Hollow escrita por Mileh Diamond


Capítulo 5
Capítulo V


Notas iniciais do capítulo

Oooolha só quem tá aqui!
Era pra ser o último cap, mas tava grande demais, então eu dividi. É mais enrolação isso aqui, mas quem não aaaaaama enrolação (eu odeio mas shhhhh)?
E vamos combinar uma coisa, eu não sei coreografar programas de patinação realistas, ainda mais depois de começar a acompanhar patinação artística de verdade (Misha Ge é o meu bebê. Yuzuru Hanyu? Quem é essa baranga? *leva tiro do fandom*) e me dar conta de que os programas no universo YoI são extras pra caramba. Os caras fazem parecer que qualquer criança (cofcof Yuri Plisetsky com 15 fucking anos) alcança um placar superior a 400. Pior, a inocente aqui acreditava que seria realista alguém colocar 4 quads num programa curto sem morrer :)))))) kill me.
Então os programas aqui levaram em conta a patinação artística real, não a do anime, então pode parecer meio chata se for comparar. Mas dêem um chance ;^;

Boa leitura!
XOXO



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Já dois dias antes do campeonato, Yuri era uma bolha de ansiedade.

Não que ele deixasse isso transparecer bem, mas quem o conhecesse há mais tempo podia ver que algo estava errado. Era diferente de outras vésperas de competições, nas quais ele estava preocupado apenas com a medalha. Não, havia algo mais importante em jogo ali. Yuri tinha uma tarefa a cumprir e era muito mais séria do que um círculo de metal barato. Pela primeira vez em anos, ele sentia que uma competição podia ser divertida, não uma obrigação.

Por isso, ele já estava sentindo dificuldade para dormir no dia anterior à viagem a Chelyabinsk, onde aconteceria o evento. Yakov fez uma boa tentativa em esconder o riso quando notou as olheiras profundas no rosto do patinador quando ele chegou ao aeroporto. Nem podia reclamar, pois era verdade. Quem diria que Yuri Plisetsky ficaria nervoso para uma competição após anos no esporte? É, seria um campeonato memorável.

Todo o processo de voo e chegada ao hotel foi um borrão, mas ele conseguia lembrar vagamente dos paparazzi no aeroporto e repórteres perguntando sobre sua temporada ausente. Ele não estava disposto a comentar nada, tudo que eles precisavam saber fora respondido nos meses em que ele estivera fora. Mas ignorar a imprensa ainda era sinônimo de falta de modos, então tudo que ele disse foi:

— Estou feliz por estar de volta.

Claro que isso apenas trouxe mais perguntas sobre seus novos programas, expectativas para o Campeonato Nacional e o Grand Prix, etc, etc. Sinceramente, se eles quisessem saber algo, assistiriam os malditos jogos.

O primeiro dia em Chelyabinsk foi aproveitado fazendo absolutamente nada no gelo. Depois de voos de cinco horas Yakov deixava seus patinadores aderirem a um treino mais leve, para no dia seguinte destruí-los. Assim ele passou o resto da tarde na academia de ginástica do hotel ao som de uma playlist suspeita que Otabek havia lhe mandado. Afinal, quem raios era Alok?

No dia seguinte ele foi finalmente apresentado ao rinque em que o campeonato aconteceria, sendo um dos primeiros competidores a reservar o espaço para treinos particulares.

Após dez anos na patinação artística, centenas de medalhas e dezenas de vitórias; Yuri se recusava a acreditar que estava tendo dificuldade com um triple lutz.

Era no programa curto, a composição que ele já tivera que alterar tantas vezes porque Yuuri montou tudo usando como base a própria resistência física, tornando algo quase impossível. Ele nunca ficara tão exausto com uma rotina antes.

— A culpa não é do lutz, é do quad flip. - Yakov disse da beirada do rinque, quando Yuri caiu pela segunda vez - Você aterrissa o quad mal, então a entrada do lutz logo depois fica instável. Precisa de mais altura no quad.

Ele assentiu ofegante enquanto prendia o cabelo em um novo rabo de cavalo pela décima vez naquela manhã. O problema era que naquela altura do programa ele já via tudo em dobro por causa dos giros, um quad era um grande desafio. Yakov já sugerira trocar por um triple, mas ele não queria mais alterações. Queria um trabalho fiel à composição de Yuuri.

— Eu preciso sair mais cedo. - Yakov disse se preparando para ir embora - Consegue ficar dez minutos sem quebrar uma costela por teimosia?

— Sim, general. - ele disse já se preparando para começar o programa do zero.

Seu técnico ignorou o sarcasmo e saiu, deixando-no sozinho com o gelo e alguns patinadores que começavam a aparecer.

A posição inicial o colocava bem no centro do rink, com os braços levemente erguidos ao seu lado e o rosto virado para a esquerda, fitando o chão. Lembrava um pássaro prestes a voar, afinal o nome da música era literalmente "Canção para o pequeno pardal".

Em sua mente, a música começou e ele iniciou a apresentação. Erguer os braços, um deslize para trás, dois giros enquanto desenha um círculo em volta do ponto inicial, para finalmente ganhar velocidade e patinar pelo rinque inteiro. Tudo isso com uma face séria, quase arrogante, de quem sabe que os outros são inferiores.

Era uma apresentação para ele e sobre ele. Ninguém conhece Yuri Plisetsky como ele próprio, então ele sabe o que está fazendo ao se representar no início da carreira. Aquela arrogância estava lá e quando mais novo nem tentara esconder. Não havia ninguém melhor que o jovem prodígio.

Então as coisas começaram a ficar mais complicadas na transição para a categoria sênior, que era representada pela repentina dramaticidade da música. Yuri agora tinha o cenho franzido enquanto se preparava para um triple axel, no momento transformado em double para ele guardar forças para a combinação quad-triple que tanto estava lhe cansando.

Era uma fase de confusão e incerteza, aqui representada por espirais que não levam a lugar nenhum e olhares ao redor de quem está perdido, mas se recusa a pedir ajuda. Yuri ignora os giros que viriam a seguir na nova etapa da música e improvisa uma sequência de passos que deve combinar o suficiente com o tema "incerteza".

Mais círculos, mais passos, mais confusão. O personagem - o pardal - quer fugir, voar para longe daquela situação assustadora. Era tanta coisa nova, tanta coisa para aprender, o sentimento de que ninguém acredita em você.

Aqui vinha o quad flip. Yuri respirou fundo enquanto se preparava para o salto. O impulso foi dado. Um giro, dois, três, quatro, quatro e meio...

Uma aterrissagem perfeita. Sem perder tempo ele impulsionou para o triple lutz. Teve altura o suficiente e ele tocou o chão com apenas um leve tremor na lâmina.

O russo parou com um sorriso, limpando o suor da testa com a manga da jaqueta. Ok, nem tudo estava perdido. Ele ainda podia fazer aquilo.

Palmas desconhecidas chamaram sua atenção. Procurando pela fonte do som, ele reconheceu o rosto, mas o cabelo não combinava muito...

— Taline? - ele perguntou um pouco surpreso. Não esperava que a morena aparecesse com mechas azuis.

— Yuri! - nem teve tempo para pensar muito assim que saiu do gelo, pois logo foi envolvido em um abraço adolescente de pouco mais de 1,60 m de altura.

— Oi? - ele disse um pouco confuso, mas ainda com um sorriso.

— O clã está completo agora. - disse mais uma voz familiar se aproximando, dessa vez masculina - Anatoly pode parar de chorar finalmente.

— Claro, mas eu não tenho um pôster de Plisetsky no quarto, Evgeni. - Anatoly se defendeu.

Aquele era certamente um grupo incomum. Quase na mesma época em que Yuuri veio para a Rússia, Victor convenceu o loiro de que precisava fazer mais amigos. O problema era que isso é complicado quando se é um dos mais novos na categoria adulta, então ele esqueceu a ideia de vez. Mas alguns eventos peculiares envolvendo uma competição de Just Dance, repórteres ingleses e uma noite louca com muito, muito bolo (porque quando 3/4 do grupo é menor de idade apenas isso pode animar uma festa), Yuri os considerava amigos. A distância não ajudava muito o contato, já que cada um era de uma cidade diferente, mas o esporte une as pessoas. Normalmente os encontrava em eventos regionais, mas à medida que seus colegas melhoravam seu desempenho eles se esbarravam em circuitos internacionais. Taline era a mais nova com 16 anos, seguida de Evgeni com 17 e Anatoly com 22. É, o último sofria por ser teoricamente o mais responsável da gangue.

— Sentimos sua falta. - Taline disse assim que o soltou - Nem nos shows de patinação você apareceu.

— Sim, ficamos com medo de que a fratura pudesse te aposentar mais cedo. - Anatoly disse com o cenho franzido.

— Eu estou bem, mas resolvi cancelar os shows de patinação nessa temporada para focar nos treinos e... outras coisas. - ele disse dando de ombros - Estou de volta agora.

— Ainda bem, porque aqui é um tédio sem você. - Evgeni comentou cruzando os braços - Os caras acham que só porque você não participa de uma temporada eles podem ser o próximo Stephane Lambiel.

— Ele só está assim porque Sergei Braginsky de Omsk foi convocado para as Olimpíadas no seu lugar, mas ele estava certo de que seria ele. - Taline denunciou em voz baixa, com a mão escondendo a boca.

— Eu já superei isso, ok? - Evgeni fechou a cara - Mas é muito chato. Falam de você como se tivesse morrido. Espero que se saia bem e cale a boca desses babacas.

— Uma recepção bem calorosa. - Yuri revirou os olhos. Já esperava algo assim. - Tá tudo bem. Tenho boas expectativas para esse ano.

Os quatro continuaram conversando por um tempo e atualizando Yuri sobre os dramas que ele perdera nas férias. Por um momento, toda a tensão da competição que chegaria se dissipou.

Mas tudo que é bom dura pouco.

— Olha só. - uma voz familar com o irritante sotaque de Vladivostok chamou sua atenção - Se não é a nossa querida Ice Fairy. Como está o braço, Plisetsky?

Yuri virou-se com a tentativa mais falsa de sorriso desde que chegara na cidade. Ele não tinha tempo para essas brigas de criança.

Mas ele tinha uma particular antipatia por quem ainda se referia a ele como "Ice Fairy". E era um sentimento duplo se a pessoa fosse Maksim.

Maksim Vorobyov tinha a mesma idade de Yuri e a mesma personalidade arisca. Não era surpresa o fato de eles terem sido rivais quando crianças, mas era uma rixa que deveria ter acabado quando Maksim parou de competir na categoria individual aos 13 anos. É, deveria. Mas toda vez em que se encontravam, algum tipo de discussão ocorria. Podia contar as vezes em que Victor impedira Yuri de dar um soco no outro patinador, também. Porém, ele não estava afim de quebrar a cara do ruivo cheio de sardas que sempre fora uma pedra no sapato em sua infância.
 

Ele não deixaria barato a provocação, obviamente.

— Twizzle Max! - ele usou um de seus sorrisos para entrevistas, o pior de todos - Está muito bem, obrigado. Legal ver que passou das classificatórias regionais. Ouvi dizer que Rozanova te deixou, sinto muito. Vocês formavam uma bela dupla.

O apelido fez Maksim franzir o nariz, em sua melhor impressão de príncipe mimado que ele sempre foi. Vorobyov era conhecido por colocar muitos twizzles em seus programas para tentar compensar a falta de saltos, por isso o nome. Foi algo que ele só pôde mudar após entrar na competição em pares, da qual estava saindo após cinco anos, justamente na volta de Yuri. O destino tem essas coisas.

— Ninguém deixou ninguém, Plisetsky. Decidimos que seria o melhor para ambos se nos separássemos. Ela arranjou outro parceiro e eu voltei a competir sozinho.

Tenho certeza de que ela fugiu de você, Yuri pensou, mas optou por um comentário menos abrasivo:

— Nesse caso, bem vindo de volta, Max. Vai ser ótimo competir contra você novamente.

— Digo o mesmo, Yuri. Acho que você deveria apreciar minha presença mais. Afinal, você não tem uma competição de verdade desde que Victor parou de competir.

Yuri não estava gostando do rumo que a conversa estava tomando, mas não iria fugir. Decidiu por uma postura mais modesta.

— Obrigado, mas não é verdade. Eu não ganho minhas batalhas sem uma boa luta. Evgeni, por exemplo, - ele apontou o outro patinador que apenas observava a cena - já quebrou um recorde meu no programa curto. Anatoly tem uns dos quads mais polidos da Europa. Taline não compete com a gente, mas se o fizesse seria uma rival assustadora com sua sequência de saltos. - todos os que foram citados arregalaram os olhos, dois deles coraram - Eu não sou intocável e não gosto quando me representam dessa forma.

Maksim arqueou as sobrancelhas e sorriu no que pareceu sarcasmo, cruzando os braços.

— Yuri Plisetsky está sendo modesto? Eu acho que não, mudanças assim não acontecem tão rápido. A menos que... - ele pendeu a cabeça pro lado - Sente-se inseguro? Eu ficaria, no seu lugar. Agora você não tem mais Victor para te proteger.

Yuri cerrou os punhos.

— O que quer dizer, Maksim?

— Não banque o bobo, Plisetsky. Você se aproveitava da atenção que Victor te dava pra se livrar de problemas. - ele disse obviamente se referindo às vezes que Victor apartara suas brigas - Ele até preparava os programas pra você. E depois veio o cara de quem ele gostava, o outro Yuri. Katsuki, não é?

— Eles eram casados, Maksim. Pelo menos isso você pode acertar. - ele resmungou sem a menor tentativa de ser educado agora.

— Tanto faz, apenas mais um pra te bajular. - ele deu de ombros - E você aproveitou. Ora, quem não gostaria de ter dois patinadores de elite por perto? Te ajudando, te treinando. Você tinha as vitórias dadas numa bandeja. Não me surpreenderia eles te deixarem ganhar de vez em quando só pra fazer o bebê deles feliz.

— Maksim! - Taline puxou o braço do ruivo - Está sendo ridículo, pare de dizer essas coisas!

— E eu estou mentindo? Agora que Nikiforov e Katsuki morreram, Yuri vai ter que trabalhar sozinho pra vencer. - o garoto franziu as sobrancelhas - Era assim na categoria Júnior e nunca deveria ter mudado. Plisetsky era um rival respeitável porque nunca dependeu de ninguém. Agora é um garoto mimado que se acostumou com as regalias de ser o favorito dos melhores patinadores do mundo. E quer saber? Foi ótimo que aqueles dois tenham saído de cena, porque agora você vai ser obrigado a crescer.

Yuri não viu quando seu punho saiu em direção ao rosto de Maksim. Ele também não viu quando Anatoly o puxou para trás e Evgeni entrou em sua mira, impedindo-o de socar o ruivo. Depois ele agradeceria o ato, porque do contrário ele estaria bem encrencado. Agredir competidores estava fora de questão.

— Cala a boca, seu idiota! - ele gritou com toda a raiva que estava guardada dentro de si desde o momento em que o outro começou a falar - Cala a merda da sua boca. Se você falar de Yuuri e Victor assim de novo na minha frente, eu vou acabar com você. Eles eram meus amigos, minha família. Eles não me mimavam, eles cuidavam de mim. É o que amigos fazem. Você não sabe nada sobre mim e sobre o que eu passei, Maksim. Eu não era independente na categoria Júnior, eu simplesmente estava sozinho. Então vê se pensa antes de falar, porque eu nunca tive nada facilitado pra mim e você sabe disso! - ele mal sentiu as lágrimas quentes rolando pelas suas bochechas enquanto um grupo de espectadores se formava ao redor e Anatoly e Evgeni o faziam se sentar em um dos bancos. Maksim se tornava apenas uma forma borrada em sua visão à medida que se afastava.

— Yuri, se acalme, ok? Não precisa ficar nervoso agora. - Anatoly estava em choque e visivelmente nervoso. Nem parecia ser um dos mais velhos no ambiente no momento.

— É, Maksim é um estúpido, mas quebrar a cara dele só vai te colocar numa pior. - Evgeni disse e olhou para trás - Gasparyan já tirou ele daqui. Pobre Taline, é muito nova pra presenciar esses escândalos. E agora tem esse bando de curiosos. Onde está o seu técnico?

— Não está aqui agora. - Yuri disse esfregando os olhos, a respiração ainda ofegante - Eu...Eu estou bem, não precisa chamar ninguém.

— Yuri, você está chorando, isso não é "estar bem". - o moreno comprimiu os lábios - Sinto muito que você teve que ouvir Maksim dizer aquilo sobre Victor e Katsuki. Foi uma perda muito grande, você deve estar se recuperando. Ele não tinha o direito.

— É sério, eu já estou melhor. Meu horário de treino já acabou, de qualquer forma. - ele disse se levantando, uma frieza e impassibilidade familiar em seus olhos - E eu não posso perder a cabeça toda vez que ouvir algo que me ofende. Se Maksim tiver mais alguma besteira pra falar, que venha então. - ele começou a se afastar dali, apenas para parar e olhar para trás - Obrigado por me ajudarem. Realmente seria um problema se eu quebrasse o nariz de Vorobyov, e vocês me seguraram. Se virem Taline hoje de novo, digam que eu sinto muito por fazê-la presenciar essa briga.

Os dois sorriram e Evgeni foi o primeiro a falar:

— Não tem problema, Yuri. Competidores deveriam cuidar um dos outros, é mais justo. Se precisar de alguma coisa, sabe onde nos encontrar.

Ele sorriu e arriscou um pequeno aceno, antes de sair do lugar sob os olhares julgadores dos que haviam presenciado sua explosão.

Ele deveria ter previsto isso. Alguém com coragem o suficiente para dizer na sua cara tudo o que o mundo estava pensando: ele não era nada sem Victor e Yuuri. E o jeito que Max havia falado deles, como se fossem dispensáveis, como se estivessem ali apenas para agradar a Yuri... aquilo fez seu sangue ferver.

Não demorou muito para ele pegar suas coisas no vestiário e voltar pro hotel. Seu cronograma previa duas horas de descanso e almoço antes de treinamentos de dança com Lilia. Com sorte seria o suficiente para esfriar a cabeça e se recompor para não parecer que esteve à beira de um colapso nervoso.

O hotel era a cerca de três quadras do rinque, de forma que foi andando de cabeça baixa, um ocasional levantar de olhares para verificar as ruas que atravessava. Não estava disposto a exibir seus olhos vermelhos de choro para o mundo. Ele estava satisfeito por não ter chorado demais e parecido uma criança, mas ainda tinha uma imagem a manter.

Os funcionários na recepção do hotel não deram muita atenção a ele, a viagem do elevador até seu quarto parecera uma verdadeira eternidade. Ele não percebeu que estava segurando a respiração até fechar a porta da suíte e expirar pesadamente.

Duas horas para se organizar e quem sabe comer alguma coisa. Yuri respirou fundo enquanto retirava algumas mechas teimosas de seu rosto. Ugh, aquele cabelo realmente estava muito longo.

O patinador deixou-se cair na cama mais que confortável do hotel e ficou olhando para o teto.

Por que perdera a cabeça daquele jeito? Parecia óbvio, qualquer um se sentiria ofendido se alguém falasse mal de seus falecidos amigos. Mas havia mais coisa ali. Algo que Yuri não esperava.

O garoto estava preparado para um confronto diferente. Alguém que dissesse que dali em diante ele só ganharia porque Victor e Yuuri não podiam mais competir. De certa forma, era uma conclusão estúpida. Victor já havia se aposentado antes do acidente, sendo Yuuri o único que ainda competia. O japonês era certamente uma boa concorrência, mas Yuri já o superara um punhado de vezes. Quem fizesse uma análise cuidadosa, veria que a verdadeira preocupação de Yuri deveria ser Otabek e talvez Leroy.

Mas ele não estava preparado para a visão de Maksim sobre o assunto. Victor e Yuuri não seriam um obstáculo, mas um apoio. A única coisa que o permitiu ter bons resultados nos últimos quatro anos. Novamente, uma conclusão estúpida, pois havia muitos fatores que o ajudaram desde o momento em que começou a patinar. Mas por quanto o casal era responsável em sua jornada? O quão dependente ele se tornara dos dois?

Retirando seu celular do bolso, seus dedos quase que automaticamente foram para o aplicativo de mensagens à procura de Otabek. Mas concluiu que o outro patinador tinha preocupações mais importantes dos que os dilemas do russo, então desistiu de contatá-lo. Porém, se Beka descobrisse que estava lidando com seus problemas sozinho de novo, ele estaria encrencado. O cazaque conseguia dar medo quando queria.

Ao invés disso, ele foi para a galeria de fotos após alguns momentos de hesitação. Incluía tanto as fotos de sua própria câmera quanto as em que ele fora marcado nas redes sociais.

Começou pelas mais recentes. Semana passada Mila havia postado uma foto em que ela estava perfeitamente arrumada para uma campanha publicitária num estúdio, enquanto ao fundo tínhamos um Yuri com uma rosquinha gigante na boca e um suéter de Natal manchado (Mila agora o usava como motorista particular desde que conseguira uma carteira de habilitação, então ele a levara até o fotógrafo). Péssimo, obviamente.

Mais alguns dias de postagens. Uma imagem de um jantar com Mila, Yakov, Georgi e outros patinadores. Era importante pois era uma visita de Georgi, que agora trabalhava como técnico para patinadores da categoria Júnior em Novgorod. Ele dizia gostar do trabalho, sempre teve um jeito melhor com crianças.

Mais semanas no passado. Ele acaba em uma foto dele tirada por Otabek, quando viajou para o Cazaquistão. Um Yuri muito concentrado e com o braço na tipoia estava destruindo o cazaque em uma partida de Mario Kart. Obviamente seu amigo guardaria uma recordação de sua trágica derrota. Beka tinha tendências sadomasoquistas.

Apesar da memória engraçada, Yuri moveu-se com cautela a partir daqui. Pois antes da viagem ele passara um bom tempo sem atualizar suas redes sociais, o que significava que as próximas imagens seriam imediatamente anteriores ao acidente.

Como esperado. Yuri comprimiu os lábios ao ver a cena familiar, mas ao mesmo tempo tão incomum no último ano. Ele com sua carranca usual, headphones, capuz na cabeça e jogando no celular. Ao seu lado, na poltrona vizinha do avião, Victor dormia de boca aberta com uma máscara de dormir. Ele era o único dos três que não morria por causa de jetlag.

 

"— Se quiser, eu te corto da foto. - Yuuri disse, da fila de bancos oposta, abaixando o celular - Só precisava de provas de que Victor é ridículo dormindo.

— Ele é ridículo de qualquer forma. - Yuri resmungou ao mesmo tempo em que perdia o jogo pela vigésima vez naquele voo - Não precisa cortar. Aposto que é o meu melhor ângulo.

Yuuri riu."

O russo fechou os olhos, afundando o rosto em um travesseiro. Aquele era o voo que os levara para Zurique. Impressionante como coisas simples ganham um significado enorme após um único evento.

Algumas fotos depois, uma em que ele estava sorrindo. Era algo raro, mesmo que isso tenha mudado muito com os anos. Mas o motivo valia a pena. Demais.

A foto era de Yuri sorrindo maleficamente apontando as marcações na parede de Yakov, ao lado de um Victor não muito bem-humorado. Do mesmo jeito que pais marcam as alturas dos filhos enquanto crescem, Yakov fazia isso com seus patinadores, sem exceções. Marcaram a altura de Yuuri também, quando ele veio para a Rússia. Quando o espaço ficava muito poluído, ele substituía o papel de parede, obviamente guardando o pedaço com as inscrições. E aquele era um dia histórico, pois Yura havia ultrapassado a altura de 1,80 m de Victor com seus impressionantes 1,81 m. Agora uma canetinha permanente marcava uma linha com seu nome e altura, logo acima da marcação opaca de Victor.

"— Parabéns, você oficialmente ultrapassou Vitya. - Georgi disse fazendo um risco logo acima de sua cabeça, enquanto ele mantinha a postura contra a parede.

— Sério? - ele virou-se rápido para confirmar a informação. Estava ali, claro como água. Não pôde evitar o sorriso vitorioso em seus lábios ao mesmo tempo em que pulava socando o ar - ISSO! Eu disse que aquele velho não iria ficar mais alto do que eu! Ouve isso, Gosha? É o som do respeito. Finalmente vão me levar a sério aqui de agora em diante. - como que se lembrando de algo naquele momento, Yuri arregalou os olhos - Oh céus, eu preciso esfregar isso na cara de Victor agora mesmo. Ele ainda está no rinque?

— Acho que sim, mas acho que ele e Yuuri vão embora em breve. - o moreno segurou uma risada ao ver a animação do mais novo - É melhor você correr.

E ele correu. Correu com toda a sua energia de adolescente com mais de 1,80 m de altura. Medalhas eram importantes, mas nada melhora o humor de um homem do que saber que era maior que seu oponente. É o fim de uma era negra de apelidos fofinhos.

— Victor! - Yuri o chamou quando Yuuri estava no meio de um quad Salchow e Victor estava do lado de fora da pista anotando algo numa prancheta - Venha comigo, é uma emergência. - ele disse puxando o mais velho.

Victor, ao perceber que não era uma emergência de verdade, reclamou:

— Yura, eu estou ocupado. Eu posso te dar atenção outra hora, agora meus olhos são só para Yuuri.

— Vocês são casados, seus olhos sempre são para Yuuri. - ele disse bufando, mas preferindo jogar a carta do mocinho humilde e necessitado - Juro que eu ficaria muito satisfeito se você calasse a boca e me seguisse agora. Então depois pode passar o resto da sua vida bajulando Katsuki, igual aos votos matrimoniais.

Victor arqueou uma sobrancelha, incerto sobre a repentina animação do garoto. Yuuri patinou até a entrada do rinque.

— Pode ir, Vitya, vou terminar as coisas aqui por hoje. Yurio parece muito ansioso e isso não é algo que se vê todos os dias. - o moreno comentou o óbvio enquanto observava o loiro com uma expressão divertida.

O mais velho dos três deu de ombros e deixou a prancheta de lado.

— Ok. Mostre o caminho, kotenok.

Ignorando o apelido, Yuri arrastou Victor até a sala de Yakov. No meio do trajeto o platinado comentou:

— Se for sobre o estoque secreto de vodca que Yakov mantém no duto de ventilação, eu já sei. Descobri isso aos 16.

— Hein? - ele franziu o cenho, visivelmente desconhecendo aquela informação - Não, não. É algo muito mais legal. Você vai querer arrancar os poucos cabelos que ainda tem.

Nikiforov sorriu, mas não disse nada, deixando o adolescente conduzi-lo até a grande notícia.

Já no escritório de Yakov, Yuri ergueu as mãos dramaticamente para mostrar o novo risco na tabela de alturas. Georgi já havia ido embora.

— Ta-rãm! Eu, Yuri Nikolaevich Plisetsky, sou oficialmente mais alto que a lenda viva, Victor Mikhailovich Katsuki-Nikiforov. - ele disse com o seu melhor sorriso de publicidade, enquanto esperava uma reação.

Dizer que Victor estava feliz era uma mentira. Ele tinha aquele sorriso falso de quando perguntavam se a cor do cabelo dele era natural.

— Nossa. - ele disse prolongando a palavra - É realmente a notícia mais relevante do século. Onde estão os paparazzi? Talvez devêssemos chamar a BBC.

Yuri riu e caminhou até o técnico na ponta dos pés, apenas para deixá-lo mais alto.

— Awn, não fique assim, Vitenka. É normal as pessoas ficarem mais baixas à medida que envelhecem. Mas é tão boa essa nova visão de mundo. - ele arriscou apoiar o braço no ombro de Victor - Até posso ver a sua careca aumentando daqui de cima.

— E eu posso ver um gatinho desaprendendo doubles porque não está acostumado com a nova altura. - Victor retrucou no seu melhor estilo passivo-agressivo - Diga-me, como estão seus triple axels? Da última vez que chequei, sua aterrissagem não era satisfatória. E era uma de suas especialidades.

O loiro revirou os olhos, afastando-se do outro de braços cruzados.

— É só questão de adaptação. Não é como se eu fosse esquecer como se patina só porque fiquei maior.

— Oh, você se surpreenderia. - Victor bagunçou os seus cabelos, como fazia desde que ele tinha vários centímetros a menos - Honra ferida à parte, estou orgulhoso de você, Yura. Está crescendo mais rápido a cada dia. Logo será um patinador mais lendário do que o próprio Victor Nikiforov.

— Não seja tão dramático, velhote. - ele murmurou desviando o olhar, mas não contendo o sorriso de satisfação em seus lábios.

Talvez fosse infantil ficar feliz por uma conquista tão boba quanto a altura, mas ele gostava de se superar. Melhor ainda quando podia superar Victor. Não é como se sua vida girasse em torno de ser melhor que o mais velho, mas eram hábitos difíceis de se quebrar. O constante desejo de vitória. A validação de seus esforços.

Victor fez menção de sair pela porta.

— Se já terminou de humilhar seu pobre colega de rinque, eu preciso voltar para o meu marido...

— Não, espera. Me ajuda com a foto. - Yuri disse retirando o celular do bolso - Isso vai pro Instagram. Mil vezes melhor que uma medalha."

Yuri não conseguiu evitar o pequeno sorriso em seus lábios com a lembrança. No final ele realmente tivera um trabalho tremendo para se adaptar à nova estatura, mas valera a pena no final. Faria isso mil vezes novamente apenas pra ver a cara de ligeiro desgosto de Victor.

Faria muito mais para ver qualquer expressão do mais velho agora, na verdade.

Mais fotos, mais memórias. Tinha certeza de que o que estava fazendo não era muito saudável, emocionalmente falando. Dra. Medvedeva já alertara sobre sua tendência de se martirizar e terminar em um estado pior que o anterior. E ele aqui chamando Otabek de masoquista.

Chegou a uma foto com os três. Quem conhecia Yuri podia identificar claramente a época em que foi tirada, pois ele mal alcançara Yuuri em altura e ainda estava em sua fase punk, a julgar pela expressão mal-humorada. Em sua defesa, aquele terno era desconfortável. E Victor e Yuuri não paravam com aquela conversa enjoadamente romântica dos dois, pior que nos outros dias.

Era o casamento dos Katsuki-Nikiforov.

 

"Uma hora ele estava roubando docinhos, na outra ele era empurrado para um pequeno palco para um discurso.

Ele não preparou nada. E fez questão de mencionar isso quando falou às centenas de convidados no casamento.

No palco estavam apenas um microfone e os noivos sentados em um canto ao lado de uma pilha de presentes, a maioria flores.

Segurando um buquê de rosas brancas que Mila havia empurrado em sua mão, Yuri olhou para os olhares expectantes dos convidados, até parar no casal que era o centro das atenções ali.

Disfarçando o leve rubor de suas bochechas, Yuri revirou os olhos e suspirou tediosamente.

— Antes de mais nada, Babicheva me avisou sobre esse discurso há quinze minutos, então não sairá nada bonito. - risadas da plateia - Mas tem algumas coisas que eu queria falar, então acho que vai servir.

Trocando o peso nas pernas, ele olhou para as flores antes de fixar o olhar nos recém-casados. Eles eram a parte que realmente tinham que ouvir aquilo, então não estava muito preocupado com uma plateia. Sendo encarado por aqueles olhares felizes e ligeiramente ansiosos com que já acostumara, Yuri começou:

— Victor e Katsuki. Eu não vou mentir pra vocês, saberiam só de olhar pra mim enquanto falo. Então serei sincero: eu não acreditava que vocês dariam certo juntos. - todo o salão estava silencioso, ele continuou - Tenho certeza de que não era o único a pensar assim. Vocês dois são muito diferentes. Victor é invasivo e confiante, Yuuri é tímido e sofre com inseguranças. Poderia passar horas aqui listando o que vocês têm de opostos. - uma pausa, apenas para considerar o que diria a seguir - Mas só precisaram de uma coisa em comum para fazerem dar certo: o que sentem um pelo outro. Cada um saiu de sua zona de conforto para dar uma chance a essa pessoa nova em suas vidas. E mesmo quando as coisas saíam meio feias, vocês não desistiam, porque não queriam que isso acabasse. - ele comprimiu levemente os lábios. Tanto Yuuri e Victor olhavam para ele impressionados, e ele estava quase certo de que Victor estava chorando. E a mídia achando que Yuuri era o mais sensível.

Voltando ao seu discurso, o loiro arriscou um pequeno sorriso.

— Acho que vocês foram o melhor exemplo de amor que eu já tive. Amor não é uma vida de coisas fofas e felizes como tentam mostrar pra gente. Não, há momentos ruins no caminho. Alguns que te fazem questionar se o que sente é verdadeiro. Mas você luta todos os dias contra esses problemas porque ama uma pessoa. E uma vida sem ela, mesmo que sem problemas, não faz o menor sentido. - ele recuperou um pouco de seu fôlego. Wow, nem sabia de onde havia tirado tanta coisa sentimental pra dizer. A pior parte é que havia pelo menos uma câmera para guardar o momento e usar contra ele no futuro.

Decidindo que ele acabaria ficando emotivo se prolongasse a fala demais, Yuri concluiu:

— Sendo assim, obrigado, Yuuri Katsuki-Nikiforov e Victor Katsuki-Nikiforov, por terem me ensinado um pouco sobre o amor. Eu espero que vocês estejam juntos até o fim, sendo felizes, bobos e grudentos como são hoje. - ele disse voltando à redoma de indiferença que era sua armadura durante seus anos adolescentes.

Vários aplausos da plateia enquanto ele entregava o buquê a um Yuuri boquiaberto. É, nem ele acreditava que havia dito tudo aquilo.

— Yurio... Isso foi... - Yuuri parecia não ter palavras o suficiente para se expressar.

— Sério que você pensa tudo isso sobre nós? - Victor foi o primeiro a falar, umas duas lágrimas escorrendo pelo seu rosto - É isso que significamos pra você?

Yuri bufou cruzando os braços e desviando o olhar, numa tentativa falha de esconder suas bochechas coradas.

— Eu não conseguiria bolar um discurso pomposo em tão pouco tempo, velhotes. Acreditem no que quiserem.

— Awn, Yuri...

Ele nem viu quando foi atacado por um abraço, o clássico "sanduíche de Yurio" que assolava seus pesadelos. E apesar do contato físico ser uma coisa que lhe dava coceira, ele podia admitir que não era tão ruim assim.

— Yuuri, nosso gatinho está crescendo. - Victor disse com um bico sem soltar o mais novo - Isso não é bom. Significa que eu estou ficando velho. As rugas, Yuuri. As rugas.

— Agora que você percebeu, Nikiforov? - o loiro resmungou tentando se soltar do abraço - Ou tenho que dizer Katsuki-Nikiforov daqui por diante?

— Chame como quiser, Yurio. Afinal, há dois Katsuki-Nikiforov. - Yuuri disse sorrindo, sendo o primeiro a soltá-lo. Ele ainda tinha a mão sobre os cabelos loiros do mais novo - O que você disse foi muito bonito, e corajoso também. Obrigado.

Ok, ele ainda tinha uma imagem de punk a manter, então tinha que sair dali antes que a cena ficasse emotiva demais.

— Certo, se já acabaram de ser nojentos, eu tenho que...

— Espera, essa ocasião é especial! - disse Victor segurando-no no lugar - Erik, por favor, uma foto."

 

Yuri podia não estar certo, mas talvez naquele dia ele começou a mudar. Tornou-se mais sensível, menos irritável, mais humano. Ser mais empático tinha seus problemas. A ideia de se abrir mais e deixar que os outros vissem suas fraquezas tomava muito de si. Era cansativo, quase assustador. Mas ele tentava, pois uma vida de isolamento era mais dolorosa que uma de vulnerabilidade.

O último tipo tinha as suas farpas e hoje fora a prova disso. Maksim identificou um ponto fraco, atacou e ele se deixou levar. Mas o que era mais arrepiante era a ideia de falhar agora. Ele tinha a confiança e habilidades para fazer uma apresentação que fizesse jus ao nome de Victor e Yuuri. Mas o "e se?" do fracasso não o abandonava. E se não fosse o bastante? E se ele fosse péssimo? E se a mensagem não fosse compreendida? E se, e se, e se...

Seus pensamentos foram interrompidos por notificações em seu celular. Saindo da galeria, ele visualizou as mensagens. Eram de Georgi.

Yuri arqueou uma sobrancelha enquanto via sobre o que se tratava.

        > > Hey.

> > Estou sabendo sobre Maksim.

> > Yakov sabe?

 

...

 

> Não, até onde eu sei.

 

> > Entendi. Onde você tá? Já almoçou?

 

Checando o horário, Yuri constatou que faltava pouco mais de uma hora para seu intervalo acabar. E ele ainda não comera nada. É, péssima ideia para um atleta.

 

> Estou no hotel. Não almocei.

 

> > Quer companhia?

> > Posso levar comida chinesa.

Ele e Georgi nunca foram os melhores em conversa entre os dois. Havia muitas outras pessoas que ele preferia que estivessem ali com ele no momento (Ok, talvez só umas duas. Ou três.). Mas ele não estava no direito de escolher, sinceramente.
 

> Okay.

 

Após mandar o endereço do hotel, bem como o número do apartamento, Yuri deixou o celular de lado e esperou. Georgi era uma figura peculiar. Dramático demais, talvez. De certa forma, ele e Victor eram bem parecidos, mas Georgi era mais melancólico. Não conseguia lembrar de um programa seu que contasse uma história "feliz". Raiva e tristeza eram temas recorrentes, no entanto.

Duas batidas na porta o trouxeram para a realidade. Ao abri-la foi recebido com a visão familiar, mas estranha ao mesmo tempo, de olhos azuis e um sorriso acolhedor.

— Oi, Yura. - ele ergueu uma sacola plástica com a logomarca de alguma rede de restaurantes - Espero que goste de yakisoba.

O loiro apenas deu de ombros deixando o mais velho entrar no quarto.

Os quartos que Yakov agendava estavam longe de serem os mais luxuosos, até parecia que eles ainda estavam sob o regime soviético. Mas esse tinha o mínimo de conforto para possuir, além da cama, uma mesa com duas cadeiras em um canto. Os dois sentaram-se em silêncio, Georgi empurrando os pacotes em sua direção e encorajando-no a se servir.

Enquanto abria as caixas com macarrão, legumes e molhos especiais, Yuri observou pelo canto do olho a forma de seu ex-concorrente. Um ano desde que Popovich se aposentara fizera pouco para mudar sua aparência. Aos trinta anos ele continuava o mesmo de quando Yuri o conhecera, quando o mais novo tinha treze anos. Mas havia algo de diferente no agora técnico e ele percebera isso no dia em que ele anunciara que não patinaria na temporada de 2017. Seu olhar estava menos cansado, como se um grande peso fosse tirado de seus ombros.

Nenhum dos dois falou nada até Yuri terminar de comer dali a vinte minutos (é, ele realmente estava com fome), quando Georgi disse:

— Então, você quer falar sobre Maksim ou ignorar o problema até Yakov descobrir?

Yuri fechou a cara enquanto abria uma lata de refrigerante que viera em seu almoço improvisado. Dane-se a dieta, pra ser sincero.

— Maksim é um idiota. Ele falou merda e nós brigamos. Não bati em ninguém. Fim da história.

— Hum, voltamos a 2013, então? - ele arqueou uma sobrancelha - Você não perderia a paciência por qualquer razão boba. Ele passou dos limites?

Yuri ficou em silêncio por um momento antes de responder em voz baixa:

— Ele falou de Victor e Yuuri.

Algo se quebrou na expressão de Popovich e ele pareceu muito mais simpático com a situação do que antes.

— Oh. - foi tudo que ele conseguiu dizer durante um tempo - Yura, não precisa continuar se...

— Não, tá tudo bem. - ele disse entre goles da bebida - Ele disse que Victor e Yuuri me mimavam e que eram a única razão para eu ter ido bem durante esses anos. Disse que era bom eles terem morrido, porque agora eu tenho que me virar sozinho.

Ele viu o moreno cerrar os punhos e fechar os olhos.

— Isso lá é coisa que se fale? Atletas respeitáveis não comemoram a morte dos outros! - ele disse visivelmente irado - Ninguém tem o direito de falar uma coisa dessas, Yuri. Não se sinta mal por perder a paciência.

— Não, se eu tivesse encostado um dedo em Vorobyov eles poderiam me tirar da competição. Então ele precisa agradecer pelo meu bom humor hoje. - ele murmurou sombrio finalizando a lata de refrigerante.

Georgi, após se acalmar, suspirou passando os dedos pelas mechas negras. Yuri suspeitava que ele também tinha medo de acabar calvo.

— Eu fiquei sabendo da história por uma treinadora que estava no rinque e viu tudo. - ele disse fitando-no seriamente - A parte que me deixou assustado foi quando ela disse que você chorou.

Yuri xingou em voz baixa, desviando o olhar. A ISU inteira era um bando de fofoqueiros, nada passava despercebido. Principalmente as lágrimas de um Ice Tiger.

— Considerando o que eu descobri agora, faz sentido você ter ficado nervoso. - o mais velho continuou - Não precisa falar sobre isso se não quiser, mas é fato que você está mais sensível desde o acidente, Yuri. Ficamos preocupados com você.

O loiro arqueou uma sobrancelha.

— Eu não te vejo há meses desde que resolveu brincar de babá em Novgorod, Popovich. Como você sabe que eu estou mais sensível?

— Duas palavras: Mila Babicheva. - ele sorriu - Ela me mantém informada sobre os podres de São Petersburgo e também sobre você. Então é, não adianta fugir.

Yuri suspirou, massageando as têmporas como se isso fosse melhorar sua dor de cabeça. Estava lentamente se tornando Yakov.

— Eu só... O que Maksim falou me atingiu onde eu não esperava. - ele confessou em voz baixa, não se atrevendo a olhar nos olhos do mais velho - Sei que era tudo besteira, mas...

Ele não conseguia completar. O mero ato de falar algo deixava a ideia mais real e difícil de combater.

— Mas...? - Georgi o motivou a continuar.

— Talvez...Só talvez... alguma parte do que ele disse esteja certo. - ele disse num fôlego, como se tivesse prendido a respiração por muito tempo. Mas o sufoco voltou logo depois - E se eu realmente só fui bem todos esses anos por causa de Victor e Yuuri? Eles deram um bom apoio, é verdade. Mas será possível que eu consegui chegar até aqui... por sorte?

Era algo que ele evitava pensar desde sempre, muito antes do acidente. Ele sempre treinava mais, se esforçava mais, trabalhava mais, tudo para mostrar que percorrera um caminho para chegar ali. O mundo era uma meritocracia, ele não podia confiar em algo tão banal quanto sorte.

Era essa a ansiedade de que Yuuri tanto falava?

— Yuri, você sabe que isso é mentira. - Georgi disse com o cenho franzido - Ninguém pode fazer você ganhar a não ser você mesmo. Um programa perfeito, um treinador bom... É tudo parte do conjunto. Mas o atleta é o principal componente. O apoio que você teve ajudou, mas se estivesse sozinho e tivesse treinado muito mais teria o mesmo resultado. - ele sorriu um pouco triste - Pode achar bobo, mas eu acho que o verdadeiro prêmio está no meio e não no fim do caminho.

— Eu acho bobo. - Yuri não escondeu - Mas você agora é um técnico, então eu tenho que acenar e fingir que entendi a sabedoria ancestral.

O moreno riu.

— Quando que eu fui promovido de babá a técnico no seu conceito? - Georgi chegou ao ponto de segurar seu ombro em sinal de compaixão - Não tenha medo do programa curto amanhã, nem do programa livre. Você se esforçou para torná-los perfeitos, não se importe com o que os outros vão dizer. Concentre-se em se divertir na sua volta às competições.

— Quero fazer algo digno do trabalho deles. - ele confessou sentindo o rosto esquentar. Parecia um desejo tão bobo, mas tão inalcançável ao mesmo tempo.

Ele nem precisou especificar quem eram "eles" para Georgi entender, pois o mais velho apenas sorriu ainda mais.

— Eles ficariam orgulhosos, Yura. Assim como todos nós estamos de você.

Aquela frase nunca falhava em deixar uma sensação estranha no peito do jovem patinador. Um calor aconchegante de quem pertencia a um lugar, a uma família. Ele deixou escapar um pequeno sorriso de gratidão.

— Obrigado, Gosha. Desculpe perceber isso só agora, mas você não é tão chato como eu pensava. Talvez só um pouco dramático. - ele disse num tom leve.

Popovich arqueou uma sobrancelha e riu.

— Isso é bom, antes tarde do que nunca. - ele pareceu se lembrar de algo e pegou seu celular - Até que horas vai seu almoço?

— Ai, droga. - Yuri por um momento tinha esquecido de que era um patinador com uma agenda muito atarefada - Tenho ensaio com a Lilia. Ela vai me matar. - disse já se levantando e procurando seu material de dança.

— Meus pêsames. - ele disse também se levantando - Estou trabalhando como técnico emergencial de Anfisa Zlotnikova, mas vou conseguir te assistir. Boa sorte, amanhã.

— Obrigado. - um pensamento repentino enquanto fechava sua bolsa, ao mesmo tempo em que colocava uma longa mecha de cabelo atrás da orelha.

 

— Georgi, você teria uma tesoura?


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam desse? Clichê pacas, né? Amo clichê.
O próximo com certeza será o último, e talvez seja bem curtinho. Talvez não. Veremos.
Até a próxima!
XOXO



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