O Verdadeiro Mundo Pokémon escrita por Ersiro


Capítulo 23
Confusão


Notas iniciais do capítulo

Olá! Espero que estejam bem.
Este é o segundo capítulo da parte 3 e provável parte final da história.
Tinha dito anteriormente que eu escreveria esta terceira parte com os outros personagens narrando, entretanto tomei um caminho diferente e ao invés de narrar com o personagem ao qual o capítulo é dedicado; escrevi em terceira pessoa, como nos capítulos bônus, mas NÃO é um capítulo bônus, ok? Fiz isso para conseguir dar um foco no capítulo e não deixá-lo tão comprido, que não é o objetivo do mesmo.
Nele veremos o que andou acontecendo com Hudson, o irmão da Lucy.
Boa leitura!



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COMO CORPO HOSPEDEIRO, não debatia e se arranhava mais devido a rejeição da matéria estranha que lhe fora passada pelo antigo amigo.

Nos momentos mais corriqueiros, de forma consciente, o garoto conseguia — de alguma maneira que não sabia explicar como —, utilizar algumas das habilidades que este novo ser lhe proporcionava. Apesar d'este obscuro corpo dentro de si não ter se acomodado completamente.

Constantemente, seu eu se desligava e sua mente saudava os momentos da infância antes de estar "possuído"... Tempos difíceis, mas não perturbadores.... O tempo como Garotinho Loiro... Com um demônio preso ao corpo. Oikos. Maldito seja! Ele o encontraria. Custasse o que custasse.

 

~×~

 

A COMPRIDA E ONDULADA CASCATA DE CABELO loiro escuro dera lugar a um emaranhado sujo. O elástico que o prendia em um rabo de cavalo se perdera em algum momento de seu confuso caminhar.

A noite negra era tranquila, mas ao mesmo tempo ameaçadora, pois escondia mistérios em cada canto de escuridão da Cidade Industriápolis.

Caminhava com dificuldade. A lembrança dos homens de branco chegando à sua casa, um deles agarrando-o enquanto o outro colocava as amarras apertadas, importunaram sua mente e se misturaram à realidade das ruas vazias, zumbindo com o silêncio dos que dormiam calados na cidade. As más lembranças misturadas à existência objetiva do momento atual fizeram seu corpo estremecer e o urro que soltou, reverberou pelas esquinas solitárias como o eco de um animal sendo ferido.

Com o coração disparado, a respiração dificultando-se, olhou para os lados procurando os enfermeiros dispostos com suas agulhas lambuzadas de tranquilizantes, mas não encontrou ninguém à sua volta.

O som de passos arrastados se aproximou, chegando de uma das várias ruas infestadas de fábricas e indústria de produção. A branca fumaça expelida pelas chaminés dos prédios embranquecia partes do céu preto, mas também se assentava ao nível do solo criando neblina, o cheiro acre se transformando no odor pungente e ácido do monstro que se acercava cada vez mais.

Suas garras raquíticas e pálidas agarraram seus ombros e Hudson sentiu seu corpo cair em um buraco imaginário aberto no chão.

— Está perdido crian... — o dono da mão esquelética e branca não terminou.

Hud concentrou todo o medo à sua volta até quase explodir de tensão e pressão. A risada sussurrante e assustadora preencheu todo o silêncio, mesmo sendo tão baixa. O garoto sentiu a coisa se remexendo em seu interior e foi tomado por uma vertigem tão forte que caiu de joelhos, machucando-os. Enquanto a sombra se separava de Hud, a súbita perda de consciência tomou o garoto ajoelhado e a dor que antes sentia nos joelhos foi para alguma dimensão ilógica; seus olhos ficaram perdidos e vagos, o corpo inteiro paralisado. Não respondia ao que acontecia à sua frente.

A sombra risonha deslizou e se separou de Hudson, arrastando-se preguiçosamente até encontrar com a silhueta do inocente assalariado que finalizara seu turno no trabalho e, voltando para casa, encontrou um garoto sozinho na escuridão e apenas tentou ajudá-lo.

O homem retesou no meio da frase inicialmente dita, seus olhos se arregalando de forma assustadora, as órbitas quase escapando para fora. O terror que via à sua frente só podia ser contemplado por ele. A região da braguilha de sua calça tomou-se gradativamente de um tom mais escuro e o tecido, úmido. Seu corpo se contorceu em espasmos violentos. Primeiro houve um murmúrio de desolação, que se intensificou a uivos de horror, como se visse o próprio demônio à sua frente, perfurando-o com o tridente em brasas. Caiu, debatendo-se. Sangue misturado à um líquido roxo escorreu em meio à saliva da boca, das narinas, junto com muco, e, em um último momento horrendo, misturado às lágrimas dos olhos arregalados e vermelhos.

Hud, ajoelhado, momentaneamente recobrou a consciência. Uma linha de percepção passou por sua fronte com o brilho repentino do holofote de consciência. Viu o homem jogado ao seu lado, debatendo-se em seus últimos momentos de vida.

— O-O que fiz...? — A desolação tomou conta de sua fraca voz.

Fechou os olhos e forçou mentalmente o movimento de repuxo, como o das ondas, indo e vindo, indo e vindo, indo e vindo. Sentiu algo sinistro, escuro e frio sendo sugado para seu corpo, como se ele fosse o metal e aquela coisa, o imã. A sombra de Gengar foi aspirada pela de Hudson, que, tonto, apoiou-se no chão com os braços para não desmaiar. Seu corpo perdeu calor, a epiderme arrepiou-se até seu tronco parar de tremer e recuperar a temperatura.

Entorpecido, caminhou até o homem desconhecido que em algum momento não perceptível, tinha imobilizado. A pobre imagem chegava a ser sombria: as duas escleróticas arregaladas pareciam sangrar com a cor rubra que as cobria, mas o mais assustador era o fluido púrpuro que se acumulava ao redor das partes internas dos olhos. Não havia mais jeito. Estava morto.

Hudson suspeitava que aquilo era veneno. Destruía por dentro o corpo da vítima, as imagens de horror criadas por Gengar aterrorizando e enlouquecendo a pessoa em seus momentos finais, sugava o calor do corpo. O garoto intuía isso devido ao fato de ter descoberto recentemente que Gengar era do Tipo Fantasma e Veneno.

Descobriu o Tipo de Gengar há pouco tempo atrás. Não sabia afirmar se havia dias, ou se fora até mesmo ontem; o tempo o enganava de forma de zombeteira. Aparentemente, quando o ser se separava de seu corpo, ele entrava em uma crise de ausência profunda. Pelas combinações de realidade com sua coletânea de fantasiosas más recordações, Hudson criava uma deixa grande e fácil para Gengar escapar e fazer suas travessuras malignas. Não tinha controle sobre aquele ser. Na situação, recobrou os sentidos e viu que Gengar tinha escapado de seu corpo novamente. A sombra estava tomando posse do corpo de um garoto um pouco mais velho que ele, e Hud conseguiu sugar o Fantasma para dentro de seu próprio corpo antes que o pior acontecesse. O Gwinterland — sobrenome de sua família por parte de pai —  percebeu que o garoto tombado era provavelmente um Treinador, pois uma Pokédex largada na grama ao seu lado, estava aberta e falava sobre o ser que identificara.

— Gengar, o Pokémon sombra. É a forma final da linha evolutiva de Gastly. Se um Gengar está próximo, diz-se sentir a temperatura baixar em aproximadamente dez graus Fahrenheit e o corpo se arrepiar, com isso, pode estar tentando lançar uma maldição em você — disse a voz robótica e animada dentro do dispositivo, como se informasse o quão bonito estava o dia. — Devo continuar?

Pelos botões, Hudson moveu o cursor até o SIM na tela.

— Para roubar a vida de seu alvo, ele desliza na sombra da presa e silenciosamente espera por uma oportunidade de roubar sua força vital, absorvendo seu calor.

A tela mostrou um emaranhado de dados e a imagem do Pokémon no canto. Dentre essas informações, havia a de que seu Tipo era Fantasma e Veneno.

Agora, retirando todo o resquício da lembrança, ali, na noite de bruma artificial de Industriápolis, mesmo com fraqueza por sugar as sombras, Hud esforçou-se para arrastar o cadáver para a floresta sinistra que envolvia a cidade. Pegou o corpo por trás, pelo arco das axilas e a cada dois passos o puxando para trás, rastejando o desconhecido, parava para tomar ar. Os tendões dos ombros, braços, antebraços e punhos se repuxavam e pareciam querer arrebentar. A missão estava sendo difícil. Com muito esforço, conseguiu arrastá-lo até o limite da floresta e desabou ao lado do corpo para recuperar o fôlego. A ideia era enterrar o corpo na floresta, onde jamais seria encontrado. Era um pensamento macabro? Sim, mas...

O som de algo se movendo nas folhagens despertou a atenção de Hud. A pelagem cinzenta não passou despercebida pelo fugaz olhar do garoto. Mesmo tendo recuperado somente parte do fôlego, Hud não pensou duas vezes antes de se levantar e ir atrás daquilo que antes espreitava e agora fugia.

Enquanto passava entre as folhagens e árvores, com o caminho sendo iluminado apenas pela luz da lua, Hudson sentiu a emanação de energia Noturna e reconheceu de momentos em momentos outras características daquele que perseguia: orelhas pontudas, um tufo de cabelo vermelho entre elas, focinho arrebitado. Zorua! Era dele que vinha a emanação Noturna.

E então, depois de pular de um tronco caído, aquela forma de cabeça peluda e cinzenta escorregou sem vida para trás, revelando outra cabeça: Uma redonda, com o cabelo em corte rente ao couro cabeludo.

Hudson, boquiaberto, deixou de prestar atenção a tudo que o rodeava e focou somente naquele que estava à sua frente. Com isso, esbarrou no tronco caído e foi jogado para frente com força, dando tempo para uma cambalhota no ar e esborrachando-se de costas no chão cheio de gravetos e algumas pedrinhas perdidas. O ar escapou de seu pulmão, mas na emoção do momento, na primeira sugada de oxigênio pela boca, Hudson soltou um brado estridente para a noite: o nome daquele que estava procurando desde o dia que este o libertou do Manicômio de Luvander.

— OIKOOOOOOOOOOOOOOS!

O uivo assustou os Pokémon pássaros que dormiam dentro da floresta; bateram desesperados as asas e alçaram voo.

O atual Jorge, sentiu o grito reverberar dentro de si, tapou os ouvidos e sentiu seu corpo caindo para o lado. Só parou de correr quando deu um encontrão em uma árvore e tombou, desorientado. Aquela voz ainda mexia com ele.

Antes que pudesse se levantar e iniciar outra corrida, sentiu um peso cair em cima de si. Hud estava em cima do Garoto do Casaco de Zorua, com os joelhos apoiados no chão, um de cada lado do corpo de Jorge, as mãos apoiadas nos ombros do antigo Oikos, o firmando no solo, os olhos intensos direcionados diretamente para os seus.

Eles ficaram assim por um longo tempo, o silêncio caído foi bem-vindo, os dois não se incomodaram de visitá-lo. A mistura de sentimentos e outras sensações que um via nos olhos do outro, era uma coisa louca que mal dava para acompanhar e faria qualquer outra pessoa enlouquecer: raiva, amor, tristeza, empatia, decepção, amizade, rancor, idolatria, intriga... mas nada de constrangimento.

— Não sou Oikos, me chamo Jorge, agora! — O capturado quebrou o silêncio. A vozinha em seu interior riu do que acabara de falar.

— Não tente me e se enganar, otário! Você é sim o Oikos! — Hudson respondeu e viu a confusão nos olhos do atual Jorge.

A voz irritante dentro da cabeça de Jorge o caçoou. 'Até ele sabe que você adora enganar a si mesmo... Além de continuar sendo controlado pelos sentimentos, bobão!'. Aquilo o deixou mais confuso ainda.

— Depois que você correu de mim do manicômio, pensei que nunca mais o pegaria. O que estava fazendo tão perto? — perguntou Hud, com a respiração ainda entrecortada, misturada à raiva que começava a tomá-lo.

Jorge não precisou responder, pois sua expressão entregou o jogo. Era óbvio que ele vinha acompanhando o caminhar de Hud de longe, de forma a não ser identificado e encontrado. Para isso, solicitou, para o alto mando, missões as quais além de conduzi-las, pudesse observar do antigo amigo.

— Você não tinha o direito de me resgatar do manicômio, seu merdinha — rosnou Hudson entre dentes.

Jorge olhou para os dentes cerrados do garoto e abriu um sorriso. Gargalhou.

— Ingrato! — rugiu Jorge repentinamente furioso, tentando se levantar, mas sem sucesso. Um jato de cuspe voou de sua boca para a cara de Hudson. — Eu só queria te salvar!

— Eu não preciso ser salvo! — Hud retribuiu o cuspe, no rosto de Jorge. O outro não limpou o cuspe que escorria pela sua bochecha. — Não por você, que quando mais precisei, fugiu de mim!

Nesse momento, Jorge conseguiu se desvencilhar jogando o corpo de Hudson para o lado e se levantou. Hud também se levantou. Se entreolharam e qualquer outro fracote sairia correndo ao se deparar com qualquer dos dois olhares não-mais-humanos. Era a pura imagem do homem civilizado despido de qualquer humanidade e civilização. O olhar de quem já viu e passou por muitas situações perturbadoras, porém, sem perder completamente a sanidade, passando longe daqueles que se escondem isolados em um canto tranquilo da mente e que não respondem a qualquer estímulo. Pode-se dizer também que aqueles eram os olhares do homem em sua natureza mais selvagem possível, como verdadeiros animais intuitivos.

— Mas isso foi uma tentativa de me redimir, de deixar para trás o erro que fiz de ter te abandonado — rugiu Jorge — com lágrimas de fúria escorrendo pelas bochechas.

Cuspiu novamente em Hud.

— Isso não foi o suficiente para apagar a bagunça toda que causou na minha vida! — Foi a vez de Hud, também com lágrimas expelidas pelos olhos, cuspir no outro.

— Mas por que você me culpa? Quando você absorveu parte do Gengar aprisionado em meu interior, eu não sabia que, no fim, culminaria necessariamente no passar de parte de minha maldição para você. — Cuspiu em Hudson. —  Algo dentro de mim só dizia que tinha que fazer o encostar de lábios... De primeiro momento... minha intenção era só ajudar

Foi a vez de Hud, soltar o verbo e cuspir em Jorge. E assim permaneceram por um tempo indeterminado, um desoprimindo seus pesares após o outro.

Cada projétil escarrado de ódio e ira lançado no outro limpava a alma dos dois garotos durante o reencontro inusitado. No fim, depois de soltarem todas as suas angústias um para o outro, e cuspirem muito, os dois se cansaram. Tomados por um fatigamento intenso e inexplicável, caíram na relva alta, dormindo a sono solto.

Alguns metros atrás de onde se encontravam, o desconhecido pobre coitado, morto acidentalmente por Hudson, ficou lá deitado na grama, como que aproveitando sua maciez, com seus olhos vidrados apontados para o céu noturno, pontuado da fumaça das fábricas. E se não estivesse mortinho-da-silva, juro que ele poderia até mesmo soltar um "irei passar a noite aqui, para aproveitar o quão bela ela se encontra."

Durante dado momento da noite, em seu sono impenetrável, Jorge virou-se para perto de Hudson e jogou o braço por cima do garoto. Hudson, por sua vez, também entremeado em sonhos, encostou a mão no lado do peito em que o coração de Jorge batia.

Lucy certa vez dissera que Hudson tinha o dom de conhecer o coração das pessoas1. Com poucos minutos olhando para qualquer pessoa, Hud dizia se a pessoa era feliz ou triste. O encostar de sua mão no coração de Jorge, foi o suficiente para entender um pouco da verdade que seu antigo amigo guardava.

O canto dos lábios de Hudson se esticou levemente em um sorriso. Ele achegou-se para perto daquele corpo quentinho que se aproximou primeiro dele e continuou dormindo.

Jorge murmurou algo quase ininteligível durante seu sono:

— Garotinho Loiro.

Naquela noite, nenhum dos dois tiveram os pesadelos que se repetiam e os perseguiam em todos seus sonhos.


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Notas finais do capítulo

1 Esta mesma frase é mencionada no Capítulo Bônus: O bobão amaldiçoado do casaco de Zorua, quando o ainda Oikos se encontrou pela primeira vez com Hudson. Achei necessário esta nota para que vocês não fiquem tão perdidos devido ao longo tempo entre os capítulos para aqueles que acompanham cada novo lançamento. Penso em adicionar mais notas destas para melhor localizá-los durante os próximos capítulos.
Link do mapa descoberto até agora: https://i.imgur.com/sTcc46g.jpg
Acho engraçado que de acordo com o que leio, isto reflete diretamente na forma como conduzo a história aqui na fic. Quando comecei a escrever este capítulo (em agosto) estava relendo os dois primeiros livros da trilogia WondLa (que super-recomendo, por ser uma das melhores trilogias que já li!) e quando voltei aqui para terminá-lo, estava lendo Peter Pan (a obra original, de Barrie). O caminhar deste capítulo tornou-se uma mistura engraçada dessas duas obras (a interação da Pokédex com Hudson assemelha-se aos dispositivos de interação em WondLa; e algumas leves quebras da quarta parede assemelha-se a Peter Pan). Este detalhe se repete nos capítulos anteriores, quando estava lendo outras obras diferentes...
Enfim, espero que tenham gostado e até o próximo capítulo!



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