Era segunda feira de novo. Mesmo tendo acordado sozinho numa casa silenciosa eu estava feliz. Minhas mães haviam ligado contando que estavam bem e que chegariam, ou no final do dia de hoje ou na terça pela manhã. Elas estavam bem e felizes e isso me deixava feliz também. Levantei cedo e fiz minha rotina de corrida na esteira porque não quis correr sozinho no parque. Depois do banho e de me trocar eu tomei um café da manhã com cereal, leite, frutas e uma torrada. Peguei então minhas chaves e fui para a escola.

James teria uma reunião com o time de futebol antes das aulas começarem. As regionais estavam para começar e eles tinham alguns acertos ainda a serem feitos, por isso se reuniriam antes e depois das aulas durante essa semana. Esperava estar sozinho até o almoço, mas fui surpreendido quando entrei no estacionamento dos fundos, que era sempre o mais vazio por ser o mais longe das salas. Jill estava lá, sentada de lado no banco de sua moto com a mochila no ombro esquerdo, na vaga ao lado de onde eu sempre estacionava.

Quando desci do carro ela se levantou do banco da moto e caminhou até chegar perto de mim. Não nos cumprimentamos, apenas olhamos um para o outro e começamos a caminhar lado a lado para dentro da escola. Passamos por corredores desertos por ainda ser bem cedo e estarmos do lado oposto ao que a maioria entrava. Antes de chegarmos no corredor do meu armário ela iniciou a conversa.

— Elas já chegaram? – ela me perguntou e eu soube imediatamente que estava falando das minhas mães.

— Ainda não – respondi tentando não rir do tom incerto e receoso dela ao me fazer a pergunta, como se estivesse envergonhada por estar me perguntando aquilo – Mas te garanto que assim que elas estiverem em casa eu chamo você para conhece-las.

— Desculpa, acho que estou mais ansiosa com isso do que deveria – ela falou ajustando a mochila no ombro e com a mão direita coçando a parte de trás da cabeça.

— Deveria estar pensando menos nisso e mais no nosso trabalho que temos que apresentar no ultimo horário – falei com um tom divertido que fez ela rir.

— Eu até tentaria se precisasse. Nosso trabalho ficou muito bom – respondeu dando de ombros – Minha ansiedade é muito mais importante.

Não respondi, mas estava agradecido pela forma com que ela estava levando a situação. Mesmo estando realmente ansiosa e isso era visível, ela ainda se maninha discreta ao falar comigo do assunto. Chegamos perto do meu armário e enquanto eu parava para deixar alguns livros que estavam na minha mochila ela continuou o caminho até seu próprio armário acenando pra mim.

— Nos vemos na sala – ela disse já se afastando, só tive tempo de acenar de volta antes dela virar o corredor.

O resto da manhã transcorreu normalmente. Tivemos as primeiras aulas juntos e saímos da última para o almoço conversando sobre algum assunto aleatório. Acabamos por almoçar juntos enquanto falávamos de UFC e das lutas de Erika além de toda a carreira dela em geral. Jill era realmente uma grande fã de Alex e Erika. Estávamos sentados numa das mesas do lado de fora, era um dia quente, mas tínhamos uma boa sombra sobre nós. Falávamos das lutas e shows que eu já tinha ido assistir ao vivo.

— Nunca cheguei nem perto de conseguir ir ver uma luta da Erika – ela falou encarando uma outra mesa mais distante de nós parecendo pensativa – Mas um dia quase consegui ir a um show da Horizons.

— Porque quase? – perguntei realmente curioso sobre o porque ela não conseguiu.

— Minha mãe e eu nos programamos para ir, juntamos dinheiro – ela começou, mas então sua expressão mudou drasticamente e ela encarou o granito da mesa entre nós – Foi quando minha mãe ainda...

Ela fez uma pausa mais longa, tão longa que achei que ela não terminaria de falar. Sua cabeça baixa e suas mãos juntas sobre a mesa; ficou claro que algo estava errado. Esperei alguns segundos ficando cada vez mais preocupado com a forma com que ela estava quieta e imóvel. Quando decidi chama-la Jill simplesmente levantou pegando sua jaqueta jeans que estava sobre um dos bancos ao seu lado.

— Acho que já vou indo pra sala. Preciso pegar alguns materiais ainda – ela disse começando a se afastar.

— Hey! Jill – eu a chamei me levantando também e conseguindo segurar um pedaço da jaqueta impedindo que ela se afastasse – O que houve? Você está bem?

— Foi a muito tempo Arthur – ela disse puxando a jaqueta e dando dois passos para trás e para longe de mim – Esquece isso. Nos vemos na aula de Literatura.

Ela se foi e eu fiquei preocupado. Nunca tinha visto Jill com aquela expressão antes. Era como se ela estivesse com raiva e com dor ao mesmo tempo, como se lembrar da mãe tivesse sido um pior que um soco. Aquilo me fez ter certeza de que algo havia acontecido com a mãe dela. Me dei conta de que nunca havia sequer perguntado sobre ela ou sua família em todo o tempo que conversamos.

Era compreensível já que fora o tempo que passamos fazendo trabalho juntos havíamos tido poucos momentos de conversas. Mas mesmo assim aquela reação dela fez com que eu me desse conta de que nunca havia visto ela com outras pessoas. Jill era a pessoa mais solitária que eu conhecia, talvez por ainda ser nova na escola, mas mesmo assim ela não parecia fazer esforço para ter amigos. Passei as aulas seguintes tentando entender o que poderia ter acontecido entre ela e a mãe para provocar aquela reação em Jill. Mas acho que eu não a conhecia bem o bastante ainda para concluir algo sobre seu comportamento.

Na aula de literatura nós mal conversamos. Fomos uns dos primeiros e, depois de nossa apresentação que foi elogiada e nos rendeu uma nota máxima, ela simplesmente me ignorou. Não que tenha sido difícil para ela não falar comigo já que naquele dia ela se sentou em uma das últimas cadeiras enquanto eu me mantive no meu lugar de costume nas primeiras filas. Apesar de estarmos longe eu ainda pude perceber o quanto ela estava distraída. Jill costumava não prestar atenção nas aulas, mas geralmente tinha uma expressão de tédio enquanto que hoje parecia distante e pensativa.

Quando o sinal soou pelos corredores e dentro das salas ela foi a primeira a se levantar e a sair da sala. Não tentei alcança-la, seja lá o que fossem os motivos dela eu só saberia se ela resolvesse me contar. Talvez ela apenas precisasse de espaço. Se a memória da mãe lhe incomodava tanto ela com toda certeza não iria querer conversar comigo, afinal não éramos amigos. Mesmo assim a questão martelava em minha cabeça. Queria entender porque ela estava fugindo de mim. Não era como se tivéssemos convivência suficiente para que eu fosse pressioná-la por respostas. Mas a questão era que ela estava fugindo e Jill não me parecia o tipo de pessoa que foge das coisas.

Não tive muito tempo para ficar pensando nisso. Quando cheguei ao estacionamento James estava encostado no meu carro me esperando, seu carro parado ao lado do meu na vaga que, mais cedo, estava sendo ocupada pela moto de Jill. Continuei meu caminho até passar ao lado dele para abrir a porta do motorista. Joguei minha mochila lá dentro e nos encaramos, ele estava com uma expressão bem séria.

— Então – James começou cruzando os braços sobre seu tórax e me encarando de forma séria e preocupada – Você e a novata almoçaram juntos hoje. Ela estava te exigindo algo Arthur?? Porque se estava nós podemos dar um jeito nisso logo antes que as coisas piorem.

Depois do que aconteceu no domingo ele tinha ficado muito reticente quanto a proximidade de Jill comigo. Eu o compreendia, estava tentando me proteger de pessoas que queria se aproveitar de quem eu era. Tínhamos uma experiência maior do que eu gostaria com isso. Ainda nos lembrávamos do desastre que havia sido deixar outra pessoa se aproximar de nós e nos conhecer de verdade. Da última vez, seis anos atrás, havia ocasionado minha saída da escola e, apenas no ano seguinte, eu e ele conseguimos voltar a estudar juntos. Aquele havia sido um péssimo ano sem meu melhor amigo.

— Na verdade não – contei a ele tentando acalmá-lo – Ela realmente quer conhecer as duas, mas ela parece ser apenas uma grande fã de verdade – falei fechando a porta do carro e me encostando contra a porta do passageiro do carro dele – Para te dizer a verdade ela está sendo muito discreta com todo o assunto, mais do que eu esperava. Apenas comemos e conversamos um pouco – falei dando de ombros e colocando minhas mãos nos bolsos da frente da calça.

Eu não falaria para ele sobre o acontecido no final da conversa. Era meu melhor amigo, mas senti que era um assunto muito delicado para Jill. Ela tinha problemas com a família, isso era certo. Talvez algo muito ruim tivesse acontecido com a mãe dela. Com certeza isso era pessoal demais para que eu dissesse para outra pessoa sem o consentimento dela.

— Ela realmente não está sendo uma idiota? – ele perguntou claramente na dúvida.

— Não James – respondi sorrindo calmamente para o jeito preocupado dele – A verdade é que ela está sendo uma pessoa legal – ele suspirou descruzando os braços e acreditando em mim.

— Certo – James descruzou os braços e colocou as mãos dentro dos bolsos de sua calça jeans se encostando na lateral do meu carro ao meu lado – Quando é que elas chegam? Estou com saudades da Tia Alex – disse ele sorrindo animado e parecendo esquecer o assunto Jill por enquanto.

Rimos um pouco comigo contando que elas apenas me garantiram que estariam em casa na terça, mas não disseram nenhum provável horário. Comentei que provavelmente ficaria sozinho até a noite de terça, isso se elas não chegassem de madrugada. Combinamos de fazer algo com elas e os pais dele também no fim de semana e depois nos despedimos. Apesar de me distrair com nossa conversa e nossos planos, assim que fiquei sozinho novamente a caminho de casa voltei a pensar em Jill e naquela reação que ela teve.

Eu sabia que havia algo por trás daquilo. Tinha certeza de que era algo ruim do passado dela. Queria tentar ajudar, mas não tinha ideia de como. Mesmo sabendo que não haveria nada que eu pudesse fazer agora, já que ela precisaria se abrir comigo primeiro, eu ainda ficava repassando tudo em minha mente tentando achar alguma solução. No fim eu poderia apenas esperar mesmo.