Do You Hate Me? escrita por Srta Who


Capítulo 3
Eu Odeio Selos Demoníacos.




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Capítulo III –

Eu Odeio Selos Demoníacos.

                Shura usou uma chave de portal antes que Yukio chegasse até ela no andar de baixo. Então quando saiu o rapaz não viu nenhum indicio da estradinha pavimentada ao estilo romano que rodeava toda a vera cruz. Mas ainda assim aquele bosque, as grandes árvores despidas de suas folhas e com os galhos cansados e curvados por sustentarem branquíssimos montes fofos, o chão coberto de neve, as pesadas nuvens cinzas que derramavam flocos etéreos por onde passavam... tudo aquilo lhe era familiar, tudo aquilo lhe era estranho como um sonho de uma distante noite de verão que agora é encoberto pelo fino pano da deslembrança. A ruiva suspirou ao seu lado e começou a andar sem dizer uma palavra. E em silêncio Yukio a seguiu.

            O rapaz se sentia mais e mais deslocado cada vez que seus pés afundavam na camada macia que revestia o chão em todas as direções e se perdia para bem além do horizonte que seus olhos míopes podiam enxergar. Como um espírito errante que vagava por uma terra a qual não mais lhe pertencia.

—Posso saber aonde está me levanto? – Yukio perguntou impaciente depois de 15 minutos de caminhada incessante que não os levava a lugar algum a não ser mais fundo no coração do bosque.

—Não, não pode.  – Ela respondeu seca.

            Shura não costumava responde-lo assim, raramente respondia alguém assim. Ela era sempre irritantemente alegre, assustadoramente soturna, ou mortalmente entendida. Tão extrema quanto os totalitários do século XX. Mas quando ela o encontrava um meio termo na voz Yukio a deixava em paz. E dessa vez não foi diferente.

            Depois de mais cinco minutos ele se perguntou como Shura ainda não tinha congelado até a morte usando apenas um curto casaco por cima das roupas usuais.

—Chegamos. – Ela disse depois de mais cinco minutos.

—Você me tirou de casa, e me fez andar 25 minutos na neve e trouxe para o meio do nada? Se superou dessa vez...

—E disse Deus: Haja luz; e houve luz. – A ruiva recitou seguido de um sinal de cruz e então Yukio entendeu porque tudo lhe parecia tão habitual. Eles estiveram ali antes. O santuário da floresta. Onde ficava mesmo? Algum lugar em Hokkaido certamente. Uma de suas primeiras missões e também um pesadelo recorrente.

—Não foi aqui que... – O rapaz murmurou quando as paredes de madeira mofada do velho templo tornaram-se totalmente visíveis a seus olhos. Estava bem mais velho e acabado do que antes, mas ele mesmo também o estava, então não tinha direito algum de reclamar. As paredes brancas estavam gastas e precisavam urgentemente de uma pintura. Aqui ou ali podiam se ver buracos de balas. Balas atiradas por suas mãos trêmulas com oito anos de idade.

—Também estava nevando aquele dia. – Ela murmurou.

—A pior nevasca em anos.

—Aquele velho tinha de ter esquecido a comida e voltado para buscar. – Shura riu amarga. – E esqueceu e perdeu a chave do portal em Vera Cruz!

—Foi uma longa noite. – Yukio comentou com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco tentando aquece-las. – Quantas vezes aquela coisa quase nos matou mesmo?

—Algumas muitas. – Shura tinha sorriso nostálgico estampado no rosto. – Vamos. Não te trouxe aqui para ficarmos do lado de fora. – Ela disse passando pelo Torii que começava a ficar alaranjado com o a idade.

—Por que estamos aqui? – Yukio não moveu um único músculo do lugar de onde estava.

—Está desconfiando de mim? Quantas vezes eu te decepcionei?

—Quer por ordem alfabética ou cronológica?

—Está com medo?

—Não vai conseguir me fazer entrar com essa.

—Sei lá, nostalgia talvez.

—Você? Nostálgica?

—E também. Ouvi dizer que uns garotos estavam rondando por aqui e um deles foi puxado pela perna por alguns metros antes de conseguir fugir. Isso não te lembra algo, medroso? – O professor suspirou derrotado e cruzou o Torii atrás dela. –Bom menino.

            Eles caminharam pela curta estradinha de dois metros de extensão que os deixava ao pé de três degraus. Yukio e Shura subiram um por um até estarem frete a frente com a estrada para o interior escuro.

—Eu estava com medo aquele dia, sabe? Medo de morrer. – Yukio comentou sem se dar conta de que pela primeira vez admitia a Shura seu temor.

—Eu não. Sabia que não morreria aqui.

—Por quê?

            Era diferente. Na época Yukio era tão pequeno que mal chegava ao ombro dela, mas agora era Shura que tinha de erguer o olhar para poder ver o rosto do exorcista mais jovem. Ela deu um sorriso sarcástico que o fez erguer uma sobrancelha.

—Eu nunca morreria com um pirralho chorão do meu lado enchendo o saco. – O mais alto revirou os olhos se reprendendo mentalmente por ter esperado qualquer outra coisa vinda de Shura Kirigakure. – Ainda se lembra da história?

—A maior parte. Achei que tínhamos matado aquela coisa.

—E matamos. Mas outros demônios podem ter tomado o lugar. E agora que os monges estão muito assustados para voltar...

—Eu não estou vendo nada. – Yukio disse pondo a cabeça para dentro do templo.

—Ah anda logo, quatro olhos! – Shura o empurrou para dentro. – Não quero ficar em pé a tarde toda!

—O que quer dizer com ‘a tarde toda’, Shura?

—Você sabe que os demônios de nível alto só aparecem por aqui a noite, afinal estamos numa terra santa. – Ela se sentou no chão. – Devia pedir ao Mephisto para ser rebaixado se não consegue se lembrar do básico!

—Então por que nos trouxe aqui às 15:00 da tarde?! Eu vou voltar para Vera Cruz.

—Hum. Boa sorte.

—O que quer dizer com isso?

—Não conseguimos retirar o selo. Por isso escondemos o templo, não queríamos ninguém preso aqui.

—Você não está me dizendo que...

—Isso mesmo, quatro olhos. Estamos presos aqui dentro até o próximo nascer do sol. – Ela puxou do bolso do casaco um cantil que Yukio imaginava estar cheio de bebida e virou-o na boca.

—Imagino que a história do garoto também era mentira. – A mulher deu os ombros.

—Estavam todos bêbados. Pode ser que sim, pode ser que não. – Mais uma vez Yukio franziu o cenho frustrado e se sentou ao lado dela levantando uma pequena camada de poeira que o fez espirrar um pouco.

—Muito bem. Acho que... como é que se diz mesmo?

—Caiu feito um patinho? – Yukio riu. Era a primeira vez em dias que dava uma risada verdadeira. Tinha certeza de que nunca se livraria daquela mulher. Shura Kirigakure era sua cruz pessoal, e ele sentiu que teria de carrega-la por muitos anos, ou ser carregado por ela. A essa altura o jovem professor já não tinha mais certeza.

—É, caí feito um patinho. E agora estou preso aqui com você pelas próximas horas. Então o que pretendia com isso?

—Já disse. Te tirar daquela maldita cadeira. – Ela deu mais um gole em sua garrafa prateada.

—Por que se importa?

—Porque sou sua única amiga. – A ruiva lhe ofereceu a garrafa, mas Yukio recusou sem nem pensar duas vezes. Nem queria cogitar a possibilidade de ter uma nova dor de cabeça como a do dia anterior. Shura tapou o cantil colocou-o de volta em seu casaco e espalmou as mãos no chão atrás de si, ficando meio deita o bastante para encarar o teto infestado de teias com todo tipo de inseto preso nelas. Ela se perguntou por um momento se eles podiam ver atrás do selo de invisibilidade que Fujimoto colocara no lugar anos atrás.

—Por quê acha isso?

—Eu te conheço. Talvez até melhor do que você.

            Yukio abraçou os próprios joelhos e encarou os passos de ambos serem apagados, floco por floco. Soterrando as pequenas crateras deixadas pelos dois pares de pés. Em algumas horas todos teriam sumido, como se jamais tivessem existido. Como se Yukio Okumura e Shura Kirigakure jamais estivessem estado lá. Ninguém além deles dois e do vento frio que batia em seus rostos e tornava-lhes vermelhos os narizes jamais saberia sobre aquelas horas que os exorcistas passariam confinados no santuário abandonado até porque nenhum dos dois tinha a mínima intenção de comentar sobre isso com qualquer um.

—Bem, eu não sei nada sobre você. – Ele respondeu distante.

—Fui encontrada por Shirou Fujimoto aos nove anos não muito longe daqui. Pode ler sobre isso no banco de dados da ordem. Eu não me importo. Não tive vida antes disso e você sabe o que veio depois então sabe tudo o que se tem para saber sobre mim.

—Não concordo com isso.

...

—Então vamos ficar aqui em silêncio até amanhã? – Yukio comentou quando começou a escurecer. Já deviam passar das 17:00. – Qual é a diferença entre estar aqui ou trabalhando?

—Você ouve o que fala, quatro olhos? Quer ficar careca antes dos trinta? Pare de se preocupar tanto com tudo.

—Alguém tem que que fazer isso. – Sua espinha tão forçada por noites e noites dormindo curvado se sentiu aliviada quando o moreno finalmente decidiu encarar a poeira do chão e se deitar.

—Mas por que você?

—Não me importo de passar dias e noites inteiras sentado atrás de uma mesa. Não escolheria ser médico se me importasse.

—Tá aí uma coisa que eu nunca entendi. Por que médico?

—Achei que sabia tudo sobre mim.

—Não vai responder?

—Não.

—Pirralho.

—Bêbada. – Shura também se deitou depois de alguns minutos. Não se importava em ficar suja de poeira.

...

—Você é uma imbecil, Shura! – Ele praguejou quando seu estômago rocou já a noite. – Devia ter me mandado trazer comida ao invés de minhas armas.

—Pareceria suspeito. E não sei se aqui tem demônios ou não, então as armas podem ser úteis. – Ela lhe parecia irritantemente tranquila.

—É por isso que eu te odeio.

—Porque eu faço o que você queria fazer, mas não tem coragem o bastante?

—Você é como Rin. Os dois são irresponsáveis. Sempre fazem a primeira coisa que vem na cabeça.

—Isso quer dizer que odeia Rin?

—Eu não disse isso.

—Não claramente. – Yukio sentiu algo ser jogado contra seu peito. – Come.

—Chocolate? Achei que você só bebia. – Ele abriu a barra e a partiu em duas, jogando uma das metades de volta para Shura.

—Eu não estou com fome. – O rapaz não respondeu. Estava pensando enquanto comia. Pensando sobre o que treinamento que faria na noite seguinte. Teria o feito hoje se não fosse por Shura. Sempre Shura. Ela parecia ser capaz de ler cada pensamento e cada gesto dele, e aquilo era irritante. Amanhã Yukio descobriria. Descobriria até onde ia a determinação do monstro em seu olho. Só precisava esperar mais um pouco e garantir que não cairia em outro truque dela.

...

            A noite passou lentamente. Á meia noite Yukio tinha pego no sono. Ele descobriu que não aguentava permanecer de olhos abertos além disso sem o incentivo da cafeína. Mas Shura continuava acordada encarando o teto onde uma aranha engolia um pobre inseto pego em suas teias. Ela sentiu o corpo tremer e virou para o outro lado onde o rapaz dormia, o rosto coberto pelos óculos e por uma inusitada expressão de tranquilidade porque, ao menos daquela vez, não tinha pesadelos.

...

            Por sorte não havia nada no templo. E na manhã seguinte os dois voltaram para Vera Cruz. Rin já havia voltado e encheu Yukio de perguntas sobre onde ele esteve ontem à noite inteira. O mais jovem respondeu o mínimo possível e se dirigiu para o banheiro, mas antes de entrar recolheu rapidamente todas as folhas espalhadas no chão e as pôs desastradamente de volta na mesa. Ele guardou as armas e os cartuchos e foi tomar banho, tinha de se preparar para a aula e comer alguma coisa.

Papeis, missões, dar aulas, assistir aulas, missões e papeis. Essa era a vida de Yukio Okumura. A única que conhecia. A única que fazia sentido. Shura o irritava. Ela o tirava de seu pequeno mundo e lhe mostrava um lugar muito mais amplo, muito mais estranho, e muito mais belo. Quem ela pensava que era, afinal? 


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