Lost escrita por Gabs


Capítulo 26
XXVI




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Ir até a cidade era libertador, a vida que pulsava intensamente naquelas ruas, naquelas pessoas, lhe contagiava. Se sentia bem, contente, conectada, os olhares não eram invasivos e as poucas pessoas que se aproximavam eram tão delicadas quanto possível, se sentia bem-vinda. Os olhares de admiração e as pessoas que a cumprimentavam com uma reverência na rua a faziam se sentir como uma verdadeira princesa.

—Saca só isso! -Leviathan chamava mais uma vez animado com algo que havia visto para vender em uma vitrine no meio do mercado a céu aberto que estavam passando.

Haviam vários tipos de coisas ali, frutas, pães, carnes, roupas, ingredientes para feitiços, livros. Katherine não conseguia não se distrair com uma coisa ou outra.

—Espera, sabe que temos uma missão para completar. -chamou-o de volta.

Havia decidido que queria ajudar de qualquer forma que pudesse agora que havia se recuperado, então Allerick havia concordado em lhe enviar em missões de propósitos variados para que ela ajudasse a população ao mesmo tempo que conhecia o território.

Desta vez um movimento suspeito havia sido registrado numa casa no meio da cidade, nada alarmante, mas haviam sido captadas vibrações fortes ali e acharam melhor que alguém fosse verificar.

—Deve ser essa. -murmurou enquanto se aproximava devagar da casa pequena e redonda que estava com as paredes cobertas de um tipo de pigmento preto espalhado sem muito cuidado.

—No que posso ajudar? -uma senhora se aproximou, seus olhos eram de um verde claro hipnotizante, ela parecia afobada com algo, como se estivesse muito ocupada.

—Olá, notamos algumas vibrações fora do usual neste local e viemos verificar. -cutucou Leviathan com o cotovelo uma vez que ele achava mais interessantes as plantas na grade da senhora do que a tarefa que vieram fazer.

—Ah, sobre isso… Tenho cinco crianças. -seu rosto ficou vermelho, ela colocou  a mão atrás da cabeça com vergonha e evitava olhar a princesa nos olhos. -Estão aprendendo a usar os poderes agora e sabe… É mais difícil do que parece.

—Então estão todos bem? -quis confirmar.

—Sim! A parede foi uma chama desastrada e as vibrações foram uma tentativa de mexer com pedras. É difícil ensinar as crianças em casa agora que não temos mais Santa Marcelina, não sei fazer isso.

—Entendo, vou levar sua reclamação à rainha e veremos o que pode ser feito para aliviar seu fardo. -sorriu tentando oferecer algum tipo de conforto àquela mulher, seus dias provavelmente estavam sendo bem difíceis mesmo.

—Eu agradeço, querida. Também por ter se dado todo o trabalho de vir até aqui ver se estávamos bem. -ela ria desajeitada, era adorável.

Do lado de dentro da casa o som de uma panela caindo no chão pôde ser ouvido.

—É melhor você voltar. -murmurou Leviathan levando mais uma cotovelada da garota.

A mulher correu para dentro da casa aos berros numa tentativa de conter os filhos, Leviathan se esforçava para conter a risada.

—Ela era tão fofa, mas como alguém consegue ter tantas crianças?

—Feiticeiros são conhecidos por serem férteis. -provocou Levi. -Imagino quantos você e o principezinho vão ter.

—Não estamos juntos, e cale a boca.

Não adiantou, todo o caminho de volta até o castelo ela foi obrigada a ouvir Leviathan teorizando sobre quantos e como seriam os supostos filhos que ela teria com Thomas.

Leviathan andava de costas para encarar a amiga enquanto contava nos dedos e dizia os nomes da prole gigantesca que ele havia criado em sua cabeça quando foi pego pelo pescoço e levantado no ar.

—E quem é esse? -ele o analisava como se Leviathan fosse um objeto estranho enquanto seus dedos apertavam a garganta do moreno no que ele era levantado com apenas um braço, como se não pesasse nada.

—Pelos Deuses, você é um animal mesmo! -exclamou empurrando Thomas para que ele soltasse Leviathan que tossia muito. -O que está fazendo aqui fora?

—Me deixaram sair, mas só posso vir até aqui. -deu de ombros e lá estava ele, de volta em carne e osso, com seu temperamento capaz de testar qualquer um.

Observou a área e notou que ele estava proibido de sair dos limites do castelo, era um cachorro livre, mas apenas para passear no quintal.

—Que coincidência, eu estava justamente falando de você. -provocou Leviathan com as mãos na cintura.

—Não devia. -a réplica veio seca e com uma apertada de olhos vinda de Thomas que deixava claro para Leviathan que só por ambos gostarem de Katherine isso não os fazia automaticamente amigos.

—Não me faça revogar minha decisão, vampiro. Mantenha suas mãos para si mesmo. -Dex estava encostado no batente da grande porta de entrada e não estava disposto a tornar isso fácil para ele, e não seria nem um pouco fácil, especialmente se ele mexesse com Leviathan.

—Agora sei como se sentia. -comentou para que apenas Katherine ouvisse e rosnou de volta para Dex, refazendo seu caminho de volta ao castelo como um bom menino.

Virou-se para checar se Leviathan estava bem e deu de cara com o próprio mostrando a língua para o loiro que estava de costas para ele, Katherine riu até que lhe faltasse ar.

—Quer saber? Eu retiro tudo o que eu disse! Você não pode se casar com ele e muito menos ter filhos com esse cara.

Dex caminhava tranquilamente atrás de Thomas, como sua sombra. Ele tinha dito que concordava com a rainha que ele já estava apto para sair, mas não sabia que com isso seria designado para tomar conta dele.

—Deixe o Levi em paz, ouviu? Vocês estão do mesmo lado afinal. -avisou, já arrependido de ter concordado com aquilo, imaginou que cuidar de um príncipe fosse mais fácil do que cuidar de um jovem revoltado, mas não havia nenhuma diferença na prática.

—Não imaginei que vocês fossem deixar qualquer um cuidando dela. -foi a resposta recebeu.

Massageou as têmporas e se perguntou se poderia voltar atrás, mas quase conseguia entender a revolta do vampiro. Ele a amava, qualquer tolo conseguiria notar, e tê-la o odiando e distante já era ruim o suficiente, e levando em conta que ele era um vampiro, criaturas extremamente territoriais e protetivas, obrigá-lo a ver sua amada sendo escoltada por outro macho vampiro era demais para o que havia restado de seu orgulho.

Mas havia tomado a decisão certa, estava claro. Não via intensidade num par de Iguais daquela forma há dezenas de anos, precisamente desde a última vez que havia visto os pais de Katherine juntos.

—Abra os olhos, vampiro. Ela não precisa que mais ninguém cuide dela. Ela e Leviathan são amigos. 

Não recebeu a resposta afiada que esperava, mas ficou satisfeito com o olhar que viu Thomas direcionar aos dois que subiam as escadas rindo. Ele precisava ver que teria que melhorar se queria poder voltar a caminhar do lado dela.

Katherine bateu na porta que se abriu devagar, entrar na sala de Allerick era sempre tão arrepiante.

Leviathan não tinha permissão para entrar então sempre ficava esperando do lado de fora enquanto a amiga entrava para fazer o relatório da missão do dia.

—E no final não era nada? -ele questionou abaixando o rosto para olhá-la por cima dos óculos que usava.

—Não, só uma mãe de cinco filhos tentando seu melhor. Vocês planejam fazer algo por essas pessoas que precisam do ensino para controlar os poderes dos filhos? Pode haver outra criança como eu por aí, prestes a causar algo terrível pela falta de treinamento.

—Não há nenhuma outra criança igual a você. -ele se levantou e se sentou na frente da mesa, retirando os óculos e os colocando ao seu lado lentamente.

Katherine esperava que fosse dispensada pacientemente de pé a sua frente, tensa pela proximidade entre os dois.

Não conhecia Allerick tão bem, ele tinha uma atmosfera sombria ao seu redor, falava pouco e parecia gostar do desconforto que causava na garota.

O que sabia de sua história era bem básico, depois que Fleur ficou sozinha, seu pai, o Rei anterior, o mesmo que havia decidido se livrar de seu pai, de acordo com a versão de Dex, decidiu que ela precisava se casar uma vez que ele sentia que partiria em breve, escolheu aquele que achava mais compatível consigo mesmo e o casou a sua filha, embora nunca tenham tido filhos eram um casal respeitado pelo povo.

—Venha mais tarde e lhe darei uma missão de verdade. Sem o vampirinho ali. -se referiu a Leviathan com desdém e Katherine desejou que qualquer motivo para matá-lo caísse do céu. -Pode ir, seu trabalho aqui está feito.

Odiava ver a forma que as pessoas tratavam Leviathan por ser um vampiro, não significava nada, se ele fosse como Thomas, ela até entenderia, mas ele nunca havia feito nada de errado, especialmente para Allerick.

Ao sair da sala conseguiu fingir que nada havia acontecido para não preocupar Leviathan.

—Quem é esse? -uma voz foi ouvida no corredor e Leviathan sentiu um deja-vu.

—Ah não. -resmungou Leviathan pronto para se defender mais uma vez quando Kate riu colocou a mão em seu ombro, mostrando que ele podia ficar relaxado.

Samantha apontava para ele com a boca torcida em desgosto e curiosidade enquanto perguntava a identidade do garoto para Morgana.

—Então você faz coleção de garotos vampiros? -debochou Sam abraçando Katherine com força. -Senti sua falta.

—Eu também. -murmurou a feiticeira com o rosto enterrado no ombro da amiga.

Katherine se sentia mais calma sabendo que os dois agora podiam andar pelo castelo supervisionados e que poderia vê-los por aí com os amigos quando quisesse.

Não era preciso explicação para o porquê Samantha e Katherine passarem o dia todo juntas, Katherine fez questão de mostrar o castelo todo para a loira, que hora e outra fazia críticas do tipo “o meu é melhor”.

—Você não faz idéia do quanto eu odiava ficar dentro daquele quarto, estou pensando em nunca mais voltar pra lá.

—Imagino que não tenha problemas, você e Morgana podem passar a madrugada acordada juntas.

—Sim, Thomas não teve a mesma sorte. Como ele é o gêmeo problemático tiveram que colocar aquele feiticeiro fortão para ficar de olho nele. -ela debochou dando de ombros.

—Você o chama de gêmeo problemático quando você tentou me matar da primeira vez que me viu. -riu.

—Não tentei te matar! -apressou-se na defesa.

Morgana precisou levar Sam para que Dex desse uma olhada na garota, procedimento padrão, ela havia dito. Aparentemente Dex levaria a sério o monitoramento que tinha que manter com os dois.

—Sabe Levi, estive pensando… -chamou o garoto que havia acabado de se alimentar, haviam marcado de se encontrarem no jardim depois que ele comesse e ele parecia radiante toda vez que se alimentava. -Para quem era o homem mais confiável de Dex, o que sempre era mandado nas tarefas mais importantes e tudo o mais, você se distrai muito fácil.

—Essas não são minhas tarefas, eu só vou para te acompanhar, não levo muito a sério. -ele fez um gesto com a mão fazendo pouco caso do assunto. -São tarefas simples, não preciso lidar com elas da mesma forma que eu lidava com os assuntos que Dex me mandava lidar.

A boate… Nunca pensou que fosse sentir falta daquele lugar quente úmido e exposto.

—O que acontece com a boate enquanto Dex estiver aqui? 

A garota sentiu uma mão pousar no topo de sua cabeça com delicadeza, levantou o olhar para ver o homem de quem falavam sorrindo para si.

—Pensei que tivesse reuniões com a rainha todas as noites, o que faz aqui? -indagou Leviathan abrindo espaço para que o maior se sentasse entre eles na grama.

As estrelas pareciam sorrir para os três, o tempo fresco e agradável e a brisa suave pareciam sussurrar no ouvido de Katherine que esta noite não havia nada com que se preocupar.

—Diminuímos a quantidade de reuniões agora que tenho que ficar de olho no garoto. -ele estralou o pescoço e parecia cansado.

—Qualquer pessoa que tenha que passar algum tempo com ele merece um bom descanso, ele é terrível. -resmungou Leviathan trazendo a tona sua raiva reprimida pelo que Thomas havia feito mais cedo naquele mesmo dia.

—Katherine não concordaria com você, ela vai por pura e espontânea vontade vê-lo.

No fundo ela sabia que Dex não a deixaria fingir que aquela noite nunca tinha acontecido, mas agora ter até mesmo Leviathan pegando no seu pé…

—Você não deveria fazer isso, ele é maluco! -ele acusou a garota fazendo-a rir, Leviathan sempre era tão exagerado.

—Ele não me trata da mesma maneira que trata vocês, ele ainda busca meu perdão.

—Não só o perdão. -murmurou Leviathan enciumado.

Dex gargalhou e segurou os dois num abraço apertado enquanto ria, os dois adoravam passar um tempo com ele, que antes era tão comum agora era escasso, Dex era como um irmão mais velho para Leviathan e um verdadeiro mentor para Katherine, ambos sentiam um carinho e admiração intensos por ele.

—Vocês também deviam subir e descansar um pouco.

Leviathan não dormia, sabia disso. Mas gostava como ele não insistia para que ficassem juntos até a garota dormir, sabia que era o mínimo que ele respeitasse seu espaço, mas ainda estava se ajustando ao pensamento de que agora conseguia se proteger sozinha.

Se despediram de Dex, que disse que ficaria mais alguns minutos no jardim e subiram as escadas em silêncio, Leviathan comentou sobre o livro que estava lendo e que estava gostando, a conversa foi curta, mas gostava de vê-lo animado. Tinha que esperar que Levi fosse embora para que pudesse se trocar e ir para a sala de Allerick receber sua missão.

Vestiu a roupa de combate em tempo recorde assim que se despediu de Levi e fechou a porta, caminhou pelos corredores a passos leves para que ninguém soubesse que estava prestes a sair e logo estava na sala do rei, seu estômago se contorcia de excitação.

—Você veio. -constatou o homem ao abrir a porta, ele não achava que ela chegaria a vir. -Tudo que precisa saber está nesse pergaminho, não demore muito.

O pergaminho não era grande, informações precisas estavam escritas em uma caligrafia apressada no papel meio amassado que ele não se deu ao trabalho de lhe entregar nas mãos como qualquer pessoa decente faria.

Sair do castelo não era difícil, ninguém ousava pará-la ou até mesmo perguntar para onde ia, tinha a liberdade de sair a hora que bem desejava para onde quisesse o que facilitava que conseguisse cumprir tarefas das quais não podia falar para ninguém.

Caminhou por dentro da mata densa ao redor do castelo, de acordo com os dados do pergaminho tinha que ir o mais perto do grande lago possível e achar uma cabana. Ouvia os sapos e os grilos e sabia que estava cada vez mais perto do lago, alguns animais pequenos a observavam enquanto corria, espreitando na escuridão daquela noite de lua cheia.

Fazia algum tempo que não sentia o coração bater dessa forma no peito, estava animada, mas pensou que devia ter se preocupado mais em saber o teor da tarefa, estava indo completamente no escuro, contando com as informações mínimas escritas naquele pedaço de papel.

A cabana era grande, não tinha como errar, as luzes estavam apagadas e o silêncio ali embaixo era assustador, o som dos seus passos na lama era ensurdecedor.

Sentia arrepios subirem por sua espinha, queria correr, mas tinha algo a terminar.

Caiu com força no chão, de costas. De pé ao seu lado estava a causa da queda.

Sua pele era azulada, ele era forte, alto e musculoso. Um homem careca furioso lhe encarava pronto para pisar em sua cabeça como um mero inseto.

—Uma espiã? -murmurou ele, quando outras duas criaturas surgiram da escuridão atrás dele.

Uma mulher de cabelos longos e pretos, pele de um tom azul escuro, com unhas longas e afiadas como agulhas, e um garoto que parecia ter a mesma idade da princesa que carregava um machado apoiado no ombro, sua pele não era azulada pelo o que conseguia enxergar, mas seu cabelo era do mesmo tom de preto denso e escuro como óleo da mulher ao seu lado.

—Não podemos tê-la aqui. -sibilou a mulher caminhando em sua direção.

Sabia o que fariam com uma intrusa.

Puxou o pé do homem e o derrubou no chão quando a mulher partiu para cima de si a jogando na água e arranhando seu braço com suas unhas, quis gritar quando sentiu os dedos da mulher lhe apertarem o ferimento.

Ela parecia pertencer ali, debaixo d’água, lutava de forma natural, o que deixava Katherine numa situação de gigantesca desvantagem, a água do lago era escura, como se a luz da lua não conseguisse penetrar.

A mulher lhe segurou o ombro, enfiando a unha do polegar por dentro de sua pele, fazendo com que Katherine engolisse água numa tentativa de gritar por causa da dor, conseguiu jogar a mulher para fora da água com sua magia e se arrastou para fora da água com o ombro sangrando e tossindo sem parar.

A magia tinha muitas vantagens, mas não conseguia usá-la cegamente, tinha que saber exatamente o que tentava fazer, ou causaria um estrago.

O garoto que antes empunhava o machado segurou-a pelos cabelos enquanto Katherine tentava recuperar o fôlego e a levantou, olhando-a nos olhos enquanto tentava decifrar quem ela era e o que fazia ali.

Katherine segurou a faca que havia colocado em sua coxa e acertou o garoto com força no peito, não havia conseguido acertá-lo da forma que queria pois estava muito zonza, mas ele a soltou enquanto gritava de dor pelo corte longo que ia do peito ao abdômen, Katherine tossia e cuspia água enquanto tentava se levantar, sua visão estava embaçada e sentia muita dor no ombro.

—Maldita, morra de uma vez! -gritou o homem segurando o machado acima da cabeça pronto para acertá-la.

Um braço lhe atravessou o corpo no que ele a encarou com os olhos arregalados e seu corpo lentamente veio ao chão.

Ao rolar para o lado para não ser atingida pelo corpo enorme do homem que caía sem vida sentiu as unhas da mulher lhe rasgarem a panturrilha no que ela a segurava tentando levá-la de volta para a água.

—Use isso. -a fraca luz da lua iluminou suas feições e ele lhe jogou a faca que havia usado anteriormente, parecia calmo em meio a toda aquela ação.

Não tinha tempo para pensar em como ele havia a seguido até aqui e em como ele estava do lado de fora, precisava acabar com aquilo antes que pudesse exigir alguma resposta.

Chutou o rosto da mulher e enquanto ela se recuperava do baque enfiou  a faca em seu crânio com toda a força que conseguiu. As unhas que antes lhe seguravam pela perna se abriram, inúteis.

Se deitou na margem do lago e respirou fundo algumas vezes enquanto tentava montar um cenário em sua cabeça onde aquilo tudo fizesse sentido.

—Você está bem? -Thomas surgiu em seu campo de visão mais uma vez, o rosto sujo com o sangue preto daquelas criaturas, as mãos banhadas nele tanto quanto as suas.

—Vou ficar bem. -se sentou sentindo o corpo tremer de frio, o braço e o ombro não pareciam tão ruins, mas a perna seria um problema no dia seguinte. -Como você saiu? Sabe que não pode estar aqui.

—Pensei que ficaria mais feliz em me ver. -ele a ajudou a se levantar tomando cuidado com o ombro ferido.

Não queria ter que vê-lo ali, não queria precisar da ajuda dele.

—Você está quebrando as regras, sabe o que Dex faria se soubesse que saiu? -levantou a voz tomando certa distância dele antes que conseguisse sentir seu cheiro, não queria ficar perto demais.

—Ele também fez questão de descrever exatamente o que faria comigo caso eu tocasse em você, creio que eu deva esperar por uma recepção calorosa quando voltarmos. -se abaixou para limpar as mãos na água do lago, Katherine queria distância daquela água preta, já não sabia mais o que poderia estar se escondendo ali embaixo.

Não imaginava que Dex teria dito a ele para não tocar nela, mas se lembrou que ouviu o feiticeiro dizer a ele para que mantesse suas mãos para si mesmo, a garota já esperava que o feiticeiro não fosse confiar nele, mas dar ordens tão diretas e tão específicas era quase como se ele soubesse o que se passa na mente do príncipe, talvez fosse mais uma forma de puni-lo pelo que fez.

—Como soube onde eu estava? 

—Senti que algo estava errado, quando olhei pela janela do meu quarto vi você saindo com sua roupa de combate. Não precisei de mais nada. Você faz essa cara quando está fazendo algo escondido, dá pra ler no seu rosto. -ele se levantou e tocou seu queixo enquanto falava, o pensamento de ter Dex lhe punindo de alguma forma parecia não incomodá-lo nem um pouco.

—Você está me tocando muito para quem tem uma punição a esperar por fazer isso. -desviou de seu toque e lhe deu as costas, indo em direção a cabana.

Não havia luz, usou uma chama na ponta de seu dedo para iluminar o interior da velha cabana de madeira. Não havia nada na cozinha, nem no banheiro em nenhum cômodo. Era uma cabana oca abandonada para apodrecer na beira de um lago.

O que Allerick queria com aquilo? Porque tinha mandado que ela fosse até lá?

—O que foi? Esperava encontrar algo aqui? -ele perguntou, caminhando atrás dela, perto o suficiente para incomodá-la.

—Não tenho certeza. -murmurou saindo do velho imóvel.

Não se importava o suficiente para jogar os corpos no rio ou enterrá-los, os deixou para apodrecer onde estavam e voltou a subir a colina de volta para o castelo.

Os guardas pareciam prestes a desmaiar ao vê-la voltando com Thomas em seu encalço, mas Katherine deixou claro que não queria saber nada sobre o assunto.

—Você vai voltar para o seu quarto e eu vou resolver o meu problema. -mantinha o dedo indicador erguido, ele precisava seguir suas instruções ou ela seria capaz de enlouquecer.

—Não vai me dedurar pro seu amigo feiticeiro?

—Tenho coisas mais importantes a fazer do que bancar de babá. 

Na verdade não queria que ele fosse punido quando a ajudou no lago, não seria justo. Então aquilo ficaria entre eles.

Ele não a seguiu, a sala de Allerick para onde tinha corrido estava vazia, nem sinal dele. Sua cabeça estava fervendo, não conseguia imaginar porque ele a mandaria até uma cabana vazia, ele queria que ela desse de cara com aqueles três? 

Não tinha escolha senão ir para seu quarto, tomar um banho e tentar pensar no que havia acontecido, sua perna doía.

—Resolveu seu problema? -Thomas perguntou encostado em sua porta.

—Fui bem específica nas minhas instruções. -grunhiu sem paciência para lidar com ele e sua teimosia, segurou a maçaneta dourada com força tentando pensar numa forma de lidar com ele.

—Pensei que fosse precisar de ajuda com a perna. -indicou com o queixo a roupa completamente rasgada do joelho para baixo em sua perna esquerda com o sangue que escorria devagar dos cortes fundos que ardiam como o inferno.

O encarou e pensou em xingá-lo, talvez devesse, mas aceitaria sua ajuda.

Com ele dentro do cômodo e a porta fechada, pensou que nunca poderia se arrepender tanto de algo, seu corpo inteiro estava plenamente consciente da presença dele ali e todos os seus músculos estavam tensos, se virou para dispensá-lo e dizer que daria um jeito de fazer aquilo sozinha quando ele passou por ela indo até o banheiro como se já conhecesse a planta do cômodo.

—Porque está enchendo a banheira? -sua voz saiu mais alta do que ela queria, mas estava alarmada, porque ele encheria uma banheira para ajudá-la com o ferimento?

—Preciso limpar seu ferimento, a água do lago, a unha daquela mulher, não sabemos se era venenosa, preciso limpar para depois enfaixar, senão não vai conseguir se curar. -explicou debruçado sentindo a temperatura da água.

Se lembrou de quando os papéis estavam invertidos e ela estava limpando os ferimentos causados pelo pai nas costas sangrentas dele dentro da banheira, a delicadeza que teve que ter para tocá-lo naquele dia, desejava nunca mais ver a água da banheira vermelha com seu sangue.

Quase conseguia ver as marcas, que ainda estavam frescas em sua memória, por baixo da camisa branca que ele usava, já suja do sangue negro das criaturas.

Se sentou na beirada da banheira e sentiu a ardência subir por sua perna no que a água tocava o ferimento exposto, segurou o ombro de Thomas num reflexo enquanto fechava os olhos em dor e tentou respirar fundo.

O garoto agradeceu aos Deuses que a princesa havia fechado os olhos, assim que sentiu a mão dela segurar seu ombro com força para aliviar a dor a encarou com tanta intensidade por longos segundos nos quais sabia que se ela visse, o jogaria para fora do quarto. Sabia que ela estava certa em ter precauções perto dele, ele mesmo ainda não tinha conseguido se perdoar pelo que havia feito, mesmo sob feitiço. Mas ainda queria estar perto dela, mesmo que ela ainda estivesse desconfiada.

Se acostumou com a dor depois de algumas vezes em que ele jogou água no ferimento, não conseguiu se segurar e xingou-o duas vezes por impulso, seu corpo estava quente e suava, o banheiro abafado e o garoto terrivelmente próximo segurando seu joelho e jogando água no seu ferimento não ajudavam muito.

—Não acho que estava envenenado, mas ela conseguiu te machucar pra valer. -murmurou analisando o ferimento de perto. -Porque não chamou o garoto para ir com você?

—Não podia. Eu tinha que fazer aquilo sozinha. -se perguntou qual era a expressão no rosto dele enquanto falava de Leviathan, sabia que Thomas muito provavelmente não gostava dele.

—Foi arriscado tentar lutar com três criaturas aquáticas na base de um lago sozinha.

—Não sabia que eles estariam lá. -se encolheu com vergonha de admitir que havia ido até lá sem saber quais riscos corria.

Ele retirou sua perna de dentro da banheira com delicadeza apoiando-a em seu colo enquanto se preparava para enfaixá-la, Katherine sentia seu peito doer em saudade silenciosa enquanto encarava seus fios dourados sujos de sangue se mexerem pra lá e para cá.

—Não devia ter ido se não sabia o que iria enfrentar. -concluiu.

—Você está todo sujo de sangue, sempre foi descuidado assim? Devia tomar um banho. -ignorou-o.

Ela sabia que devia ter tomado mais cuidado, que não devia ter ido sem saber dos riscos, mas não mudaria nada ficar ali discutindo sobre o que já tinha acontecido.

—Pensei que esperaria a poeira abaixar antes de me chamar para tomar banho com você. -provocou e ao receber a reação que esperava, uma Katherine surpresa e com as sobrancelhas cerradas, continuou como se nada tivesse acontecido. -Eu teria sido mais cuidadoso com a sujeira, mas tive que improvisar.

A faixa estava justa em sua perna, o processo de cura se seguiria durante a noite e ela poderia rezar para que tudo estivesse melhor na manhã seguinte ou teria que bolar uma ótima desculpa.

—Obrigada pela ajuda hoje. -agradeceu se apoiando na porta para se despedir dele, seu coração batia no peito como se ela tivesse acabado de correr cinco vezes pelo quarto.

—Não faça isso de novo. -ele pediu, não queria que ela se machucasse dessa forma, mal conseguiu conter o impulso de segurar a mão da garota, que ela escondeu atrás do corpo.

—Você também não, não fique por aí desobedecendo as regras. -acusou.

—Eu não as desobedeceria se você não ficasse fazendo eu me preocupar, não vá numa missão suicida sozinha, pelo menos leve aquele peso leve com você, pode pelo menos usá-lo de isca. -ele deu de ombros, pelo menos ele reconhecia que Leviathan tinha algum valor.

—Vá pro seu quarto logo. -empurrou-o e deu dois passos para dentro do quarto.

Ele riu e lhe deu as costas, caminhando tranquilo por entre os guardas que sabiam bem que ele não deveria estar fora do quarto a esta hora.

Katherine teve dificuldades para dormir aquela noite uma vez que não conseguia acalmar seu coração, mas assim que pegou no sono teve uma das melhores noites de sono desde que havia chego em Tamir.


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