O grito fez com que eles se separassem, mas as mãos de Kurogane permaneceram tocando Fay.

—Eles tinham a lista pronta ontem. Eles não chamariam mais ninguém da nossa cidade.

—Alguém foi retirado da lista na última hora, uma pessoa importante mexeu alguns pauzinhos e conseguiu salvar seu familiar, então na lista de ontem faltava uma pessoa. Eu fui chamado para tomar o lugar dessa pessoa.

Kurogane enrijeceu. Ele olhou os incríveis olhos azuis a sua frente, vendo todo o medo e desespero dentro deles, a situação era surreal, era como se o destino risse da cara de Kurogane, zombando de suas tentativas de manter Fay vivo. Tinha sido tão difícil convencê-lo a continuar respirando depois que o irmão morreu, e agora essa guerra imunda queria arrastar sua pessoa mais importante para o inferno.

—Fay – ele começou tentando achar uma solução.

—Só me abrace – o loiro pediu – Eu tenho que partir amanhã, então, por favor, me deixe ficar com você hoje. Eu preciso…

Kurogane nunca soube o que ele precisava, as lágrimas não permitiram.”

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Fay era uma ótima escolha para o exército, sem família, ágil, inteligente, com uma expressão angelical e um ânimo bom. Era uma escolha óbvia, mesmo assim os dois homens acharam que o loiro estava protegido, envolvido até o pescoço com seu movimento Paz e Amor – ou pé de galinha na bola, como afetuosamente Kurogane tinha nomeado – qualquer um saberia que o menino nunca atiraria numa mosca. Fay era mais do que uma pessoa boa com um bom coração, ele era uma pessoa boa e pura que tinha um coração bom e puro. A guerra era uma coisa imunda, pervertia os homens, quebrava seus corações e suas crenças, destruía seus valores e os moldava da pior forma. Para sobreviver era preciso matar, para vencer era necessário marchar sobre o sangue inimigo, para voltar para casa era exigido impedir que muitos outros não voltassem.

Kurogane sentia um misto de arrependimento e desespero quando se lembrava das últimas palavras que dissera para o loiro antes dele partir.

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“-Eu não ligo como vai fazer, mas volte. Vivo. Eu não ligo se vai ter que usar uma arma, se vai ter que mentir, se vai ter que abrir os portais do inferno. Volte para mim.

—Kurogane, eu não…

—Por favor, Fay. Eu nunca te pedi nada. Volte para mim.”

Ele não sabia se era certo o que tinha pedido, não porque seu código de moralidade fosse deturpado ou inexistente, e sim porque quando se tratava de quem ele amava, quando se tratava de Fay, todas as regras iam para o espaço. Quando dissera aquilo ele não tinha pensado no que a guerra faria com Fay, sua preocupação era em ter o menino de volta, a qualquer custo. Só recentemente é que ele percebeu que o preço a ser pago podia ser caro demais.

Fay era lindo, um anjo do céu que veio iluminar os caminhos sombrios de Kurogane, mas não era seu rosto bonito que tinha cativado o moreno, era sua alma branca e pura, sua bondade, suas brincadeiras irritantes e inocentes, seu cuidado com os que estavam ao redor, a maneira simples com que ele lidava com o moreno, sabendo a hora certa de se aproximar e de se afastar, o cuidado que ele tinha com as pequenas coisas, sempre fazendo de tudo para ter Kurogane confortável e feliz. Era o interior que o moreno não podia perder de jeito nenhum para a guerra.

Só que tudo indicava que ele já tinha perdido.

Os primeiro indícios estavam nas cartas, elas começaram a vir com menos frequência, o texto estava mais seco e direto, sem brincadeiras ou histórias sobre o acampamento militar. Ele percebeu que algo estava errado, mas preferiu ignorar, encarar que a pessoa que ele amava estava definhando em algum lugar da Europa, longe demais para que pudesse fazer alguma coisa era enlouquecedor. Entretanto, quando as cartas chegaram com apenas a saudação “Kurogane” o moreno entendeu que não podia mais fingir. Fay estava quebrado e ele não podia fazer nada a respeito.

Quando ele soube que o nome tirado da lista no último momento tinha sido o seu…

A porta rangendo quebrou seus pensamentos. Ele se permitiu sentir medo pela última vez antes de ir para a pequena sala que ligava o apartamento minúsculo com o resto do mundo. Parado na porta, segurando uma mochila que deveria pesar mais que o próprio homem, um loiro encarava o chão.

—Fay?

Kurogane não atravessou a sala como mandava seu coração, a pessoa na sala era tudo, menos familiar, o corpo era magro demais, cheio de ferimentos, um braço estava parcialmente enfaixado e todo o peso era sustentado em uma única perna, a outra visivelmente quebrada, os cabelos curtos mal saiam do couro cabeludo, sua tonalidade era um opaco e sem graça amarelo encardido. Aliás, todo o homem estava encardido, sua pele era um amarelo acinzentado coberto por hematomas escuros, seus músculos pareciam duros e tensos e do pouco que conseguia ver, sua expressão era terrível.

—Fay? – ele tornou a perguntar.

—Você deixa sua porta aberta? Você é um grande idiota!

As palavras assombraram Kurogane, a voz não era a de Fay, era dura, lotada de ódio, sem a cadência elegante e gentil que murmurava cantigas antigas, tarde da noite, quando Kurogane tinha insônia.

—Eu não sabia quando você vinha uma vez que você não disse. Além do que, não é como se alguém fosse roubar quando eu estou aqui.

Um sorriso estranho surgiu no rosto do loiro, ele encarou Kurogane, ódio brilhando em seus olhos azuis.

—Você ainda acha que pode proteger a tudo e a todos? Você é patético.

Eram palavras duras, o moreno não estava preparado para aquilo, mesmo quando estava muito bravo, Fay nunca tinha sido cruel com suas palavras, o loiro era um amante da poesia e das palavras bonitas.

—Eu sei que não posso. Eu só queria proteger você e não pude, acha que eu realmente ligo em proteger essa casa depois disso?

Eles ficaram quietos, Fay não fazia questão nenhuma de entrar no lugar apertado, no campo de batalha ele descobrira todas as suas fraquezas, claustrofobia certamente tinha sido uma delas – ou talvez ele a tinha adquirido quando sua tropa fora capturada e torturada por quinze dias seguidos.

—Entre – Kurogane mandou – E feche a porta.

—Pensei que você não ligasse para sua casa – o outro provocou, o sorriso morto em seu rosto.

—Enquanto era minha casa, eu nunca liguei. Mas agora que é a nossa casa, eu ligo.

—Sério? Você realmente quer um momento doce e romântico? Acha que isso é o que? Um reencontro? Quer que eu corra para os seus braços e diga que senti sua falta? Ou que te dê um apelido estúpido e assim você vai achar que os últimos anos nunca aconteceram? – a cada pergunta a voz ia ficando mais fria e o olhar mais duro.

—Não. Eu quero que você entre e tome um banho enquanto eu esquento nosso jantar. Só isso.

A resposta surpreendeu um pouco o loiro, mas foi breve. Sem mudar de expressão, ele cruzou a porta e invadiu o pequeno espaço, sua respiração pesando um pouco com a sensação das paredes se fechando ao seu redor. A mudança chamou a atenção do moreno.

—Fay?

—Onde é o banheiro? – exigiu ignorando a pergunta não dita, mas que ele ainda conseguia entender.

—Porta da esquerda. Use quanta água quente precisar, eu já tomei banho mais cedo. Tem uma toalha limpa e um sabonete novo. Se quiser, tem uma muda de roupa minha lá também.

O loiro não respondeu, apenas jogou a bolsa no chão de qualquer jeito, tomando a direção que o outro lhe apontava. Um banho era bem vindo, sempre seria, mesmo se significasse ficar confinado num espaço pequeno. Sozinho. Com as paredes cada vez mais próximas.

—Pode deixar a porta aberta se te faz sentir melhor, eu não vou me intrometer no seu banho – Kurogane prometeu.

A guerra podia ter mudado tudo, mas Kurogane ainda era Kurogane e aquele ainda era Fay, se um entendia as meias perguntas do outro, o outro entendia aquilo que o um estava tentando esconder. Quando os ombros do loiro relaxaram levemente e seu sorriso sumiu, deixando sua expressão mais leve, Kurogane soltou o ar que estava prendendo. Ainda era cedo para afirmar qualquer coisa, mas talvez houvesse esperança.

Fay nunca mais sorriu do jeito antigo, seu sorriso se tornou amargo e só surgia quando ele estava irritado ou em modo de defesa. Quando ele estava calmo ou satisfeito, sua expressão seria vazia e quase pacífica. A claustrofobia foi um problema no começo, assim como o medo de ser tocado e o terror noturno que voltou com força total. Kurogane esperava pelos sonhos, pensando em quantas vezes eles apareceriam em uma semana. Bastou duas noites para ele entender que deveria contar quantas vezes eles surgiriam em uma única noite.

O loiro dificilmente iniciava uma conversa, preferindo longos momentos de silêncio, mesmo que isso significasse ignorar Kurogane. Ele tinha antipatia pelos vizinhos e detestava qualquer animal que aparecesse em seu caminho, ele se recusava a falar do período que passou longe, mas em certas noites choraria sem parar a morte de sua tropa.

Alguns dias eram mais difíceis que os outros, às vezes Kurogane sentia vontade de chutar para fora aquele homem de temperamento terrível que dividia seu espaço, porém não seu coração. Às vezes ele queria lhe abraçar e garantir que agora o loiro estava protegido.

A derrota estava perseguindo Kurogane, ele não sabia mais o que fazer, toda vez que achava que estava fazendo algum progresso, Fay se afastaria sem motivo como um pequeno animal ferido que atacava qualquer um que se aproximasse, mesmo se fosse um veterinário. Numa noite particularmente difícil, quando o loiro saiu batendo as portas e mandando o mundo para o inferno, Kurogane chegou ao seu limite. Ele não tinha mais cartas na manga, nenhum truque, nenhuma ideia, o homem que estava com ele não era o garoto que ele tinha amado, com quem ele montara planos para o futuro e visitara aquele apartamento minúsculo imaginando o lugar como o primeiro lar deles. Não era Fay, o seu Fay amado e querido, era apenas um estranho.

—Por favor, Fay D. Fluorita reside aqui?

Kurogane encarou o rapaz a sua frente, era um menino bem novo, não devia ter mais de vinte e cinco anos, mesmo que seus cabelos acinzentados não fosse exatamente jovem. Entretanto, desatualizado com as tendências jovens daqueles dias, o moreno imaginou que o garoto deveria parecer ok para sua geração. Ele estava bem vestido, usava um enorme cachecol colorido e óculos grandes demais para seu rosto pequeno.

—Quem é você? – perguntou curioso.

—Desculpe, deveria ter me apresentado – e um leve rubor tomou o rosto do menino – Creio que Fay também não me conheça, mas eu recebi uma carta dizendo que eu deveria procurá-lo e…

—Yuki?

Quando a voz do loiro atravessou a sala, o recém chegado estremeceu, sua expressão tranquila se perdendo um pouco em dor. Kurogane se afastou da porta sem entender o que estava acontecendo, ele não se lembrava daquele garoto de jeito nenhum, onde Fay o havia conhecido? Se bem que o garoto tinha dito… Porém Fay não acabara de dizer seu nome?

—Fay? – o menino gaguejou, a dor cada vez mais evidente em seu rosto.

—Inferno, eu achei que você nunca viria – Fay murmurou se aproximando do menino.

E então, para completo choque do loiro e do moreno, o garoto se jogou em cima de Fay, o abraçando apertado, algumas lágrimas fugindo de seu rosto. O choque do moreno aumentou ainda mais quando viu Fay afagar os cabelos acinzentados, confortando.

—Desculpe, eu não tive coragem de vir antes – o tal Yuki gaguejou – Eu tinha que cuidar de Sakura, ela tem o Shoran, mas eles são tão novos.

—Tudo bem, o importante é que você está aqui. Eu tenho te esperado há um bom tempo.

Era demais. Nos últimos seis meses Kurogane tinha feito tudo que podia para conseguir alguma reação de Fay que não fosse ódio puro e agora um completo estranho invadia sua casa e abraçava seu loiro!

—Que merda está acontecendo aqui, Fay? – o moreno exigiu com violência.

Os dois se separaram, medo invadindo os olhos do garoto, Fay se pôs entre ele e Kurogane, assumindo uma posição defensiva.

—Seria melhor se você nos deixasse conversar – sugeriu ao moreno.

—Vá a merda, essa é minha casa também. De onde você conhece esse cara?

—Eu não o conheço – Fay revidou com raiva.

—Vá mentir para o túmulo do seu irmão.

Toda raiva que cobria a expressão de Fay caiu. Seu semblante ficou vazio e o moreno entendeu que tinha finalmente terminado o trabalho de quebrar o menor. Ótimo, o que a guerra não tinha feito, Kurogane Suwa realizou. Antes que um pedido de desculpas chegasse a sua mente, o loiro foi embora batendo todas as portas pelo caminho, sem olhar para trás uma única vez. Vendo o que tinha feito, Kurogane caiu no chão pesadamente, escondendo o rosto entre as mãos, ele se sentia tão cansado.

—Senhor – o garoto chamou tremendo de medo.

—Só… Vá embora.

Ele pareceu obedecer, chegou a abrir a porta, porém parou no meio do caminho.

—Nós nunca nos vimos antes de hoje. Ele estava na mesma tropa que… um amigo meu. Touya sempre falava dele nas cartas, ele estava feliz porque Fay sempre o animava e dizia que tudo ia ficar bem. Quando as coisas ficavam difíceis, Touya podia contar com Fay. Muitos enlouqueceram no campo de batalha, porém Fay se mantinha são porque ele precisava voltar para o seu Kuro-chi, assim como Touya fez o seu melhor para voltar para mim. No dia que a tropa foi tomada pelo exército inimigo, era ele que estava ao lado de Touya e que o motivou a resistir à tortura e à fome. Infelizmente quando o resgate chegou, Touya… – ele não conseguiu completar a frase – Fay me mandou uma carta sobre isso e pediu que, se ele conseguisse voltar, eu deveria encontrá-lo. Ele tem coisas do Touya para me devolver. Por isso eu vim.

Kurogane ergueu a cabeça. Ele não fazia ideia de que a tropa de Fay tinha sido sequestrada, muito menos que ele tinha sido torturado.

—Eu não sei tudo o que aconteceu no campo de batalha – Yuki continuou – E não sei como isso afetou os soldados. Por favor, ajude o Fay a achar seu Kuro-chi, ele era a razão para o Fay continuar lutando, Touya me disse uma vez que ele não tem família nem nada que possa chamar de seu, apenas Kuro-chi. Fay pode estar mudado, mas ele ainda está vivo, quer dizer, ele não tentou se matar nem nada, então ele ainda quer viver. Eu não sei nada sobre o Kuro-chi, só sei o que Touya significa… significou para mim. E a verdade é que ele era um ótimo motivo para permanecer vivo.

Aquelas palavras afundaram em Kurogane como nada mais poderia ter feito. Yuki estava certo. Fay estava vivo. Ele tinha voltado para Kurogane e isso era mais do que o suficiente para lutar.

—A mochila dele está no quarto, dentro do guarda-roupa. É nela que estão as coisas dele e do seu… amigo. Fique a vontade e leve o que quiser, acho que não há nada do Fay lá – era verdade, desde que chegara Fay não tinha aberto a bolsa, as roupas que ele usava eram todas de Kurogane – Feche a porta quando terminar – e ficou de pé, se preparando para sair.

—Espere, vai me deixar sozinho em sua casa?

—Não há nada que valha a pena aqui, a única coisa que tem algum valor acabou de sair por aquela porta e eu vou trazê-lo de volta.

E saiu.

Kurogane encontrou o loiro na pequena capela ao lado do cemitério onde seu irmão gêmeo estava enterrado. Ele sentou ao lado do loiro, respirando pesadamente.

—Desculpe – pediu baixinho.

—Eu não menti.

—Eu sei. Eu fiquei com ciúmes – confessou ainda baixinho.

—Ciúmes do que? Não é como se nós estivéssemos juntos.

Aquilo doeu. Era verdade, mas ainda assim doía.

—Eu não vou fingir que eu te entendo. Não vou fingir que eu sei o que você passou ou que eu posso ser compreensível sobre isso. Você nunca me diz as coisas e acho que mesmo se dissesse, eu não entenderia. Eu não fui para a guerra.

—Não, você não foi.

—Pode ficar com raiva de mim por eu ter ficado e você ter ido em meu lugar, só não esqueça que também doeu para mim. Todo santo dia eu rezava para que você sobrevivesse, esperando uma carta que me diria que ao menos nos últimos dois meses você ainda respirava. Todo santo dia eu rezei para essa guerra terminar e você voltar. Quando as correspondências pararam de chegar… Eu nunca tive tanto medo na minha vida, Fay. Então me odeie o quanto quiser por não ter ido para a guerra, mas…

—Você acha que eu te odeio?

Fay encarou Kurogane, os olhos azuis estavam vermelhos de tanto chorar, o rosto inchado e molhado.

—Eu acho – Kurogane respondeu num tom calmo.

—Imbecil. Eu sabia que era o seu nome que não estava na lista antes mesmo de ser chamado – Fay revelou – Eu sabia que estava tomando seu lugar, mas mesmo assim eu fui. Eu não queria ter que ir, mas iria se isso significasse você protegido. Eu nunca te culpei por você ter ficado.

—Por que você… Fay, se você tivesse me dito… – Kurogane protestou elevando a voz.

—Eu perdi tudo. Eu perdi meus pais, perdi meu irmão. Eu só tinha você. Eu não posso te perder, Kurogane. Não você.

As lágrimas voltaram a brotar nos olhos azuis.

—Eu estava com raiva de mim. Nós fizemos tantas promessas, eu jurei que você seria o primeiro e único a me tocar, que aquele apartamento seria nossa primeira casa… Eu fui violentado tantas vezes naquele inferno que eu perdi a conta. Eu tenho pavor de ser tocado, mesmo por você. Quando Yuki apareceu e se jogou em cima de mim, eu queria empurrá-lo o mais longe possível, mas não podia. Ele estava sofrendo, ele perdeu a sua pessoa mais importante…

—Fay – Kurogane interrompeu, horrorizado com o que ouvia.

—Eu odeio aquele apartamento, ele é tão pequeno, eu acho que vou sufocar lá dentro, eu sinto as paredes se fechando ao meu redor. Eu não consigo dormir mais do que meia hora sem ter pesadelo. Eu estou quebrado, Kurogane, eu não posso cumprir nenhuma das promessas que te fiz. E eu me odeio por isso.

—Fay…

—Kuro… Kuro-chi…

Lágrimas lavavam o rosto dos dois, com cuidado e lentidão Kurogane estendeu a mão, Fay a encarou por alguns segundos, engolindo em seco antes de segurá-la com sua mão branca e magra. Com convicção, Kurogane jurou:

—Eu não prometo que será fácil, eu não prometo te consertar, mas eu vou estar com você. Não importa o que precise fazer, você atravessou o inferno para voltar para mim, se for preciso eu o atravesso também para ficar ao seu lado. Nós vamos nos mudar para algo maior e vamos viver um dia por vez, ok?

Fay assentiu, não confiando em sua voz.

Kurogane apertou com força a mão magra, não era tolo a ponto de imaginar que seria fácil, mas eles sobreviveriam.

—Obrigado por ter voltado para mim – Kurogane finalmente disse o que estava entalado em sua garganta há seis meses.

—Você é meu mundo – Fay gaguejou – O que adiantaria ir para uma guerra defendendo um país e no final perder o mundo?

Kurogane não respondeu. Não precisava, Fay lia em seu silêncio o que ele não tinha dito. Sempre tinha sido assim.

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—Watanuki?

—Eu quero ir embora.

—Nem todas as histórias são bonitas, Wa-ta…

—Touya morreu! Eu não posso aceitar…

—Não é você quem tem que aceitar isso. No seu mundo Touya Kinomoto ainda vive.

—Espera… Quer dizer que em um próximo mundo Fay ou Kurogane podem morrer?

—…

—Eu quero ir para casa.

—Não pode, agora que você começou você deve ir até o final.

—Eu não quero saber, não quero ver outro mundo, não quero mais morte, mais sangue.

—Se você parar de assistir agora, como vai se tornar mais sábio, Wa-ta-nu-ki?

—Não fale como se isso fosse um programa de televisão. Eu sinto a dor deles, de todos eles. Eu sinto a dor de Tomoyo ao receber o ódio de seu primo, eu sinto a raiva de Fay, eu sinto o cansaço de Kurogane. Eu sinto o desespero de Yukito!

—Sabedoria também é obtida com o sofrimento.

—Eu nem sei mais porque estamos aqui!

—Por que você precisa de respostas! Eu lhe fiz uma pergunta e…

—Não! Um mundo em que aquele idiota tivesse que tomar o meu lugar não é um bom mundo. Tomar o lugar de alguém só causa dor e sofrimento, eu aprendi isso com aquela aranha estúpida. Eu não quero que ele tome meu lugar. Eu… Eu só…

—Watanuki?

—Eu… Não consigo. Vamos voltar.

—Você precisa continuar vendo os mundos.

—…

—Watanuki…


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Notas finais do capítulo

Pra quem está acompanhando a história, "Você é meu mundo" não só é uma viagem, como também uma maneira que Yukko descobriu para ensinar o Watanuki a ver o mundo como ele realmente é, e principalmente a se entender. Bem, espero que tenham gostado. Comentem ^^



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