Alfred escrita por Laurus Nobilis


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Olá! Seja muito bem-vinda(o) à "Alfred."

Esta fic é vagamente inspirada (ou seja, algumas coisas eu tirei da letra, mas a maior parte do enredo veio da minha cabeça mesmo) na música "Alfred" da banda Hungry Lucy. Daí vem o título, hehe. Essa banda é uma das minhas preferidas e infelizmente quase ninguém conhece, mas deveria conhecer. Muitas músicas parecem contar uma história, "Alfred" é uma delas. É triste, fantasmagórica e sombria, assim como este conto. Por mais que a capa possa sugerir, não vai ter nada de muito assustador. Sobrenatural, sim. Aterrorizante, acho que não. Pode ler sem medo.

Aqui está a música: https://www.youtube.com/watch?v=__EWiRBTwrA

E a letra dela (eu mesma enviei uma tradução porque ainda não tinha, em breve vai ser disponibilizada): https://www.letras.mus.br/hungry-lucy/673109/

Tem mais uma coisa: a história se passa na França de 1910, por aí. Não sei se deixei esse fato muito claro além dos detalhes, e talvez você se pergunte sobre isso enquanto lê, então já estou esclarecendo aqui.

É isso, espero que goste da leitura! Um comentário me deixaria imensamente feliz.



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Durante toda a minha vida, sempre convivi com a solidão. Ela permeia a maior parte das minhas lembranças. Acho que já até me habituei. Não que eu passasse muito tempo sozinha – costumava estar cercada de pessoas, embora raramente recebesse uma migalha de afeto verdadeiro.

Eu era recém-nascida quando fui deixada dentro de uma cesta na frente do convento Saint Agnes. Era tarde da noite, estava nevando e acho que minha mãe biológica não se importou com a possibilidade de eu morrer de hipotermia ao relento. Felizmente, meu choro sobrepôs o som da ventania e logo a irmã Joanne abriu a porta e me encontrou, frágil e azulada, envolta apenas por um manto surrado e sem nenhum tipo de identificação. Ela me levou para o berçário aquecido, lotado de outras crianças órfãs e abandonadas, e me deu o nome de Claire.

Tratavam-me bem, na medida do possível, pois era difícil alimentar tantas bocas e dar atenção a tantos meninos e meninas, e cresci forte e saudável. Mas nunca me encaixei. Os outros frequentemente me chamavam de feia, por eu ter nascido com uma grande mancha avermelhada no rosto, e diziam que ninguém nunca iria querer adotar uma garota horrível como eu. Eu não me deixava afetar tanto com isso, mas como era difícil encontrar alguém que não me hostilizasse, terminei sem amigos. Quando começava a me dar bem com alguma criança, ela logo era adotada. Eu já havia completado dez anos de idade e nenhuma das famílias que vinha nos visitar sequer olhava para mim. Talvez os que me ofendiam estivessem certos.

Certo dia, um garoto novo surgiu do nada. Digo isso porque geralmente as crianças recém-chegadas eram apresentadas às outras pelas freiras, mas não foi o que aconteceu no caso dele. Ele parecia ter a minha idade e ficava sentado em um dos bancos do pátio, encolhido em suas roupas grandes demais, apenas observando os outros órfãos brincarem. Não pensei duas vezes antes de sentar ao seu lado.

— Oi! Meu nome é Claire, e o seu?

Ele se limitou a me encarar com seus olhos grandes e assustados. Tinha a pele cor de chocolate, cabelo escuro emaranhado e dava para ver como era muito franzino. Provavelmente viera da rua, e eu já previa como as crianças cruéis iriam dizer que ele nunca seria adotado também.

— Qual é o seu nome? - repeti gentilmente.

Ele fez que não com a cabeça, indicando a própria garganta, e finalmente percebi que ele era mudo. Pensei um pouco, antes de lembrar que trazia comigo um bloquinho e um lápis desgastado.

— Sabe escrever? - perguntei enquanto estendia o material para ele.

Ele assentiu, rabiscou algo na pequena folha de papel e me devolveu.

“Sou Alfred.”

Abri um grande sorriso, esperando que ele retribuísse, mas Alfred permaneceu com o mesmo ar melancólico. Eu não sabia pelo que ele tinha passado, mas poderia descobrir.

— Prazer em conhecê-lo, Alfred! Esse é um nome meio antiquado. Eu gosto.

Ele ergueu levemente as sobrancelhas, e logo depois virou a cabeça e voltou a observar. Eu até pensei em deixá-lo em paz, mas talvez ele precisasse de companhia, assim como eu.

— Quer brincar? - sugeri e, com alguma hesitação, segurei a mão dele. Era muito fria, certamente porque estávamos no inverno e ele não tinha luvas.

Alfred me lançou um olhar um tanto perplexo, mas deu de ombros, deixando que eu o levasse até os balanços que rangiam. Eu não parava de sorrir. Sentia que aquele era o início de uma amizade duradoura, a primeira que já tive.

Apesar de ser um tanto desanimado, Alfred logo se mostrou um bom companheiro. A partir daquele dia, começamos a passar o tempo inteiro juntos. Brincávamos de boneca e de esconde-esconde, mas meu passatempo favorito era sempre contar-lhe sobre todos os meus sonhos, pensamentos e devaneios. Era um alívio ter alguém com quem conversar abertamente. É claro que ele não respondia, porém, isso não era problema... Podia ver pela sua expressão que ele sempre ouvia atentamente. As outras crianças passaram a me lançar olhares ainda mais tortos do que o normal, mas eu não me importava. Havia encontrado um amigo tão diferente e deslocado quanto eu, e não precisava de mais ninguém.

Até que em uma certa madrugada, meu sono foi interrompido por um cheiro pungente de fumaça e uma mãozinha que me sacudia com aflição. Abri os olhos e me deparei com Alfred ao pé de minha cama. Embora o ar estivesse muito enevoado, tornando difícil enxergar, a urgência em seu olhar era clara. Ele gesticulou na direção da porta, e eu enfim pude ver as labaredas que se aproximavam rapidamente do dormitório. Mesmo com um incêndio se alastrando, eu não conseguia ouvir gritos e parecia que apenas Alfred e eu restávamos naquele quarto. Em pânico, só fui capaz de chorar, mas ele segurou meu pulso com firmeza e começou a me guiar corredor adentro, como se as chamas não o abalassem nem um pouco. Na verdade, parecia que um campo protetor havia se formado ao nosso redor.

Foi um milagre eu ter conseguido atravessar a casa inteira, que já estava desmoronando, e chegado ilesa à saída. Mas então olhei para trás… e Alfred havia desaparecido. Não percebi quando ele me soltou. Fiquei parada diante da porta da frente, encarando o fogo que a tudo consumia, e estava prestes a entrar de novo para procurar meu amigo quando alguém me agarrou por trás, me ergueu e começou a me levar para longe. Era a irmã Joanne. Ela parecia bem, embora inconsolável.

— Claire… Como você conseguiu? Todas as outras crianças…

— O Alfred me ajudou! - exclamei com a voz embargada. - E depois ele simplesmente sumiu. Ele ainda está lá dentro! Precisamos encontrá-lo…

Ela me fitou com um ar perplexo enquanto me acomodava no banco traseiro de um carro.

— Alfred? Não existe nenhum Alfred, menina. Você está confusa. Tente descansar um pouco. Vou te levar para um lugar seguro.

A porta foi fechada com um baque e eu imediatamente colei meu rosto no vidro. Em uma das janelas preenchidas pelo brilho alaranjado das chamas, tive a impressão de ver uma silhueta… que logo sumiu. Os bombeiros estavam finalmente chegando enquanto o carro se afastava, com apenas a mim e a freira que havia me recolhido quando eu era bebê dentro.

Demorei algum tempo para assimilar o que aconteceu naquela noite. Agora parecia apenas um sonho fragmentado e distante em minha mente. Nunca foi descoberto o que exatamente causou aquele incêndio. Tudo o que sabíamos é que ele havia sido devastador e eu fui a única criança a escapar. A irmã Joanne simplesmente não estava lá quando começou (ela disse que havia saído para investigar um ruído estranho no lado de fora e, quando voltou, encontrou a casa em chamas.) Fui transferida para um novo orfanato, bem maior e mais equipado que o convento, e ao ir embora, Joanne prometeu que voltaria para me visitar, mas nunca chegou a fazê-lo, porque em menos de uma semana, fui adotada por um simpático casal que se encantou por mim logo de primeira. Quem diria que um desastre me traria tanta sorte?

Minha família adotiva não poderia ser melhor. Passei a morar em uma bela casa, onde um quarto cor-de-rosa abarrotado de brinquedos me esperava. Ganhei roupas novas e comecei a frequentar uma escola comum… Quem olhasse para mim, jamais diria que eu havia passado a infância inteira como órfã. Mas ainda assim, eu não conseguia retribuir o carinho de meus novos pais. Eles achavam que fosse normal – pensavam que o fato de eu ser muito quieta e avoada fosse apenas dificuldade em me adaptar àquela mudança drástica na minha vida. A verdade era que eu estava triste. Preferia meu dia-a-dia precário no orfanato àquele tratamento de princesa, porque pelo menos, antes eu tinha Alfred ao meu lado. Se bem que àquele ponto eu já estava começando a aceitar que talvez ele não fosse nada além de um fruto de minha imaginação; uma fantasia que eu criara para me sentir menos sozinha, e que havia me abandonado de repente. Mas eu ainda precisava dele. Onde ele estava agora?

Meus pais adotivos só perceberam que havia algo realmente errado quando eu parei de responder ao ser chamada e comecei a perder o ânimo até para levantar da cama. Minha mãe me perguntou, aflita, se havia algo que eles poderiam fazer para eu me sentir melhor. Então eu disse que queria voltar às ruínas do convento. Nunca tive oportunidade de me despedir.

Minha família estava desesperada ao ponto de acatar qualquer pedido estranho que eu fizesse, portanto, em um sábado nublado realizamos uma pequena viagem até o que sobrava de meu antigo lar. O casarão de dois andares havia sido reduzido à uma estrutura frágil de tábuas enegrecidas que de alguma forma ainda conseguia se manter em pé. Cinzas permaneciam flutuando pelo ar como flocos de neve negros. Como se algo me convocasse ao longe, me afastei de meus pais e passei a caminhar lentamente pelo cenário destruído.

Desviando dos escombros espalhados pelo chão, logo alcancei as lápides que ficavam bem ao fundo da casa. Sim, havia um pequeno cemitério dentro do convento. Como as mortes por doenças eram frequentes naquele lugar úmido, empoeirado e lotado, suponho que era mais prático enterrar as pessoas ali mesmo, no cantinho. Nem chegava a ser necessário proibir as crianças de entrar naquele local, porque nós já o evitávamos por instinto. Mas, como nunca acontecera antes, eu me senti atraída naquela direção, e parei diante de um túmulo específico. Mal conseguia ler a inscrição desgastada:

 “Alfred Julien

 1871 – 1881

 Um anjo que voltou para o Céu.”

 Eu deveria ter ficado perplexa. Deveria ter me convencido de que aquele era, obviamente, algum outro Alfred, morto aos dez anos de idade bem antes de eu nascer. Mas em vez disso, uma onda de compreensão me percorreu, como se eu já soubesse de alguma forma. Então eu percebi que havia um pedaço de papel amarelado no topo da lápide, que rapidamente peguei e desdobrei. Em uma caligrafia garranchosa e familiar estava escrito:

“Senti muito a sua falta. Obrigado por voltar.”

Imediatamente, uma mão gelada envolveu a minha. Não me assustei ao me virar e ver meu querido Alfred. Ele estava sorrindo. Era a primeira vez que eu via aquele sorriso, tão largo e sincero. Também percebi outra coisa diferente nele… A luz pálida da tarde parecia atravessá-lo. Mas isso não deveria me surpreender – eu estava na frente de seu sepulcro e, ainda assim, podia vê-lo ao meu lado. Meu amigo era um fantasma, embora não do tipo assustador. Agora tudo fazia sentido. E não era motivo para eu gostar menos dele.

Com gentileza, ele passou a me levar para longe dali, para o interior das ruínas do convento. A escada ainda estava parcialmente intacta, e eu não ousaria subir por ela sozinha, mas Alfred me transmitia segurança enquanto me guiava, assim como na noite do incêndio. Paramos diante da janela de um cômodo que eu pude reconhecer vagamente como sendo o dormitório. O vidro se fora há muito tempo, e agora havia apenas um grande buraco, por onde o vento passava uivando.

Alfred me olhou intensamente enquanto colocava outro bilhete entre meus dedos, que dizia:

“Não aguento mais tanta solidão… Você entende?”

Assenti. Ele abriu mais um sorriso – murcho e um tanto triste, desta vez – enquanto me conduzia lentamente até o buraco. Olhei para baixo. Uma queda daquela altura seria morte certa.

— Alfred! – exclamei, encarando-o assustada. – Você quer… que eu pule?!

Ele fez que sim, solene. É a única forma, seus lábios articulavam sem som.

Afastei-me dele. Seu olhar magoado fazia meu coração doer.

— Desculpe, meu anjo… Entendo que você queira que eu fique com você para sempre, e eu não me importaria em ficar, mas simplesmente não posso. Tenho família agora. Tenho uma vida inteira pela frente…

A imagem de Alfred tremulou um pouco enquanto ele derramava lágrimas efêmeras de fantasma. Eu também comecei a chorar. Então, de repente, o quarto sombrio e decadente foi todo preenchido por uma luz dourada, tão brilhante que era difícil olhar diretamente. Mas Alfred parecia entender de prontidão o que aquilo significava. Seus olhos alternavam entre mim e a luz, indecisos.

— Pode ir, Alfred. É o seu lugar.

Ele balançou a cabeça negativamente e apontou para mim.

— Não se preocupe. Um dia nos encontraremos novamente, tenho certeza. Mas você precisa ir, ou vai ficar preso aqui para sempre.

Estreitando os olhos, consegui fitar a luz, e tive a impressão de ver a silhueta de várias outras crianças – os órfãos que haviam sucumbido ao incêndio. Estavam esperando Alfred. Pareciam felizes.

— Está vendo? Você não vai ficar sozinho.

Ele pareceu um pouco mais convencido e começou a dar passos lentos na direção da luz. O clarão aumentou até ofuscar minha vista, e depois sumiu. Tudo sumiu. Restava apenas eu, atordoada no meio dos destroços.

— Claire! – ouvi minha mãe gritando lá embaixo. Havia esquecido completamente dela. – O que você está fazendo aí?! Como você foi parar aí?!

— Não se preocupe, mãe! - berrei de volta, enquanto enxugava os olhos com as costas da mão e me recompunha. - Estou bem, já vou descer. Estava só… me despedindo.


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