－ Eu também não te odeio.

Um grande silêncio deu sequência à frase. Continuávamos a nos encarar, sustentando não um olhar de desprezo, como era o comum, mas uma expressão leve e calma. Ou pelo menos era essa a minha expectativa.

Pela cara dele, eu estava mais para um cachorrinho deitado no carpete da entrada, molhado após uma tempestade. Era pena, mas com algo mais. Um estranhamento, talvez? Acho que isso cabe mais. Troque “cachorrinho” por “alien” que você vai entender.

Enquanto estou tentando compreender o que se passa na cabeça dele, Hongbin dá uma inclinada de 15 graus para a esquerda na cabeça. Eu não consigo parar de pensar o quanto ele parece um cãozinho fazendo isso.

FOFO DO CARALHO!

Meu deus, como um ser-humano pode ser assim?

－ O quê? － Hongbin pergunta.

－ O que o quê?

－ O quê foi que você disse agora?

－ Eu disse algo agora?

－ É, disse. Era algo como “popo” e terminava com “io”.

Faço uma cara pensativa, enquanto olho para o seu rosto. Meus olhos acabam indo para seus lábios.

－ “popo”? － pergunto confusa, mais para mim que para ele.

Sinto meu rosto ficando mais quente quando reparo que o mal-entendido. Provavelmente, eu o elogiei alto e em português, usando palavras que podem ser facilmente compreendidas de maneira errada, levando em questão o momento em que estamos. Momento em que estamos tão perto um do outro.

Com o meu murmuro confuso, sua cara vai de serena e divertida a séria e intensa. Ele me encara tipo cobra prestes a dar um bote, o que me faz ensaiar dar um passo para trás, que não consigo dar, pois já estou grudada no vidro atrás.

Começo a sentir uma certa claustrofobia, e recolho o meu olhar, abaixando os olhos. Daí que eu vejo que seu pé está coberto por algo. Não é possível ver com exatidão em meio a escuridão que reside no ambiente, mas, vendo meu estranhamento, ele passa o dedo no líquido viscoso e o traz para perto. Minhas pernas fraquejam.

－ SAN-SANGUE?! - pergunto enquanto deslizo as costas pelo vidro e acabo sentada.

Meus olhos continuam vidrados em seu pé e minha cabeça começa a girar. Vejo os cacos no chão não muito longe e uma pequena trilha os ligam a nós.

Uma trilha de sangue.

Putaquepariu.

Começo a respirar forte. Não sei se é real iu só ilusão, mas começo a sentir um forte cheiro ferroso e minha visão vai ficando turva.

Algo cobre meus olhos. Demoro um pouco para reparar que são as mãos de Hongbin.

－ Calma, ok? Não entra em pânico. PELO AMOR DE DEUS, NÃO ENTRA EM PÂNICO!!!

－ EU NÃO ESTOU EM PÂNICO!!!

Ele tira a mão que cobre a minha visão, mas eu fecho os olhos e tento respirar. Não preciso nem dizer que não está resolvendo de muita coisa.

－ TÁ AMARRADO EM NOME DE JESUS!!!

－ DÁ PRA FALAR MINHA LÍNGUA?!!!

Abro os olhos e vejo um Hongbin seminu, com a camisa amarrada no pé, enquanto limpa o chão com o tapete afobadamente. Respirar mais tranquilamente.

Faço um movimento para me levantar, mas acabo olhando para o meu tornozelo. Acabo olhando para o grande rastro de sangue no meu tornozelo. Fecho meus olhos rapidamente, mas isso não impede que meu tão precioso rámen saia de mim.

Não preciso nem olhar para saber que Hongbin está me olhando nesse momento.

－

－ E COMO VOCÊ ESPERA SE SECAR? ABRE ESSA PORTA LOGO!

－ TÁ, JÁ DEU. ENTENDI JÁ.

Convenhamos, eu tenho meus motivos para não abrir a porta do banheiro para alguém, ao menos não enquanto estou pelada dentro dele. Apesar disso, não posso negar a necessidade de uma toalha. Abro a porta e já a sinto sendo aberta sob as minhas mãos.

－ CÊ TÁ DOIDO?!!! ESPERA EU FALAR QUE VOCÊ PODE ABRIR!!!

－ OK, OK. DÁ PARAR DE FALAR COMO SE EU QUISESSE TE VER PELADA? ISSO, COM CERTEZA, NÃO ESTÁ NA MINHA LISTA DE PRIORIDADES!

Dou uma tropeçada com sua fala, enquanto entro na banheira e olho para um ponto fixo na direção oposta à porta, de forma que fico de costas para a porta.

－ PODE ENTRAR! － ouço-o entrando e deixando o que trouxe sobre a pedra enorme da pia. Continuo falando, mas com um tom mais baixo, já que não há mais uma porta entre nós － Parou para reparar que dizer que me ver pelada não está na sua lista de prioridades, não impede que ela esteja na sua lista de desejos?!

Ha, ha － ele dá uma risada sem graça － Trouxe roupa também. Espero que você recolha teu orgulho e opte por usá-las. Não fique rondando pela minha casa com roupas coberta por vômito. Ouviu?

－ U-hum.

Não ouço barulho da porta se fechando e dou uma olhada para trás, encontrando Hongbin me fitando.

－ Vai embora não? Que foi? Resolveu que estou, de fato, na sua lista de prioridades.

－ É que você meio que parece, tipo… sei lá, uma ninfa nesse ângulo. Sabe, com esse cabelo azul... com água em volta… É meio, sei lá… meio mágico.

－ Ah… tá. Pedofilia é crime aqui na Coréia?

－ Vai a merda!

Ouço a porta se fechando atrás de mim. Olho para o enorme espelho ao meu lado e vejo meu rosto, brilhando num vermelho vivo.

O que está acontecendo comigo?

Afasto o pensamento e todas as sensações que o acompanham, concentrando-me em esfregar uma bucha － em formato de cupcake － em meu corpo, ficando bem toda essa camada que está sobre meu corpo, que vai muito além de células mortas. Encosto as costas na borda da banheira, relaxando pela primeira vez no dia. Ou melhor, primeira vez em muito tempo.

Por algum motivo, em alguma parte de mim, bem nos subúrbios do meu ser, eu estou sentindo uma felicidade imensa, dessas que fazem com que você abra um sorriso sem nem ao menos perceber que o está fazendo. É o que noto quando me olho no espelho ao lado e me pego com os cantos dos lábios erguidos, formando um grande arco.

Percebi que fazia tempo que eu não sentia o quão bom é estar feliz. O quão bom é estar em paz.