Medula escrita por Bellie H


Capítulo 3
Goteira


Notas iniciais do capítulo

Bem vindos!



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Domingo, 25 de dezembro de 2360

Pavilhão 2, cela 14, Linfo

[Angelina]

Uma gota de água quente e suja caiu em meu nariz, me dando um susto. Eu já havia reclamado daquela goteira para três funcionários diferentes fazia mais de dois meses e fui solenemente ignorada. Quase não se preocupavam em entregar-nos comida, não iam se preocupar, portanto, se, vez ou outra, uma gotinha d'água nos incomodava.

— Deve estar chovendo muito lá fora. - Disse Meg, sentada no chão, com a cabeça virada para trás, apoiada em sua cama.

Assinti rapidamente, porque não queria prolongar o assunto. Desde que eu fui presa, tentava evitar ao máximo pensar na vida lá fora, embora eu soubesse muito bem que não havia como. Meus pensamentos tentavam descobrir os detalhes do mundo lá fora e da vida na Medula, principalmente como minha mãe estava sem mim. Desde que meu pai morreu na Guerra, estávamos mais unidas e dependentes da outra do que nunca. Até que eu fui presa e ali estava, sentindo a goteira pingar na ponta de meu nariz tantas vezes que eu nem tentava desviar mais, e só aceitava o meu lugar ali.

Um barulho me tirou de meus devaneios. Escutei a fechadura da cela sendo destrancada, e Rose, uma das agentes penitenciárias, nos disse para fazermos fila. As outras celas também foram abertas e nos conduziram, assim, para um refeitório improvisado em que, às vezes, fazíamos as refeições.

Entrei na fila para a comida e, aos poucos, a fila foi enchendo. À direita da entrada e de frente para todas as mesas, ficava a cozinha e, na frente dela, grandes bacias cheias com a comida a ser servida, colocada por três agentes. Depois que fui servida, sentei junto com as outras sete pessoas da minha cela em uma das mesas. Aos poucos, as demais mesas eram tomadas. Elas ficavam distantes umas das outras, para evitar conversa entre pessoas de diferentes pavilhões.

A estrutura da Linfo era bem simples: ela era dividida em cinco pavilhões. Não sabíamos ao certo o motivo dessa divisão, mas, muito provavelmente, ela acontecia porque a prisão de St. David, que serviu de base para a Linfo, era, também, dividida dessa forma. Nos quatros primeiros pavilhões, estavam os presos que haviam praticado crimes de menor potencial lesivo, ou seja, crimes menos graves. Não fazia muita diferença, portanto, ser do Primeiro ou do Segundo Pavilhão. No quinto e último pavilhão, porém, eram colocados os presos perigosos, aqueles que estavam ali por crimes extremamente graves, como homicídio, latrocínio, tortura e estupro, crimes que aumentaram muito desde o fim da Guerra. O pessoal do Quinto Pavilhão não costumava comer no refeitório, provavelmente por ordens do presidente. Ouvi dizer que eles comiam em suas celas, quando comiam.

Eu tinha chegado a ver pouquíssimas pessoas do Quinto Pavilhão na vida. Sabíamos o pavilhão ao qual pertencia o preso por causa de um número gigante pintado no lado direito de seu peito no macacão laranja horroroso que éramos obrigados a ver todos os dias.

Quando me sentei, observei a comida. Arroz, purê de milho, alface, um pedaço de pão e o que eu não consegui identificar direito, mas, muito possivelmente, uma coxa de frango. Eu pisquei e me dei conta de uma coisa.

— Hoje é Natal? - Perguntei, baixinho, para Meg.

— Sim, hoje é Natal. - Respondeu Rose, me fazendo pular na cadeira de susto. Não era para ela ter ouvido.

Eu imaginei que estávamos em Dezembro porque a temperatura havia caído alguns graus. Não muitos, apenas alguns. O aquecimento global não deixava a temperatura cair mais do que isso. E descobri que era Natal porque a comida de hoje está infinitamente melhor do que a comida que normalmente recebemos, o que mostra uma tentativa, mesmo que muito tímida, de fazer uma ceia.

— Natal era a minha data preferida - Falei para Meg, dessa vez em voz bem mais baixa. - Sabia?

— Sabia - disse ela -, você diz isso todo ano.

Não respondi. Fixei meu olho na coxa de frango esquisita e pensei, de novo, em como minha mãe estava.

Uma sirene tocou, nos informando que nossa ceia patética havia acabado. Me levantei e entrei na fila, dessa vez para voltar à cela, deixando mais da metade do meu prato intacto.

Eu sabia mais ou menos como minha mãe estava, na verdade. Ela ia me visitar sempre que podia e, apesar de meia hora ser um tempo demasiadamente curto para se falar com a mãe depois de uma semana sem vê-la, tentávamos contar todas as coisas que nos aconteciam. Exceto por uma. Eu não contei a ela porque tinha ido parar na Linfo. Não contei, apesar de todos os pedidos. Ela me perguntava em toda visita, e eu dizia que não sabia. Mais difícil do que não saber, eu achava, era saber bem demais, o que era de fato o meu caso. Eu mentia para ela, dizendo que comia bem e que me divertia durante os banhos de sol. Na realidade, a comida era cada vez mais escassa e, os banhos de sol, cada vez menos frequentes. Eu só achava que não precisava fazê-la sofrer na Medula também. Eu preferia sofrer sozinha na Linfo, cumprir minha pena, ir embora e esquecer que um dia estive aqui. Esquecer tudo, toda a história, e seguir em frente.

Entrei na cela.

— Feliz Natal, Rose.

— Para você também, querida. - Ela me respondeu.

Rose era surpreendentemente gentil para o trabalho dela. Eu tinha sorte que, na maioria do tempo, ela estava ali. Me lembrava um pouco a minha mãe.

Deitei na minha cama e fechei os olhos. Eu não sabia quanto tempo tinha de ficar ali. Não havia julgamento, não havia defesa e não havia, logo, a dosimetria da pena. Eu sabia que ficaria lá até que o Presidente Grant decidisse que eu não precisava mais estar ali. Isso ia demorar anos, eu tinha cada vez mais certeza.

Me virei de lado. Este era, pelo menos, um dia a menos.

 


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Notas finais do capítulo

Voltem sempre!!



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