Foclore Oculto. escrita por Júlia Riber


Capítulo 20
Capítulo 19




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/723322/chapter/20

 

No escritório do casarão o silêncio reinava com exceção dos toques no teclado, das folhas se debatendo e de alguns murmúrios que vinham ás vezes de Edgar ou de Iara. Ambos estavam lendo, sentados de lados contrários da escrivaninha. Edgar analisava alguns e-mails recebidos no notebook, dos executivos que cuidavam das rendas obtidas e dos investimentos aplicados nas fazendas do Casal, enquanto Iara, sentada do outro lado da escrivaninha, lia o jornal escrito e editado por Joaquim Assis, seu novo “amigo”. Hora ou outra, Iara comentava algo de interessante que leu no jornal, ou ambos discutiam algo presente nos relatórios de trabalho, além do mais, os negócios pertenciam aos dois, no entanto Iara já havia lido e decorado todos aqueles e-mails, agora era a vez do marido.

Mesmo em momentos de brigas, mesmo que ambos estivessem prestes a se divorciar, Edgar e Iara cooperavam quando o assunto era trabalho, eles se completavam no quesito planejamento e ação. Iara era calculista, Edgar era criativo, Iara era inteligente, Edgar tinha conhecimento, Iara era persuasiva, Edgar era frio, Iara era a única pessoa que conseguia acalmar Edgar quando ele ficava furioso, e, Edgar era a única pessoa que conseguia controlar Iara quando ela queria matar alguém.

Naquele momento, no entanto, nem um dos dois estavam nervosos, mas sim pensativos e não era sobre o trabalho sequer sobre as notícias do jornal, o assunto em que ambos pensavam era o mesmo, Núbia e Cícero, mas demorou para que alguém tomasse a iniciativa e puxasse a conversa.

— Hum... Iara, tu não achas suspeito a forma como Núbia aceitou nos ajudar, se ofereceu na verdade, e, como está tão tranquila após tudo que descobriu?

Iara deu de ombros.

— Bem, ela não está realmente tranquila, tanto é que só deve ter aceitado nos ajudar para distrair a cabeça. Ela está mal Edgar, mas está sabendo disfarçar, é igualzinha a você, mesmo.

Há alguns dias Edgar resmungaria com tal comentário, mas agora, conseguia esboçar um sorriso de canto com aquilo.

— Acho que sim. Na verdade, quando vejo Núbia e seu desejo de lutar, uma coragem quase suicida, me recordo vagamente do tempo em que fugi da escola de padres para viajar pelo país sem dinheiro algum e terminar o trabalho do meu avô Pietro. Eu havia acabado de completar 16 anos, passei o final da infância trancado pelo meu pai em um local que claramente não combinava comigo e simplesmente, saí por aí enfrentando monstros. Hoje eu percebo o quanto aquilo foi louco e suicida.

Iara riu.

— Você era impossível, Edgar. Um malandro que só não foi expulso antes da escola de padres, porque seu pai implorou que o deixassem ficar.

— É claro que ele implorou, meu pai tinha medo que eu voltasse para casa. Mas os padres me castigavam todo dia, diziam que era para tirar o mal da minha alma, como se umas chicotadas e orações ajoelhado no milho pudessem me impedir de ser o chupa-cabra... Eu tive que sair daquele lugar — defendeu-se Edgar.

— Não se faça de vítima. Quase ninguém sabia da sua maldição, seu pai nunca deixou ninguém saber. Eles te castigavam porque você visitava o convento das freiras de madrugada para cortejar as novatas, isso sim — lembrou Iara o olhando de forma acusativa.

Edgar arrumou a gola da camisa e tentou manter a naturalidade.

— Eu nunca devia ter te contado isso. Mas é um detalhe irrelevante, Iara, eu era jovem e a vida daquelas moças era monótona, eu só queria... Animá-las um pouco.

— Ow, como você era bonzinho — ironizou Iara.

Edgar riu fraco.

 — Bem. Como eu estava dizendo, Núbia é muito parecida comigo quando eu era jovem, na parte da rebeldia e da coragem.

 Iara riu e negou com a cabeça.

— Não... Você enganava, rico, pobre, índio e europeu. Agora tá aí, cheio de inimigos. A Núbia pode ser difícil, mas é um anjinho perto de você.

Edgar deu ombros com um sorrisinho convencido.

— Realmente, quem sabe por isso tento suportar as rebeldias da guria, no fundo eu sei que poderia ser pior. Bem, só espero que ela esqueça mesmo o tal Cícero e ele também a esqueça.

— E se não esquecer? — perguntou Iara com certa cautela.

— Terei que tomar atitudes mais drásticas — disse Edgar a encarando.

Iara franziu os olhos e negou com a cabeça.

— Acho que devia analisar melhor a situação, Edgar, às vezes pode estar cometendo um grande erro.

Edgar pareceu surpreso com o comentário.

— Não está defendendo o Saci, está?

 

— Não, nem o Saci nem o Cícero. Meu foco é Núbia e o seu também, nós dois queremos protegê-la, Edgar, a diferença é que eu preso pela felicidade dela e pelo o que ela quer e pensa, já você...

— Ela não sabe o que quer, ou ao menos, não quer o que devia querer, por isso estou escolhendo por ela — disse Edgar mais sério. O clima amigável entre o casal claramente já havia acabado, como sempre.

Iara respirou fundo, tentando ser paciente sem sucesso.

— Edgar, você sequer conversa com ela, não sabe nada sobre Núbia e quer traçar assim a vida da garota? Eu te conheço, sei que está mais preocupado com ela, mas não por ser um vovô do bem e sim por ver utilidade nela. Núbia pode ser a herdeira e aprendiz que você precisa e é por isso que resolveu protegê-la, mas Edgar, ela é humana, não pode usa-la como quer e quando quer, ela tem vontade própria e você tem que parar com essa mania de ver as pessoas como ferramentas que só servem para te ajudar em seus planos. Já não basta ter usado um garoto de quinze anos como frasco para demônio?

Edgar paralisou por alguns segundos, pasmo com a repentina revolta de Iara, depois falou em tom baixo:

— Por que está comparando Cícero á Núbia? Saci era uma alma qualquer, que já havia feito muita mal, mas eu o tirei do inferno e ele deveria ser grato por isso. Claro que trancar um demônio nele e larga-lo em um mundo diferente do qual ele conhecia não foi exatamente algo benevolente da minha parte, na verdade foi bem cruel, admito, mas ele não merecia grande coisa. Já Núbia tem meu sangue, é uma Cabrall, é uma alma nobre, é o único vestígio que tenho da vida de Henrique após ter fugido, é claro que ela não é uma simples ferramenta para mim.

Iara levantou uma sobrancelha, porém sorriu mais satisfeita, pois aquilo era exatamente o que ela queria ouvir.

— Então pare de trata-la com tanta frieza, gaúcho. Converse mais com ela, faça algo que um avô faria com sua netinha, sei lá.

Edgar emburrou a cara e levantou uma sobrancelha.

— Bah, quer que eu conte historinhas para ela antes de dormir? Olha bem para minha cara, Iara — resmungou ele.

— Quem sabe Núbia seja um pouco grandinha de mais para isso, mas você entendeu o quis dizer. Só quero que você... Seja mais simpático e menos amedrontador, entende?

Edgar revirou os olhos.

— Eu estou fazendo o que posso, Iara. Mas já não é do meu feitio ser simpático.

— É, eu sei, mas sei também que você tem a capacidade de se apegar as pessoas, sei que foi um pai maravilhoso e sei que aos poucos Núbia está ganhando seu afeto — Iara se esticou e pegou no rosto dele — Só deixe as coisas  fluírem, sim? E não seja tão ranzinza.

Edgar bufou, fez cara feia, mas acabou fraquejando com a carinha pidona de Iara.

— Eu vou tentar — resmungou ele e Iara deu uma risadinha enquanto voltava a seu lugar.

— Obrigada...

— Mas não vou desistir de afasta-la de Cícero — avisou Edgar e Iara deu de ombros fingindo-se indiferente.

 Com o fim do assunto, Edgar voltou a analisar os e-mails.

Já Iara, antes de voltar para seu jornal, fitou Edgar por alguns segundos, pensativa, depois voltou-se para a porta do escritório, lembrando-se da conversa que tivera com Cícero e se perguntando porque ele estava demorando tanto para agir.

...

Eles adentraram bastante o bosque, o suficiente para que ninguém do casarão os visse ou ouvisse, e só assim Núbia parou e virou-se para Cissa com os braços cruzados.

— Achei que você iria embora — disse ela em tom furioso.

Cissa baixou o olhar.

— Eu... Ia. De verdade, fiz as malas e tudo, eu queria provar á você que eu era diferente do meu primeiro eu, do escravo Saci. Queria te mostrar que sei ouvir um não, que respeito suas vontades e que... eu só quero seu bem, mas notei que sair e te deixar sozinha não mostraria nada disso.

— Eu não estou sozinha — retrucou Núbia.

— Ah, claro, agora você tem o vovozinho Edgar, e a... como eu chamo Iara? Vódrasta?

— O que você quer, Cissa? Fala logo.

Cissa sorriu de leve.

— Ah, várias coisas, estabilidade social, o fim da corrupção no Brasil, emprego fixo, exorcizar o demônio que está dentro de mim e por ultimo, mas não menos importante, você.

Núbia revirou os olhos.

— Você não leva nada a sério.

Cissa se aproximou e pegou no rosto dela.

— Eu levo você a sério.

Núbia franziu os olhos e afastou a mão dele.

— Você mentiu para mim esse tempo todo, por que eu deveria acreditar em você agora?

Cissa suspirou.

— Eu... Realmente não sei, não faço a mínima ideia de como vou fazer para você confiar em mim de novo e sinceramente, vou entender se continuar me odiando para o resto da sua vida. Mas eu descobri que te amo Núbia Cabrall e que quero que se dane sua raiva, eu não vou te deixar, eu posso me distanciar, eu posso nunca mais dirigir a palavra á você, mas vou estar sempre aqui, para te proteger do que você não vê ou simplesmente para poder ter certeza que você está bem antes de dormir. Peça-me o que quiser e eu farei o que puder, mas... Eu não consigo simplesmente não me importar contigo, virar as costas e ir embora.

Núbia o fitou, irresoluta, depois contraiu os lábios, nervosa e abraçou a si mesma, como se sentisse frio, quando na verdade, sentia insegurança.

— É tão difícil não acreditar em você — murmurou ela, brava consigo mesma. — Mas também é tão difícil não me sentir com raiva... Me sentir uma idiota por te perdoar.

— Se você sente que pode confiar, então confie! — ele pegou no braço dela com delicadeza e com a outra mão acariciou seus cabelos ruivos. — Me dê uma segunda chance, menina.

Núbia contorceu de leve o corpo mostrando-se incomodada com o toque de Cícero e ao notar isso ele imediatamente se afastou em respeito.

— Eu não quero trair o Edgar — disse ela tristonha, mas decidida.

— Eu te amo o suficiente para te ajudar a salvar meu antigo rival, se é isso que você quer... Tento não odiar aquele gaúcho gótico e ainda te ajudo no que for preciso para trazer o tal homem bom, que segundo Thayna, existe nele.

Núbia franziu os olhos, desconfiada.

— E você tem alguma ideia de como fazer isso?

Cissa assentiu, mas parecia nervoso.

— Ignorando o fato de Saci estar mesmo dentro de mim e provavelmente querer o capuz para ter poder novamente, eu quero destruir aquela droga e você quer salvar Edgar de si mesmo, e digamos que há como conciliar nossos objetivos. Eu sei que já joguei essa conversa em você antes e mesmo que isso fizesse parte do meu plano, não era mentira, o capuz realmente faz mal para Edgar e se você tirar aquele objeto dele...

— Seu filho da mãe — disse ela tornando sua expressão raivosa. — Como vou saber que isso não é mais um plano seu?

— Mas é um plano meu! — disse ele rindo e ao ver a fúria de Núbia tentou se explicar — Mas não contra você, entende? Nunca mais vou mentir para você, menina, juro, de agora em diante quero que você seja minha companheira, sem mentiras, só com confiança. Vamos nos ajudar a conseguir nossos objetivos sem enganar mais ninguém. O que acha?

Cissa estendeu a mão para Núbia e mesmo com certa relutância, ela concluiu que aquela realmente não era uma má ideia, Cissa poderia ajuda-la e vice versa, seria uma troca de interesses.

— Se por acaso eu pegar o capuz e te der, não há perigo do Saci te convencer a usa-lo, ne? Além do mais, ele fala com você, não fala? Meche com sua cabeça.

— Ele tenta, mas para evitar isso minha mãe me deu uma espécie de caixa que ela nomeou de “prisão para Saci” e que eu chamo de “caixa batizada”. A ideia é que se colocarmos o capuz lá ele não vai mais influenciar ninguém, a magia dele vai estar trancada e segura. Meu plano desde o início era ter menos contato possível com o capuz, aliás, por isso também que eu precisava de você — admitiu ele com um sorriso nervoso.

— É, eu imaginei que seria sua luvas — disse Núbia com cara emburrada. — E agora continuarei sendo.

— Sim. Mas agora você sabe disso, olha que legal.

Núbia revirou os olhos.

— Ok então, eu pego o capuz e o coloco nessa tal caixa, e você o destrói, assim o capuz não vai mais poder influenciar ninguém, certo?

— Exatamente — disse Cissa com seu costumeiro sorriso maroto e voltando a estender a mão. — Feito?

Ela pensou por mais alguns segundos, mas logo em um suspiro apertou a mão de Cissa o que o fez sorrir radiante.

— Digamos que agora somos comparsas, mas estou fazendo isso por Edgar porque... Porque ele tem meu sangue. Eu ainda não confio em você.

Cícera revirou os olhos e bufou.

— Pergunta para Iara então se eu não sou confiável — desafiou ele, já um tanto irritado.

—Como assim?

— Ela foi quem me fez perceber que eu não poderia ir embora — esclareceu ele e em seguida contou sobre a conversa que tivera com Iara e apesar daquilo deixar Núbia surpresa, não lhe pareceu mentira.

— Faz sentido — ela suspirou —. Bem, mas preciso voltar para o casarão, vou tentar dar um jeito de te encontrar amanhã, sei lá. Dai você me conta com mais detalhes seu novo plano.

Cissa negou com a cabeça.

— Não, precisamos ser rápidos, tenta se encontrar comigo hoje a noite, daí te dou a caixa já para você não ter muito contato com o capuz e... vou te dar outras coisas também, para te ajudar.

— Que outras coisas?

— Se encontre comigo e descubra, oxi — disse ele com um sorrisinho.

Núbia fez cara emburrada, mas tinha que admitir que Cissa sabia convencê-la.

— Está bem, 10 horas atrás da baia de cavalos — disse Núbia apesar de não gostar da própria ideia.

Cícero assentiu com um sorrisinho.

— Fechado. Eu... vou contar os segundos para esse encontro — admitiu ele.

Núbia revirou os olhos.

— Saiba que eu posso mudar de ideia ao longo do dia e te dar um cano — avisou ela.

— Eu gosto de sempre pensar positivo — disse Cissa dando de ombros. — Por isso ao longo do dia vou pensar nesse nosso encontro e imaginar formas de o deixar perfeito. Aliás, atrás da baia não me parece muito legal, o que acha da cachoeira? Ela fica linda a noite.

Cissa a fitou um tanto aéreo como se já se imaginasse na canhoneira junto a Núbia, e a garota ao fita-lo daquela maneira arqueou as sobrancelhas e o encarou com firmeza.

— Cícero, isso não vai ser um encontro romântico, está me ouvindo? Vamos só falar sobre o plano, é só esse o meu interesse, tirar o capuz do Edgar.

— Que engraçado, antigamente esse também era meu único interesse, hoje eu vejo que há coisas bem mais interessantes para se fazer, sabia? Tipo ter uma namorada — disse ele lançando uma piscadinha sacana para Núbia, que fungou raivosa.

— Suas brincadeiras são idiotas diante a situação, você é um idiota. Mas dane-se... Acho que já falamos o que tínhamos para falar.

Cissa estendeu a mão apressado antes que ela partisse.

— Não, não, Núbia. Eu.... Não estou brincando. Quero dizer, meu tom sempre é de brincadeira, isso porque o sarcasmo é o único escudo que eu tenho contra as dores que sinto. Mas minha mãe, por exemplo, sempre disse que é brincando que se fala as verdades. — Cissa ficou cabisbaixo e suspirou —. E realmente, depois que eu notei a falta que você me faz e a ferida que eu te causei mentindo para você, o capuz ficou tão irrelevante... É como se sua existência apagasse a existência do Saci. Quando estou com você a minha vida como escravo e a minha metade demônio param de me assombrar e eu sou somente... o Cícero.

Núbia queria profundamente prosseguir durona, mas fraquejou com aquelas palavras sinceras e aquele olhar sofrido.

— Eu acho loucura, mas acredito quando você diz que é uma pessoa e o Saci é outra, porém... Eu não consigo entender o que se passava pela sua cabeça naquela época, eu não consigo esquecer tudo que você fez!

— Eu vou tentar te explicar hoje á noite — prometeu Cissa. — Eu vou te dizer toda a verdade, mesmo sobre aquela que eu não gosto de falar. Vou esclarecer tudo e deixar você tirar suas próprias conclusões.

Núbia assentiu concordando com a ideia, mas ainda não conseguia encara-lo.

— Eu agradeço por isso. Bem. Preciso ir.

— Eu sei — lamentou Cissa.

Núbia respirou fundo e caminhou rumo o casarão e Cissa ficou ali cabisbaixo e pensativo, mas logo ela parou e ao notar tal hesitação Cícero a fitou, esperançoso.

— O que? — disse ele com cautela.

— Eu... Estava com saudade — admitiu Núbia.

— Eu também — murmurou Cissa com um sorrisinho. Por um momento ele imaginou que Núbia daria meia volta, o beijasse e o abraçasse, no entanto após dizer aquilo, ela prosseguiu caminhando o que pareceu uma facada no coração de Cissa.

Ele respirou fundo, não podia culpa-la pela atitude, ele merecia tudo aquilo.

— No encontro de hoje vou fazer ela me perdoar — prometeu ele para si, mesmo não acreditando em tal afirmação.

...

Chegando ao casarão Núbia encontrou Iara e Ângela na sala. Iara repreendia Ângela que segurava um espanador de pó e estava cabisbaixa, o que não significava grande coisa considerando que ela sempre estava assim.

— Já disse para limpar com cuidado meus bebês — dizia Iara segurando um arco, que logo pendurou em seu devido lugar da parede, ao lado de uma cesta artesanal com diversas flechas.

— Desculpe senhora — sussurrou Ângela. — Não gosto de tirar elas do lugar para limpar porque tenho medo de quebrar.

Iara passou a mão sobre a cesta como se tirasse o pó e soltou uma risadinha.

— Entendo querida, mas não há esse perigo, apesar de velhas, minhas armas são bem resistentes.

As armas em questão eram um conjunto de arco e flecha que ficavam sempre expostas na parede da sala, como enfeites. Tudo era claramente artesanal, o arco e a flecha eram de madeira bem esculpida, mas sem nem um verniz ou tinta, já a cesta era feita de palha em formato cilíndrico, longa e fechada, que acomodava muito bem as dez flechas ali presentes.

Ângela ao ver Núbia abriu um sorrisinho.

— Núbia chegou, chegou sim, acho que vou servir o almoço, posso senhora?

— Claro — disse Iara abanando as mãos e então voltou-se á Núbia — Onde estava mocinha?

— No quintal fazendo vários nadas.

— hurum...

Iara sentou-se no sofá e ficou observando as armas na parede com um olhar nostálgico, depois deu batidinhas no sofá convidando Núbia para sentar e a garota aceitou facilmente o convite.

— Onde está o Edgar? — perguntou ela analisando a casa.

— No escritório, por quê? — disse Iara notando o tom baixo de Núbia.

— Eu... Preciso perguntar uma coisa. Você falou mesmo com Cissa, pediu para ele ficar?

— Estava no quintal fazendo vários nadas, sei — disse Iara com ironia, em seguida suspirou e assentiu. — Mas sim, mocinha, eu disse isso a ele e provavelmente ele te contou o motivo.

Núbia assentiu.

— Vai nos ajudar a pegar o capuz?

— Não vou atrapalhar, é diferente.

Núbia revirou os olhos, mas não esperava algo diferente de Iara. Logo fitou os objetos na parede que a tutora á pouco chamara de “minhas armas” e não segurou a pergunta que já estava há um bom tempo presa em sua garganta.

— Iara, você é índia mesmo?

Iara fitou Núbia com um sorrisinho sádico.

— Meio óbvio, não?

Núbia balançou a cabeça, como se dissesse: mais ou menos.

— Você tem traços indígenas, mas o olho verde e o jeito... Ah você sabe.

Iara riu e olhou para cima, com aquela cara de quem já está cansada de contar a mesma história.

— Os olhos verdes são um erro genético, só isso, parece legal, mas minha tribo no começo não gostava muito, sabe, quando eu era criança todos me olhavam estranho, é natural do ser humano manter distancia ou temer o que não entende, e ninguém entendia porque só eu tinha olhos verdes, não os culpo por isso. Mas com o passar do tempo conquistei todos, meu pai era um nome importante da tribo e eu sempre me mostrei talentosa no que decidia fazer, então, logo fui bem aceita. Tudo ia bem, eu amava minha tribo, amava a mata, os bichos, o rio... — Iara fez uma pausa e sua expressão até então encantada se tornou sombria — Até meus irmãos sentirem inveja de mim e resolverem me matar. Mas essa já outra história.

“Mas essa já é outra história” é o que as pessoas dizem quando não querem contar a história em questão, e sabendo disso Núbia ignorou aquela parte, mesmo parecendo a mais interessante.

— Não parece que você cresceu em uma tribo indígena — comentou Núbia.

— Todos dizem isso...  Deve ser por eu falar excelentemente bem, comer com garfo e faca e ainda administrar empresas — Iara revirou os olhos. — Estereótipos...

Núbia entortou os lábios.

— É, foi por isso que eu perguntei, desculpa.

— Tudo bem, já estou acostumada. Sinto muito orgulho das minhas raízes e não tenho problema em falar disso. Mas sabe por que decidi ficar assim, uma “dama requintada”? — Núbia negou com a cabeça e Iara abriu um sorrisinho prosseguindo— Para mostrar que índio pode ser homem branco, mas homem branco jamais será índio. E sabe, entrar nesse negócio de agricultura e pecuária foi a melhor ideia que eu já tive. No começo, quando eu e Edgar éramos recém-casados, eu deixei claro que não queria me envolver com aqueles fazendeiros colegas dele, porque são eles quem matam e violentam meu povo para depois roubarem suas terras e eu tenho nojo dessa gente, porém Edgar me fez notar que encara-los de frente e obriga-los a respeitar uma indígena como igual era a melhor vingança que eu poderia ter. Sem contar que eu e Edgar depois que enriquecemos começamos a comprar terras roubadas de povos indígenas para devolver a eles. — Iara sorriu orgulhosa de si mesma — No fim conviver com aqueles fazendeiros escrotos apesar de horrível, valeu a pena, só assim foi possível me tornar a empresaria que sou hoje. Mas, me dê um arco e flecha para você ver se a índia guerreira não ressurge.

Iara lançou uma piscadinha esperta para Núbia que soltou uma risada com aquilo, tinha que admitir que adorava aquele jeito inteligente e confiante de Iara, e também, sempre gostou da cultura indígena. Aliás, aquela história de devolver território indígena com o próprio dinheiro fez nascer uma admiração que Núbia jamais pensou em ter pelo casal Edgar e Iara.

— Você é minha diva — declarou Núbia e Iara riu apertando as bochechas dela.

— Você também é uma divinha.

Núbia odiava que apertassem suas bochechas, mas ignorou daquela vez, pois sua mente estava concentrada em outras coisas, como por exemplo, o que de útil e interessante Iara poderia lhe ensinar.

 — Queria saber atirar flechas — comentou a garota, com um tom de quem não quer nada.

Iara a fitou com certo orgulho.

— Sabe, não seria má ideia. Nada contra as aulas de feitiçaria que Edgar está te dando, mas magia é um processo muito demorado, então te ensinar a usar algumas armas parece uma boa solução para você se defender enquanto ainda não sabe levitar coisas.

Núbia assentiu, animada.

— É exatamente nisso que pensei.

— Aham. Qualquer dia te ensino a usar o arco e flecha, acho até que se daria bem considerando que você também tem sangue indígena.

— Tenho? — perguntou Núbia com a sobrancelha arqueada e Iara assentiu, mas antes que explicasse melhor aquilo, Ângela pareceu anunciando que o almoço estava servido.

Não fazia muito tempo que haviam tomado café, mas estavam ambas com fome por isso imediatamente esquecera-se do assunto que discutiam e foram para a sala de jantar, enquanto Ângela subia as escadas para chamar Edgar.

Edgar desceu logo depois com Noite em seu ombro e em seguida os três estavam almoçando em um clima tão bom que Núbia sequer conseguiria se lembrar da primeira vez que comeu naquela mesa e como tinha sido aterrorizante.

Edgar hora ou outra deixava seus talheres de lado e pegava com a mão um pedaço de carne o qual dava no bico de Noite.

  Núbia havia usado a faca para cortar a carne no começo, mas logo decidiu cortar com o dente mesmo os pedaços maiores. Isso deixava claro que além de arco e flecha, Iara poderia dar a garota também algumas aulas de etiqueta.

Iara, aliás, foi quem puxou o assunto daquele almoço, mais especificamente ela contou a Edgar sobre a conversa que tivera minutos antes com Núbia e após concordar com a ideia de ensinar Núbia a usar armas, ele lembrou-se de algo e soltou sua risada roca, que mais parecia um resmungo.

— Uma dica para ti, guria, nunca pesque com a Iara — disse Edgar.

Iara riu.

— Para Edgar... Você sabe, é mais forte que eu!

— Do que estão falando? — disse Núbia com um sorrisinho.

— Uma vez fomos pescar juntos — começou Edgar — e ela prometeu que faria da forma convencional, sem usar seus poderes e com vara de pescar, mas logo perdeu a paciência em esperar que o peixe fosse até ela. Iara então disse que precisava pegar algo no casarão e logo voltou com uma lança. Nem preciso dizer que aconteceu em seguida

Edgar expressou uma cara mal humorada e Núbia riu.

— Edgar não ficou bravo por eu ter descumprido a promessa de tentar pescar com vara, e sim porque com a lança peguei o dobro de peixes que ele — retrucou Iara com um sorrisinho cínico.

— Esse é um detalhe irrelevante — disse Edgar.

Todos riram e por alguns segundos, se alguém os observasse de longe, diria que eles eram uma família ou algo bem parecido.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Finalzinho fofo né, raro isso em Folclore Oculto. kkk
beijinhos da tia jú.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Foclore Oculto." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.