Invernia escrita por Wolfie A


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

boa sorte



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Clara tivera dezenove invernos. Invernos, apenas. As primaveras foram tão curtas que não houve tempo suficiente para florir as rosas e abrirem-se os botões. Clara tivera dezenove invernos, uma porção de sonhos e nenhum agasalho para se apegar durante a nevasca. Carregava olheiras enormes nos olhos, marcas de luta, sinais que exibia com orgulho no rosto magro e pálido porque eram seu lembrete de que mais uma noite de insônia havia sido vencida. Tinha pouco fôlego, cansava facilmente ao subir e descer escadas, e um medo constante de não conseguir continuar no prelúdio do inverno que chegaria – ela sabia, tinha certeza que chegaria em breve. Clara tinha medo, mas exibia as cicatrizes como marcas de batalha entalhadas no próprio corpo.

Sabia sorrir com cautela. Detestava a viscosidade dos risos exagerados que pregavam nos ouvidos como pregos enferrujados. Tinha a voz estranhamente baixa, prenuncio do próprio corpo de sua timidez exagerada. Continha-se a ser educada e invisível sempre que podia.

Entre idas e vindas dos escritórios, trazia os processos abraçados ao corpo com um cuidado exagerado. Também tinha claustrofobia e um medo constante de trancar pessoas no próprio coração. A maioria das marcas que trazia fora deixada por pessoas que amou demais. O rasgo no joelho que Joaquim deixou quando partiu sem deixar recado, o esfolado na mão que Marcela deixou quando nunca mais retornou as ligações, Lúcia, Renan, Flora e Matos. Todos haviam deixado cicatrizes em seu corpo, cicatrizes que ela gostava de mapear para tirá-las do coração. Não queria um coração martirizado e frio, em processo de decomposição. Queria um coração inteiro e pulsante, então tratava de fingir que as cicatrizes eram físicas.

Clara não sabia amar. Ou amava demais, demais, demais, dramaticamente e demasiadamente demais, ou não amava nada. Nada de meios termos. Clara não sabia amar, mas amava demais aquilo que conseguia, amava demais aquilo que não podia e amava demais aquilo que a invadia silenciosamente. Aqueles que amava, furtivamente adentravam em seu coraçãozinho, minúsculo como sua mão, e faziam moradia. E Clara trancava o próprio peito, aguava a casinha com suas próprias lágrimas até que florisse um jardim enorme ali, em meio ao inverno que constantemente estava em sua vida. Sempre era surpreendida quando, da mesma forma furtiva que surgiam, iam embora. O vazio que restava era devastador, os esforços vãos de aguar com dor as flores no peito eram sua ruína. Depois, não conseguia se livrar da sensação de completa incapacidade de se recuperar e suas noites de insônia tornavam-se constantes.

Às vezes conseguia sobreviver às noites de insônia, com sua firmeza e com seus olhos vidrados. Às vezes, não. Às vezes só deitava em sua cama, no escuro, ouvindo o barulho das próprias lágrimas pingando no colchão. Nesses momentos, queria um abrigo do mundo, um lugar menos frio que a própria existência. No dia seguinte, exibia as olheiras com orgulho.

E restava em si mesma a sensação de incapacidade.

Perguntava-se do que adiantava todas aquelas estrelas se jamais poderia alcança-las. Perguntava-se do que adiantava toda aquela gente se elas jamais conseguiriam salva-la. Rodopiava no balé com toda a raiva contida que tinha, girando compulsivamente em círculos até a cabeça rodopiar também. Sua válvula de escape eram os giros vorazes que fazia em torno de si mesma. Imaginava se a Terra e os astros, assim como ela, estavam tão zangados que precisavam rodopiar sobre suas pernas para afagar a própria alma. Imaginava se estaria na constelação errada.

Depois, cansada, mas sem sono, tirava as sapatilhas e observava os dedos açoitados. A sensação era prazerosa. Alongava-os, sentindo o sangue pulsar, e esticava as pernas e os braços deitada no tapete da sala. Nos dias que dançava, as noites eram menos pesadas. O silêncio era calmo, o escuro era estável, a cabeça se calava. Nos dias que não, o silêncio parecia gritar, o escuro tremulava e a cabeça não fazia silêncio. Parecia falar e recuperar tudo aquilo que guturalmente tentou apagar. Não adiantava, em noites frias a mente negava a negação. Era obrigada a ouvir lucidamente seu soluço.

Voltava do trabalho, carregando na bolsa as sapatilhas dependuradas na alça. Estava concentrada demais no movimento do trem, nas paredes velozes que eram iluminadas e depois voltavam para seu escuro túnel. Fixava os olhos nas janelas, segurando na barra em silencio consigo mesma enquanto ao fundo alguém ouvia ao rádio. Não conseguia decifrar as palavras das pessoas, o calor humano, nem mesmo o som da rádio, que ia se dissonando cada vez mais, enquanto ela cada vez mais ia entrando na própria mente. Ficava sozinha apesar de estar rodeada de pessoas e logo seus olhos não eram capazes de reconhecer o ambiente em que estava. Esvaziava por completo a cabeça.

Dezena de vezes fizera o trajeto de volta para casa no trem, dezena de vezes fora inconsciente até a estação. Os olhos parados no além avisava que não estava realmente ali, no ambiente inconfortável do trem das oito, mas em sua mente inquieta e solitária. Não podia pensar demais no ambiente, nas pessoas, nos murmúrios, ou a pele coçava e os pulmões se negavam a puxar ar, fazendo o pânico surtar no corpo. E então o trem se abria, as pessoas saiam, e Clara percebia que precisava descer ou perderia a estação, perderia as pessoas e precisaria pegar outro trem para voltar para casa. Punha-se a caminhar veloz por entre as pessoas, pedindo perdão, perdão, perdão, até que alcançasse a porta do trem e pudesse caminhar escadas acima até a claridade, segurando a respiração até a luz do poste atingir seu rosto pálido.

A respiração era longa como sua pausa, fazendo com que ela puxasse o ar ao menos doze vezes antes de voltar a raciocinar. Colocava as mãos no bolso, parando os membros que tremiam involuntariamente, e caminhava até seu apartamento.

Dia, noite, chuva, sol, Clara estava constantemente olhando para o chão e reformulando os próprios passos para nunca esbarrar em alguém, nunca olhar para alguém e nunca dividir com alguém algum minuto único e especial. Detestava a ideia de se apaixonar por alguém aleatório na rua, que jamais fosse voltar a ver, e sofrer com aquilo. Sabia muito bem da sua incapacidade de desamar, sabia muito bem o custo que as noites mal dormidas tinham.

E sufocava-se dentro de si mesmo que a claustrofobia a fizesse almejar por saídas.

Clara demorara bastante naquele dia para retomar a realidade e pôr-se a correr para fora do trem. Quando, enfim, conseguira alcançar a porta, suas sapatilhas ficaram presas pelas fitas de cetim. Lutou fracamente uma e duas vezes contra as portas cerradas, mas percebeu que não conseguiria. Puxou a bolsa, desamarrou as sapatilhas a tempo e as viu indo embora penduradas pelas fitas de cetim na porta do trem das oito. Soltou o ar antes de alcançar a luz externa da estação, apoiou-se nos blocos de concreto ali e subitamente começou a puxar o ar como em uma crise de asma.

Clara não tinha asma, mas não conseguia sentir os próprios pulmões. Caminhou até seu apartamento como se jamais tivera saído do trem. Continuava prendendo a respiração, soltando-a vez ou outra antes do pânico correr os ossos, respirando velozmente uma, duas e três vezes, e então voltando a segurar a respiração. Demorara mais para aconchegar os pensamentos naquela noite e pensara melancolicamente que o inverno retornara.

Não se lamentou, apenas apertou os olhos no escuro e fingiu dormir. Queria dormir, queria muito, muito dormir, mas só conseguia se concentrar no barulho de tic tec do relógio, no som dos carros que às vezes passavam na rua e no barulho abafado de alguma festa que acontecia por algum lugar distante dali. Tentava reconhecer a música, mas não fazia ideia de que música seria. Pensou se, ao menos, daria para dança-la. Finalmente conseguiu dormir.

Abraçou com mais amor as pastas no trabalho, teve crise claustrofóbica no elevador, no trem das sete, das oito, quando a porta do banheiro não quis abrir e, mais tarde, quando a escuridão da noite pareceu engoli-la. Teve crises claustrofóbicas em todos os lugares que frequentava diariamente, sem saber como reagir aos pulmões fracos que paravam do nada. Não usou fones de ouvido por uma semana inteira, não dançou por uma semana inteira e, quando o fim de semana finalmente chegou, não alcançou a válvula de escape. Estava a um passo de enlouquecer sem suas sapatilhas, mas era difícil demais ter de substituí-las. Estavam puídas, velhas, mas eram suas sapatilhas, suas, o cetim que amarrava nas canelas, até mesmo a sujeira no rosa desbotado.

Não conseguia levantar as cicatrizes e mostrar que mais uma batalha havia sido vencida porque estava ocupada demais tentando não ocupar a própria mente com baboseira. Sapatilhas que seriam substituídas como as pessoas a substituíam, amores que ela trocaria por não haver outra opção. Não escolhera amar aquelas pessoas, mas amara, e depois fora obrigada a não amá-las mais. Não escolhera amar.

Quando o prelúdio do inverno bate, as mentes que anseiam calor ficam loucas com a ideia do frio nos ossos e no coração.

Clara tivera dezenove invernos e estava decidida a passar por esse inverno frio que batia a porta com a cabeça erguida. Preparava-se como quem vai para a guerra, começava a se vestir com armaduras sentimentais enquanto sentava no chão da sala respirando fraco. Armaduras são frias e pesadas, mas protegem aquilo que resta do corpo. Era apenas mais um inverno. Clara sabia.

Foi surpreendida quando, no trem das oito, voltando para casa, uma semana após perder suas sapatilhas, alguém a puxou de seu subconsciente. Pareceu perceber subitamente que ainda estava no trem, apertado e quente, quando o homem tocou seu ombro com as mãos suaves.

Moça, deixastes tuas sapatilhas presas na porta segunda passada, falou o homem. O coração bateu no ouvido, a cabeça agradeceu em silêncio e, não acreditando, esticou as mãos para tocar nas sapatilhas puídas que a haviam deixado. Não, não haviam. Estavam ali. Pegou-as com cuidado, como se jamais alguém pudesse dar-lhe maior proteção. Um pensamento quente passou pela cabeça dizendo que talvez as armaduras não fossem necessárias agora. Estava no prelúdio do inverno, tinha certeza, mas talvez fosse demorar um pouco mais para invadir as janelas. Não teve palavras para agradecê-lo.

Tentou retornar para o fundo da própria mente, mas não conseguia. Sentir as fitas de seda faziam-na querer dançar. Também não conseguia abandonar a ideia de que o trem estava quente demais. Abaixou os olhos e observou os sapatos das pessoas mais próximas.

Está bem feliz com as sapatilhas, perguntou o homem, não? Tentou achar na garganta as palavras, mas não conseguia. Tentou achar o fôlego, mas havia se esvaído por inteiro. O pulmão era como um balão furado. Clara fechou os olhos calmamente, pensando sozinha em como inspirar e expirar.

Você está bem, perguntou, moça? Sim, respondeu. Não havia convencido nem a si mesma. Olhou para as paredes. Reconhecia elas. Devia correr para a porta. Obrigada, falou, enquanto se afastava rapidamente tentando alcançar a porta do trem, mas não fora rápida o suficiente. As portas se fecharam, o ar saiu todo dos pulmões e, sem ver, Clara começou a agachar suavemente.

Só voltou a raciocinar quando desceu no ponto seguinte, correndo escadas acima, olhando para a lua como um troféu de ouro. O homem ainda estava lá. O par de olhos negros como noite a observava enquanto ele apoiava o peso de Clara nos ombros.

Ele sorriu. Clara não pôde evitar. Olhou-o nos olhos, nos fundos olhos negros, e sorriu de volta.

Quando desceu do trem, subiu as escadas correndo, correu até sua casa, depois trancou a porta e apoiou as costas contra a madeira. Balançou a cabeça em negativa. Clara sabia que não sabia amar, e Clara sabia do prelúdio. Sabia muito, muito bem sobre as noites mal dormidas, sobre florir jardins, sobre aguar as flores e depois ver tudo secar e murchar com o inverno. Talvez estivesse surtando.

O trem das oito se tornou um lugar mais agradável, mesmo que agora não pudesse mais entorpecer a própria mente. O homem estava sempre lá, conversando sobre filmes, música, arte. Clara amava arte! Picasso, Da Vinci. Não conseguiu conter o coraçãozinho, louco.

A insônia desapareceu. Rodopiava, mas não era fúria. Pensou que às vezes os planetas deviam girar só para sentir a cabeça girando também. A constelação em que estava era perfeita. Sentia-se como Plutão; achava-se minúscula, isolada e distante, fria – não porque queria, mas porque o Sol não conseguia tocá-la – mas também era um planeta, com cinco luas. Estava distante, era pequena, mas era planeta, com dias próprios, horas próprias, até mesmo definições próprias.

Clara não sabia amar. Era sua maior incompetência. E não conseguiu prever o momento em que estava amando, dramaticamente e eloquentemente. Não conseguiu prever, mesmo que os giros ficassem cada vez menos irados e cada vez mais delicados. Pensou se finalmente estava em uma estação diferente.

Podia ver na paisagem palmeiras, não pinheiros.

Ah, meu Deus, como ficou extasiada e entorpecida pela sensação do calor na alma. Era diferente dos outros amores. Era diferente de tudo. Os risos, os dias, o trem das oito. Conseguia respirar, conseguia sentir os pulmões inteirinhos. A loucura suave que era sentir a brisa do verão no rosto, ver os semblantes das palmeiras, lindas que eram. Aonde ia o coraçãozinho?

Trancou o peito e chorou as mágoas para fora até florir jardins – margaridas e palmeiras, aqui e acolá.

Intensa que era, foi de braços abertos para o verão sem perceber que a planta verde e com flores rosas que pretendia abraçar com tamanho carinho era cacto. Foi com tamanha paixão na miragem de dias quentes que tivera, que não percebeu que não era verão, nem primavera: era inverno.

Não adiantava se preparar para o inverno, sempre era surpreendida por ele. O amor viera vestido de palmeiras e praia, viera com arte e música, gargalhadas e esperança. Que tiro fora descobrir que doía. Andou demais no asfalto quente e queimou a sola do pé. Pelo amor de Deus, Leonardo, fique, falou ela. Ah, mas não adiantava. Da mesma forma furtiva que apareciam, iam embora. Clara sabia, sempre soube. Dezenove invernos se passaram e ela estivera em cada um deles, sinais de guerra entalhados no corpo, rasgos no joelho, esfolados na mão, Lúcia, Renan, Flora, Matos e Leonardo. Um apanhado de estrangeiros que passavam férias no belíssimo jardim, aguado com lágrimas e sangue, depois iam embora.

Clara sabia! Incompetente que era, sabia que amar era seu maior pecado.

Mas amava demasiadamente, dramaticamente e tragicamente em excesso.


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Notas finais do capítulo

obrigado



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