Medula escrita por Bellie H


Capítulo 1
Água


Notas iniciais do capítulo

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Domingo, 25 de dezembro de 2360

Medula

 

Uma gota de água gelada escorreu lentamente pela janela e caiu na ponta do nariz de Lily. Fazia mais de dois meses que não chovia. Algumas plantações de milho ameaçavam secar e já se começava a falar em um novo racionamento de trigo. A chuva que caía, apesar de forte e fria, garantia alguns dias de banho. Lily e a família espalhavam baldes pelo quintal para coletar a água da chuva.

— Lily - Kate irrompeu pela porta, ao mesmo tempo que um trovão fazia as janelas tremerem. - A ceia está pronta.

— Eu não vou - respondeu Lily, com a voz abafada e a cabeça ainda encostada na janela.

— Você diz isso todo ano. - Afirmou Kate, suspirando e chegando mais perto.

Lily descolou os olhos da janela e se voltou a Kate.

— O Natal era a data preferida da Angelina - falou -, você sabia?

— Sabia - disse Kate, e seus olhos deram um leve sorriso - Você também diz isso todo ano.

— Eu sinto tanto a falta dela - falou Lily, e seus olhos encheram de lágrimas.

Kate se sentou ao lado de Lily e pegou a mão da irmã. Olhou para seu rosto envelhecido demais para a idade de 40 anos e soltou um novo suspiro.

— Já faz 4 anos. - falou, embora sem esperança de convencer Lily - O Presidente Grant garante que a Linfo foi construída com muita cautela e que todos que estão lá recebem os cuidados que precisam.

A tristeza nos olhos de Lily se transformou em raiva.

— Você fala da Linfo como se fosse um desses retiros de ioga idiotas. - Falou, aumentando a voz - A Linfo é uma prisão! Minha filha é uma prisioneira!

Kate apertou as mãos de Lily com mais força.

— E Angelina está lá porque precisa. - Argumentou - Quando ela estiver pronta para ser inserida na sociedade novamente, poderá sair da Linfo.

— Você parece as propagandas do governo! - Gritou Lily - Minha filha não fez nada e, se você não acredita nisso, saia!

Kate largou as mãos de Lily e se levantou. Saiu do quarto e foi sentar-se à mesa, na sala.

— Ela não vem de novo. - Lily ouviu Kate dizer ao resto da família.

Essa história não começa aqui, em 2360. Essa história não começa, tampouco, em 2356, ano em que, sem nenhuma explicação, a filha de Lily, Angelina, foi presa pelo governo e levada até a Linfo.

Essa história começa há mais de mil anos e tem seu ápice no ano de 2300, com a eclosão da Terceira Guerra Mundial.

Antes desse ano, o desenvolvimento industrial e tecnológico nos países ricos estava a todo vapor. A exploração de petróleo chegava até os seus extremos. Os países do norte consumiam cada vez mais gado e exigiam mais matéria-prima. Nos Estados Unidos, entre os anos de 2100 e 2130, a construção civil aumentou em 35% em comparação com anos anteriores. Os crescentes casos de câncer de fígado na França em 2150 fizeram necessário o aumento de pesquisas e produção de medicamentos. O desenvolvimento de robôs japoneses no mesmo ano sofreu um inesperado alargamento. No período de 2100 a 2160, os países do leste europeu e os Estados Unidos registraram os maiores índices de desperdício de água da Era Pós Moderna.

Ao mesmo tempo, os países pobres sofriam cada vez mais com o uso brusco e exagerado de água potável nos países de primeiro mundo. Os Estados Unidos, em uma tentativa desesperada de conseguir água para manter seu consumo desenfreado, invadiu o Marrocos para construir uma usina hidrelétrica, aproveitando seu potencial junto ao Oceano Atlântico e sua mão de obra barata. A obra, depois de desabrigar milhares de famílias, parou na metade porque não seria capaz de fornecer água a um tempo curto o suficiente. A Alemanha, também com ânsia de suprir seu clamor por água, pressionou o Paraguai e comprou sua parte da Usina de Itaipu por um preço demasiadamente baixo, e se encaminhava para pressionar o Brasil pela outra metade. O excesso de construções e a poluição exaustiva e em gravíssimas dimensões inflamaram, ainda mais, o efeito estufa, e fizeram avançar o aquecimento global. Os invernos se tornaram quentes e os verões, mais quentes ainda. A chuva era, portanto, um acontecimento raro.

A exigência de água para garantir a continuidade da produção de tecnologia de ponta, medicamentos, alimentos, pesquisas, construções civis e a intensa exploração de petróleo era gigantesca e urgente. Os países mais ricos começavam a exportar a água potável dos países pobres, pagando pouco e sem que fosse oficializado um acordo ou um tratado. As pessoas que viviam nas regiões áridas e desérticas dos países pobres morriam pela desidratação porque o governo, abarrotado com a exigência de países ricos, não conseguia enviar água a tais lugares.

A exemplo dos Estados Unidos, Áustria, Suíça, República Tcheca e outros países europeus sem acesso ao mar invadiram países da África e do Oriente Médio, e, valendo-se da superioridade tecnológica, destruíram vilarejos a fim de conseguir água. Caso a população dos países invadidos se rebelasse, os europeus os escravizavam, em um irônico e nefasto ciclo histórico. Havia-se chegado, definitivamente, a um extremo.

Tudo começou a mudar em meados de 2250. A Rússia viu na insatisfação dos países pobres uma oportunidade de enfraquecer os Estados Unidos, seu inimigo consagrado. O governo russo passou, então, a armar secretamente a Síria, o Irã e o Kuwait. Esses países começaram a reagir à exploração dos países europeus e dos norte-americanos, tendo bons resultados. A Rússia continuou enviando armamentos, maquinário e até algumas bombas nucleares para o Oriente Médio, e pressionou aliados, como Ucrânia e Bielorrúsia, a fazerem o mesmo. No entanto, a Rússia ainda mantinha suas bases de exploração em Cabo Verde e na Guiné.

Em resposta à luta travada no Oriente Médio, os Estados Unidos enviaram parte de seu exército para conter os ânimos. Em uma das emboscadas americanas no Catar, 23 civis morreram. A Rússia e seus aliados passaram a fortalecer ainda mais os rebeldes, fornecendo mais bombas atômicas e metralhadoras mais potentes, além de passar a enviar armamentos para a América Central, América do Sul e China. Os chineses, ainda, enviavam tropas para os países asiáticos e africanos.

Em 2298, o exército americano, juntamente com o inglês, destruiu uma vila inteira de civis no Iraque, incluindo mulheres e crianças. A Síria decidiu, pela primeira vez, usar uma das bombas atômicas entregues pela Rússia, com alvo nos Estados Unidos. Em 2300, o Novo World Trade Center caiu e a Terceira Guerra Mundial começou.

O Big Ben foi o segundo monumento a cair, depois de um ataque nuclear em 2302 orquestrado pelo Afeganistão. O Iraque explodiu três bombas atômicas na França, o que causou um devastador acidente nas usinas nucleares francesas, responsáveis por cerca de 80% da energia usada pelo país europeu. A população morreu por conta da radiação excessiva e o país foi às cinzas. Em 2320, não existia mais França.

A destruição total do território francês intensificou a guerra. As tropas brasileiras e argentinas tinham sucesso expulsando os canadenses de seus países, enquanto Paraguai, Bolívia e Peru sofriam ataques cada mais violentos da Inglaterra e da Espanha. Canadá, Estados Unidos e Japão destruíram a América Central e saquearam os países do continente em um intervalo de apenas 10 anos.

A Rússia perdera o controle dos países que abastecia. O fato de o maior país do mundo manter exploração material e humana na África fez com que este mesmo se tornasse um alvo. Em 2330, uma parceira entre Síria, Irã e Arábia Saudita destruiu abrigos de inverno no interior russo utilizando bombas atômicas, e causando a morte de milhares de pessoas, incluindo civis.

Em 2331, os Estados Unidos desconfiavam que a China, juntamente com os países sul americanos planejava um ataque nuclear ao Rockefeller Center, usando uma base no México. Os Estados Unidos e o Canadá fizeram, portanto, um acordo de cessar-fogo com o México em 2332, que ficou conhecido como Tratado de El Paso.

A Itália se rendeu em 2333 depois de perder 80% de sua população. Mesmo após sua rendição, o Líbano atacou o país com mais uma bomba atômica, devastando o território italiano completamente.

Em 2335, os Estados Unidos quebraram o acordo de cessar-fogo com o México e destruíram o país. Em resposta, a China e o Brasil atacaram o território americano, colocando abaixo a Times Square, o Rockefeller Center e milhares de vidas.

A Europa havia se desmanchado, a população da África e da Ásia sofria com a fome e doenças. Não havia mais comida e nem medicamentos, apenas violência e destruição. A Rússia e o leste europeu já não existiam, a porção leste da América do Sul, o Canadá e o Japão também não. Alguns países do Oriente Médio ainda resistiam, juntamente com a África do Sul e o Brasil. Essas nações se uniram para planejar um último ataque nuclear aos Estados Unidos, o maior de todos, para selar a sua completa destruição. Em 2345, foi lançada a última bomba atômica, e os países autores buscavam de todo modo se fortalecer para a reação dos americanos, que nunca veio.

Os Estados Unidos haviam sido, definitivamente, derrotados. As populações dos países que restaram morriam aos poucos, vítimas de fome, desidratação, hipotermia, além de doenças para as quais não existiam mais medicamentos e pesquisas, e também de ferimentos de guerra, já que havia pouquíssimos médicos no mundo.

O homem destruiu o próprio homem. A Terceira Guerra Mundial acabou em 2350 e deixou nada além de cinzas e silêncio.

Exceto por uma cidade.

 


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Notas finais do capítulo

Obrigada pela leitura! Volte sempre e deixe sua opinião nos comentários, por favor! O segundo capítulo será postado em breve!



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