Vollfeit - Diellors e ihenes escrita por Kaonashi


Capítulo 13
Capítulo 13




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Capítulo 13

Recepção

 

Quando acordou comemorou mentalmente por ter tido uma boa noite de sono. Esfregou os olhos de modo leve antes de se levantar e dobrar o manto. Se não tivesse ganhado experiência com as outras missões, provavelmente teria ficado toda a madrugada acordada, reclamando do desconforto por dormir no chão e ao relento. Kyprios já estava acordado e o mensageiro apresentava bolsas escuras embaixo de seus olhos.  Neri ficou com pena, mas aquilo lhe arrancou um sorriso por se lembrar de suas primeiras missões, incapaz de descansar devido ao medo de ter qualquer imprevisto no meio delas.

Aalix foi acordada pouco depois pelo espião, lançando-lhe uma expressão dura ao abrir os olhos. Deram continuidade a viagem, finalmente saindo de Belldona e entrando numa cadeia de montanhas arredondadas. Seguiram pelo pé da pequena cordilheira, hora ou outra passando por amontoados de árvores e lagos de água escura.

— Neri… - o mensageiro encarava o caminho a frente de cima de seu cavalo. - Essa sensação é familiar. Essa, enquanto viajamos.

— Acha que já foi um andarilho? - sugeriu descontraída.

— Não, não isso. Não sei - seu rosto mudou para confusão por um momento. - Você passou a vida toda viajando? Sinto como se… Eu levasse jeito pra isso.

— Então essa é mais uma de suas habilidades ocultas?

— Acho que sim - sorriu.

A cavalgada se estendeu, entre algumas pausas, até a segunda noite da viagem. Pararam perto de um lago, um dos últimos antes de Melandra, para dormir e alimentar os cavalos. Passaram a madrugada igualmente ao dia anterior, sem trocarem palavras com Aalix além das necessárias - como “acorde” e “vamos parar por enquanto”. De manhã cedo, antes que o sol aparecesse, voltaram a atravessar a depressão até chegarem numa floresta menor e mais povoada por animais, ouvindo com maior frequência os grilos, sabiás e esquilos correndo de uma toca para a outra. Em duas horas finalmente avistaram as primeiras casas de Melandra, com telhados de tijolos avermelhados e janelas estreitas nos andares superiores. Nunca estivera lá antes, já que Vollfeit não via necessidade de espiar um aliado. As ruas de terra estavam agitadas para uma vila pequena, com homens carregando machados para o interior da floresta e mulheres começando a alimentar as galinhas em frente às suas moradias. Era uma cena inocente e amigável. O único sinal de magia que Neri vira fora quando uma criança mostrava a uma mulher sua capacidade de fazer ondas leves num balde de água em sua frente.

Passaram por aquela vila e chegaram no que parecia ser o coração do reino, um centro comercial maior que a área das casas, com diversas carroças já transportando tecidos, acessórios de roupa e objetos brilhantes. Algumas pessoas gritavam ordens para seus trabalhadores, mandando-os carregarem o próximo transporte ou buscarem os novos produtos. Aalix tomou a dianteira e os guiou até o castelo, que fora construído numa elevação acentuada do reino, quase alcançando uma parte da montanha que rodeava a o limite norte do reino. A trilha até lá fez várias curvas delicadas antes que terminasse em muros altos e pardos, escondendo os primeiros andares do castelo de mesma cor. Os telhados tinham tonalidade alaranjada, assemelhando-se aos tijolos da vila, e as janelas, que pareciam perfurar mais que o necessário as torres, usavam vidros grandes e opacos, aumentando a impressão de novo e moderno que a construção emanava.

A mensageira parou e desmontou em frente a uma área gramada plantada em formato oval, retirando as luvas grossas que usava e entrando no castelo. Neri ficou ao lado do mensageiro ao entrar, seguindo Kyprios de um salão alto e vazio - exceto pelas cortinas estampadas nas paredes e um grande quadro - até o início da escadaria principal, num segundo salão ainda maior e mais extenso. Os degraus eram feitos de mármore branco e possuíam um tapete laranja, quase vermelho, cobrindo-os em toda a extensão. O resto do chão também refletia nitidamente as coisas ao redor, como armaduras brilhantes em exibição em cada canto e um grande lustre, portando diversas velas apagadas.

Aalix subiu, levando-os, e passou por cinco portas, afastadas entre si, até chegar em uma entreaberta e guardada por uma dupla de soldados. De lá ouviram vozes um tanto perturbadas saindo.

— Mas se estão nos atacando, Vossa Majestade, deveríamos abrigar as pessoas e… - o falante parou ao ver Aalix entrando.

O trio de Vollfeit apareceu em seguida e um homem pequeno no fundo da sala, com um grupo de seis pessoas em sua frente, tomou a liderança da conversa. Todos usavam armaduras prateadas e capacetes laranjas, com pedras azuis como safiras, em toda a sua fachada.

— Ah, nossos esperados visitantes - seu olhar se perdeu entre os rostos do trio. Provavelmente estava decepcionado em ver três jovens no lugar de um esquadrão de soldados. - Bom trabalho, Aalix. Bem, sejam bem-vindos a Melandra. É um pena que tenham vindo nessa condição. Nossa mensageira irá mostrar o local e seus quartos, depois nossos soldados os levarão até os locais invadidos. Espero que tenham uma boa estadia.

Aalix o cumprimentou com uma reverência e saiu a passos largos e rápidos da sala. Seguiram-na junto com o grupo de soldados através de corredores tão longos quanto o que estavam. Diversas janelas os enfeitavam com espaços de dois metros e os suportes para tochas nessas áreas vazias tinham adornos prateados e pequenas pedras preciosas, vermelhas e amarelas, enquanto o teto era decorado com pinturas de cenas estranhas, mostrando batalhas entre pássaros gigantes e vilas povoadas por homens altos e loiros.

Aalix os levou até uma torre alta, onde indicou três portas seguidas no penúltimo andar. Neri entrou na do meio, onde descobriu um quarto grande, com uma sala separada do quarto e do banheiro. Tudo era de alta qualidade e bom gosto, com as cortinas combinando com as poltronas, tapetes e roupas de cama.

— Espero que estejam satisfeitos - a mensageira disparou indiferente quando o trio abandonou os quartos. - Irei levá-los até uma das vilas agora.

Cercados pelo esquadrão de soldados, chegaram até a segunda vila de Melandra, na direção noroeste. A área era tão pequena quanto a vila que cruzaram minutos atrás e apresentava construções alaranjadas parecidas. A diferença estava nas janelas quebradas, portas caídas e tijolos aos pedaços em grande parte do chão. Alguns moradores limpavam os cacos enquanto outros se esforçavam para arrumar os buracos em suas casas.

— Expliquem para eles os detalhes e depois podem levá-los de volta - Aalix gesticulou para os guardas, seus olhos frios e sem interesse. Parecia realmente feliz por ajudar os visitantes.

O grupo assentiu e a mulher se retirou apressadamente. Por um instante Neri achou ter visto alívio nos rostos masculinos, perguntando-se se Aalix era pior do que parecia.

— A primeira invasão foi há cinco dias - um guarda começou. - Os moradores contaram oito pessoas. Reviraram uma casa à noite, segurando a família que acordou até encontrarem algum dinheiro e roupas de mais valor. No dia seguinte atacaram de manhã e conseguiram levar mais dinheiro. Isso se repetiu por mais um dia, de noite e de tarde. No último dia tínhamos quase toda a vila machucada, até crianças foram maltratadas…

— Alguém desapareceu? - Kyprios questionou.

— Sim, duas crianças e um garoto de quinze anos… - disse pesaroso.

O espião apenas assentiu com a cabeça e começou a andar.

— Vamos analisar o local por um tempo, podemos achar alguma informação.

Neri o seguiu, mas após poucos passos percebeu que o mensageiro não os acompanhava. Virou o corpo e o viu encarar as casas ao redor com certo espanto. Estava ligeiramente mais pálido e com olhar distante.

— Você está bem? - perguntou ao alcançá-lo.

— Sim, estou… - sua voz se arrastou.

Observou-o por um tempo antes de o garoto parecer despertar de seus pensamentos e andar. Sentia medo e preocupação através de seus olhos, que fitaram o chão sem parar até chegarem a ponta sul da vila. Lá vários arbustos cresciam em meio a pés de mirtilo, limitando a floresta a seguir. As casas eram baixas, sem passar do primeiro andar, e mal acabadas.

— Iremos começar a busca daqui - Kyprios pronunciou e olhou para Neri. - Vamos nos separar para procurarmos mais rápido.

O rapaz voltou para as primeiras casas enquanto os guardas se dispersaram pela vila. O mensageiro continuou parado próximo a Neri, fitando os arbustos com certo temor.

— Se quiser descansar, pode ficar aqui - disse sem intenção aparente. - Estarei por perto.

O garoto apenas balançou a cabeça positivamente, e depois de forma negativa, antes de acompanhá-la até a casa mais próxima ao fim da vila. A porta fina de madeira estava despedaçada, espalhando farpas por toda a entrada. As janelas de barro quase não existiam mais e, ao entrarem, viram os móveis tão ralos quanto a porta estirados pela sala. Não havia ninguém ali, aliviando-a de qualquer interação social indesejada. O cômodo estava abafado, tanto pelo calor natural da estação quanto a cena que causava tristeza, e raiva, em Neri.

Entraram no único quarto da moradia e depois no banheiro, ambos pequenos; todos apresentavam a mesma bagunça causada pelos invasores. Neri vasculhou tudo e não achou nada de valor - tinham levado o que encontraram. Deu mais uma olhada no cenário geral, tentando construir mentalmente a luta que, a poucos dias, acontecera ali. Então guiou o mensageiro para mais três casas, chegando a mesma conclusão que conseguira na primeira.

Kyprios apareceu após finalizar suas observações na outra parte da vila.

— Parecem ter sido atacados apenas para saqueamento… - o espião disse.

— Por um grupo de seis a oito pessoas, acredito - concordou com a cabeça.

— Mas levaram crianças e mulheres… É melhor não falarmos nada sobre o que realmente achamos - e voltou até um dos guardas.

Neri foi logo atrás, imaginando o que o governo de Melandra faria se soubessem que seus novos inimigos provavelmente eram os antigos de Vollfeit. Talvez prendam a gente aqui e nos ofereçam como pedido de paz. Sorriu por dentro, sem deixar de emanar certo desdém, e andou em direção ao castelo outra vez, com o grupo de homens e Kyprios caminhando pensativos. Enquanto andava lançou um olhar de esguelha para o mensageiro, ao seu lado. Sua feição, que falhava em ocultar atordoamento, continuava daquele mesmo modo. O que estaria se passando na cabeça dele?

— Está cansado? - questionou, soando delicada. - Desculpe por te trazer, no fim…

— Não se desculpe por me tirar daquela prisão… - virou o rosto em direção ao chão de terra avermelhada. - É que tem coisas… Eu acho… Que estou lembrando de coisas.

— Coisas ruins?

O jovem concordou com a cabeça e franziu os cenhos.

— As casas destruídas, as cadeiras e almofadas no chão… Eu já vi isso antes. Com homens passando de um lado para o outro… Com espadas e lanças.

Neri de repente sentiu sua garganta secar. Agora conseguia, mesmo que não quisesse, imaginar vilas inteiras sendo saqueadas, castigadas e torturadas por uma intenção forte de vingança há séculos, sem possibilidade de suas vítimas fugirem ou lutarem além de aceitarem e se tornarem escravos de um reino renegado. Tudo causado pela criação de Vollfeit.

— Vamos voltar pro castelo, assim você poderá descansar e pensar melhor - deu um sorriso fraco, sentindo que ela também precisaria daquele tempo de reflexão. E um bom tempo longe de seu reino natal.

 

(...)

 

A cama era tão confortável que Neri não queria se levantar. Os raios fracos que entravam pela fresta da enorme cortina laranja deixavam o quarto ainda mais convidativo, dificultando o processo para despertar por completo. Espreguiçou-se e, após se levantar, foi até a janela, espiando pela brecha o jardim verde lá fora. Antes de voltar a cama, sentiu alguém no corredor parar ali perto. Segundos depois batiam em sua porta. Uma mulher de aparentes trinta anos entrou com uma grande bandeja em seus braços, repleta de potinhos de porcelana, pratos e um jarro em seu centro.

— Bom dia, senhorita - disse com um sorriso extenso em seu rosto, colocando a bandeja sobre a mesa de madeira sândalo. - Trouxe-lhe seu café da manhã. Gosta de queijo, mingau e salada de frutas? Foram todos preparados por nosso melhor cozinheiro.

— Parecem todos ótimos, obrigada - deu um sorriso fechado, um tanto atordoada pelo amontoado de palavras rápidas logo de manhã.

— Depois que terminar, estarei lá fora para guiá-la até a saída do castelo. Nossa Majestade disse que vocês irão para outra vila hoje.

Neri apenas assentiu e, vendo a empregada sair, foi até a mesa, roubando alguns morangos e pedaços de maçã de um tigelinha. Suspirou de alegria enquanto o sabor amargo, mas refrescante do morango, descia por sua língua - era sua fruta preferida, nem doce, nem azeda. Depois experimentou o resto da refeição, surpreendendo-se ao conferir a verdade nas palavras anteriores da criada. Ao terminar, pegou o tecido verde em sua mochila e tirou uma adaga de lâmina toda ondulada. Observou-a por um tempo, imaginando qual o pensamento de Adastrea ao escolhê-la para essa missão, antes de guardá-la num bolso interno de seu manto. Saiu e encontrou a mulher de antes, que a encarava com alegria, como se estivesse trabalhando por puro prazer.

— Seus companheiros já estão nos portões, levarei você até lá.

E seguindo-a, caminhou sem pressa até a entrada principal do território real. Passou por diversas bandeiras decorativas presas nas paredes e quadros enormes, algumas vezes encontrando moradores do castelo, que lhe lançavam olhares duros e nervosos - poderiam ser como a criada, pelo menos na parte dos sorrisos. Ignorando, chegou ao objetivo, encontrando Kyprios e o mensageiro, sonolento, ao lado do mesmo grupo de soldados do dia anterior. Cumprimentaram-na com um “bom dia” fraco e deram início a viagem, dessa vez na direção sudeste.

— Como você está?  aproximou-se sutilmente do mensageiro.

— Melhor. Apenas com a cabeça um pouco pesada - lançou um olhar estreito na espiã. - Ando lembrando de coisas e não sei se são reais ou sonhos…

Às vezes lembramos de coisas e desejamos que elas sejam sonhos, pensou convicta. Queria contar ao garoto quem ele era; queria ver sua reação e, talvez, mantê-lo por perto, no lado de Vollfeit - pelo bem de seus cidadãos apenas. Queria acabar com a tristeza e desespero dele em descobrir seu passado, com a agonia dele por se sentir como o único grão de feijão deixado no prato. No entanto, a verdade poderia só piorar tudo. Ele teria que alcançá-la com o tempo.

Liderados pelos guardas foram para a segunda vila de Melandra, também atacada. Alguns moradores os encararam com olhos cerrados e duros; Neri não sabia dizer se estavam assustados pelos ataques ou decepcionados com suas esperanças depositadas num trio de jovens. O cenário, no geral, era parecido com o dia anterior, fazendo Kyprios afirmar sua ideia. 

— Acho que estão provocando Vollfeit - sussurrou ao entrarem na última casa, tão torta e bagunçada pelos móveis quebrados quanto as outras. - Eles não tinham quase nada para levar daqui.

— Se fosse esse o objetivo, teriam atacado o castelo - Neri concordou e deu uma pausa. - Kyprios… O mensageiro está se lembrando de algo.

— Sim… - desviou o olhar para um buraco pequeno na parede, avistando uma parte do prisioneiro através dela. - Provavelmente deve ter ajudado em alguma invasão e Melandra desperta isso. Bem - começou a sair da moradia. - Ficaremos aqui mais alguns dias para que “tenhamos certeza” do que está acontecendo.

O espião foi até um dos guardas e o avisou sobre o fim da inspeção. O homem reuniu seus companheiros e os guiaram até o centro do reino, num bairro maior e mais movimentado que as vilas anteriores. Lá as pessoas vestiam roupas de qualidade maior e tinham trejeitos estranhos, como se seus dedos mindinhos estivessem sempre congelados para cima. Enquanto passavam, rodeados pelos guardas, os transeuntes se viravam na direção em que vinham, arqueando as sobrancelhas de forma pouco amistosa enquanto alternavam os olhares entre o novo trio de visitantes.

Sem mostrar qualquer reação, continuaram avançando até o outro lado, saindo do centro, com diversas padarias, alfaiatarias e mercearias, até a última vila de Melandra. Kyprios se adiantou e foi passando pelas casas pequenas, algumas mais parecendo cabanas, até escolher a menos prejudicada. Neri andou lentamente pelo local, não queria se perder do mensageiro - além de suas dores ainda persistirem em algumas áreas do corpo. O garoto a acompanhava silenciosamente, mais olhando para o céu ao invés do chão e das casas. Manteve o momento assim, tinha medo de falar algo e aumentar a confusão interna do jovem - suas próprias angústias já eram o suficiente naquele grupo.


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