Finnick Odair — 65ª Edição escrita por Magicath


Capítulo 4
♆ — Morte Rubra


Notas iniciais do capítulo

Oi oi! Não pude me segurar até sexta, portanto aqui estamos com mais um capítulo fresquinho. E aproveitem, concentrem-se e não me matem porque nele acontece bastante coisa e é bem grande. O gif eu achei meio sem graça, mas foi o que eu consegui de última hora. Se encontrar algo melhor depois eu mudo.


Enjoy!



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MORTE RUBRA

 

Ruber mancava. Dava para notar claramente o esforço que fazia para andar apoiada em Jasper, como sua perna esquerda levantava rapidamente quando o pé encostava no chão, toda a força que colocava do lado oposto do corpo. Isso quando Jasper não a estava carregando. Observei seus movimentos por horas, contemplei sua perna ereta, mal se dobrando, arrastando-se ao longo de todo o caminho que fazíamos pela floresta. O som do sapato raspando o chão jamais abandonou minhas orelhas. 

Ela insistiu. Depois que Febe cuidou da maneira que pode da perna de Ruber, esperamos por alguns minutos, discutindo  o que fazer. Agora que tínhamos uma carreirista debilitada, não poderíamos andar por aí. 

Jasper queria que permanecêssemos no lago até que fosse saudável Ruber caminhar novamente, pois o ferimento poderia voltar a abrir, mas isso demoraria demais.  Ruber disse que era melhor sairmos de lá e que voltássemos à praia. Febe contrariou Ruber dizendo que ela não deveria andar de jeito nenhum, mas que concordava em sair dali e que a carreirista poderia ser carregada. Dessa forma, o grupo chegou ao consenso de voltar à praia, já que era o caminho que nós conhecíamos. 

O problema era que nem sempre Jasper conseguia carrega-la. Estava muito calor e o caminho era longo. Por mais forte que fosse, ele não aguentava leva-la por tanto tempo. Além disso, o relevo nem sempre era plano ou firme. Quando optava por andar, a caminhada ficava ainda mais demorada. Horas passaram e nem havíamos comido. Dava para escutar o ronco dos estômagos, portanto abrimos um pacote de salgadinho e compartilhamos enquanto andávamos. 

 

Eu sentia que o dia já estava para acabar. Eu odiava essa sensação. Era como se a tarde toda já tivesse passado e a noite estivesse se aproximando, mas na verdade mal havíamos passado do que seria a hora do almoço. Ainda era o começo do e tínhamos muito o que fazer: sobreviver, achar mais comida e montar as barracas. 

Ao meu lado, as flechas da aljava de Febe se remexiam pra lá e pra cá, fazendo barulho. A garota andava com ela pendurada nas costas e o arco na mão direita. Ela também coçava os braços a cada dois segundos. Notei que toda sua pele, do punho ao cotovelo, estava avermelhada e inchada.

— Por um acaso você encostou em algo venenoso, Febe? — perguntei.  Ao ver seu braço daquele jeito, comecei a pensar se não havíamos pego alguma alergia ou infecções daquele lago. A arena era sempre um lugar mortal e misterioso, até mesmo a exposição ao ar poderia ser um truque dos Idealizadores, assim como o ambiente ao nosso redor.

— Não — ela respondeu, sorrindo. Na verdade, foi um sorriso meio torto, como se rangesse os dentes.  — São só mosquitos. Eu tenho alergia e eles.

Olhei para os meus braços, para os cortes na pele causados por piranhas que cicatrizavam lentamente. Não havia marcas de picadas de mosquito. Olhei para ela novamente. Se ela não despencasse como um tronco de árvore em direção ao chão, então os mosquitos não eram uma preocupação.

— Acho que você tem sangue bom — eu disse, e foi a coisa mais estúpida que eu poderia dizer.

Febe me olhou pelo canto do olho.

“O que raios você quis dizer com sangue bom, Finnick?” repreendi-me. Revirei meus olhos para mim mesmo.

Permaneci olhando os arredores, procurando por movimentos, por algo que parecesse comestível. Andávamos o mais silenciosamente possível, mas num grande grupo como aquele era uma tarefa árdua não fazer barulho.

Logo pararíamos para descansar, o que atrasava ainda mais nossa chegada.  Jasler e Ruber precisavam se recuperar uns 10 minutos antes de repetir o ciclo. Nos revezávamos para servir de apoio a ela, mas o ideal era ela não caminhar. Tinha certeza que alguma hora quando parássemos ou chegássemos à praia enviariam-nos alguma dádiva para ajudar com a perna dela. Só poderia ser esse o motivo por estarem demorando, não é mesmo? 

Vi pelo canto do olho que Ruber parou ao lado de uma pedra e sentou-se, contorcendo o rosto de dor ao dobrar a sua perna.

— Vamos fazer uma pausa — ela disse.

Jasper parou e a analisou por alguns minutos, então deu de ombros como se não fizesse diferença. Ele repetiu a sugestão de Ruber para que a informação chegasse até Delphine, que estava mais à frente do grupo. Com um consentimento silencioso, nós nos sentamos, suspirando. O calor e os bichos em nossa volta em nada facilitavam. Eram mais de duas horas andando, com breves pausas, e o sol estava intenso sobre nossas cabeças.

Levei meu traseiro cansado ao chão e me apoiei em uma pedra coberta por musgos. Pude observar e sentir que as pequeninas plantas estavam úmidas. Lembrei-me também dos inúmeros cogumelos que vi pelo chão, também ocupando os troncos das árvores. Naquela arena havia chuva e fontes de água em abundância. A elevada umidade do ar era algo que também favorecia o crescimento dessas formas de vida.

Então um pensamento me ocorreu: se morrer desidratado ou desnutrido não era um dos perigos do jogo, então o que era? Por que os idealizadores decidiram colocar tantos recursos a nossa disposição?

As vezes as coisas são mais mortíferas do que parecem. Nem tudo que parece inofensivo, é inofensivo.

Vi que Febe parou no meio do grupo. Parecia insatisfeita.

— Eu vou caçar, ver se acho uma refeição decente — ela declarou. — Juntos fazemos muito barulho e espantamos os bichos.

— Certo — Jasper concordou, falando por todos. — Leve alguém com você, caso precise de ajuda. Mas voltem logo. Precisamos chegar logo à praia. 

É claro que levar alguém com ela não era somente por segurança, mas por garantia de que Febe não faria nenhuma besteira.  

Febe olhou para Ruber e uma expressão desapontada pintou-lhe o rosto. Preferiria a carreirista ferida com ela se, é claro, não estivesse ferida. Então, passou o olhar por mim rapidamente, ignorando minha presença. Nossas pupilas se encontraram na mesma linha, em sincronia, mesmo que por apenas um milésimo de segundo, e eu sei que ela até mesmo considerou a ideia. Eu fiquei um tantinho ofendido. Eu era cauteloso, compreensível — teimoso também, claro, mas isso não vem ao caso — e sabia muito bem caçar. Porém, eu já esperava e entendia as razões dela. Febe não me conhecia a fundo, portanto ela não confiava em mim, nem tinha clareza das minhas intenções.

O foco da garota se dirigiu à minha parceira de distrito, sentada em uma pedra, limpando uma de suas facas.

— Você vem comigo? — perguntou Febe. Delphine sorriu e acompanhou a outra garota. Não consegui ouvir o resto da conversa.

Cecil, estirado na grama, próximo a mim, bufou.

— Ah cara, será que ela... sabe, gosta de mulheres? — ele ponderou, delirando. Olhei para ele, com só uma das sobrancelhas levantadas, num olhar interrogativo, perguntando-me qual era o problema dele.

— O que? — Cecil exclamou, sentindo necessidade de se explicar. — Ela nos ignorou, principalmente você, o que parece impossível, já que todo mundo ama seu rostinho bonito. Ok, você é muito mais novo, eu entendo, mas, fala sério!

Balancei a cabeça em negação, sem conseguir segurar minha incredulidade. Cecil é a pessoa mais sem noção que eu conheci. Mais sem noção que minha piada falha sobre mosquitos e sangue bom.

— E isso importa? — questionei-o. — Ela não gosta de você. Pra que tanto esforço? Não é como se vocês pudessem ficar juntos. No final, você não vai poder sair com ela. 

A última frase foi a única que atraiu a atenção dele. Ele ficou pensativo por uns segundos, depois cruzou os braços e deitou no chão, a lança sobre o abdômen, sem descolar de sua mão.

— Você é um estraga prazeres, Finnick.

— Só estou sendo realista — murmurei. Não acho que ele tenha escutado.

— Poderia ao menos aproveitar antes de ser morto. Já aconteceu antes. As pessoas gostam de histórias trágicas de romance — ele resmungou para si mesmo. Com o braço sobre os olhos, protegendo-se do sol, ele ficou quieto.

Passou-se um tempo, o sol intensificou-se. Os raios e o mormaço criavam uma combinação radioativa que queimava a pele. Bloqueador solar não fazia parte do kit de sobrevivência carreirista que carregávamos, então eu aproveitava a sombra das folhas para me esconder do sol, mesmo isso não o impedindo de torrar minha pele. A de Jasper, por exemplo, já apresentava sinais de vermelhidão.

Ruber e Jasper conversavam em um canto. Eu tentava ouvir, mas pegava apenas palavras aleatórias que não formavam um sentido. De vez em quando ela checava a perna e eu ficava apreensivo, esperando que eles olhassem para mim com uma ameaça no olhar. Mas ela não fez isso. Talvez realmente não me culpasse, ou não se importava. Eu senti vontade, mesmo que mínima, um pequeno pontinho do tamanho de um átomo dentro do meu coração, de pedir desculpas, mas seria inadequado. Não era certo me importar. Quanto mais próxima da morte ela estivesse, melhor seria para mim.

Foi então que eu pressenti um movimento vindo de uma árvore e uma sombra escura movendo-se entre as folhas. Eu levantei-me, preparado, com a lança em mãos, procurando a origem da aparição. Esperava que fosse um tributo desatento.

— Pessoal... — eu disse bem baixinho.

Os outros olharam para onde eu apontava com a lança, para entre os galhos de uma árvore grande, onde um felino negro estava à espreita, só nos observando. Os olhos verdes do animal estavam vidrados em nós. Eles me lembraram os olhos de Helva. Senti um arrepio.

Cecil desesperou-se para levantar do chão, mas eu o impedi:

— Não mexa um músculo.

A criatura desceu da árvore e continuou a avançar na nossa direção com passos vagarosos. Abriu a boca apenas alguns centímetros para lamber os beiços. Ela era enorme; se pudesse ficar sobre duas patas, seria maior do que Jasper — que tinha aproximadamente 1,78 de altura. Eu não sabia exatamente o que fazer, se deveríamos atacar ou permanecer parados. Estava desesperadamente esperando uma ordem de Jasper.

Então uma flecha veio zunindo até atingir o flanco do animal, ao mesmo tempo em que Delphine surgiu por entre as árvores. O felino rugiu e se encolheu ao ser ferido, mas a flecha não o retardou o suficiente. Eu esperava que ele avançasse em Del, mas ele escolheu Ruber.

Eu prostrei-me na frente do animal e o golpeei com a lança com toda a força que consegui reunir para empurrá-lo. Ele caiu e foi arrastada longe, dando-nos uma brecha.

— Corram! — alguém gritou.

Eu disparei, não sei para onde. Mantive-me perto dos meus aliados para não os perder de vista e ficar a deriva no meio da mata, sozinho. Eu sentia que a fera nos perseguia com todos os benefícios que a natureza oferecera a ela para sua sobrevivência. Sentia que ela estava atrás de mim, farejando meu medo e desespero que exalava como perfume enquanto eu corria sem rumo. Pensei em subir em uma árvore, até lembrar que felinos como aquele conseguiam fazer isso também.

Não foi o que eu fiz, mas foi o que Ruber fez. Ou tentou fazer.

Ela tentou escalar uma árvore. Mesmo com a perna ferida, o que já fora o primeiro erro dela. Ela não era idiota, muito menos burra, mas momentos de desespero nos fazem tomar medidas desesperadas.

Foi por isso que, quando vi a sombra preta em alta velocidade alcança-la, eu parei de correr. Avistei Jasper longe, não presenciando a cena, não notando o perigo que a aliada corria. O animal subiu na árvore e fincou as garras na perna da carreirista, arrastando-a até o chão. Ela gritou tão alto que o som de sua voz poderia ser captado quilômetros de distância.

Entrei num impasse. Meu coração batia acelerado bombeando sangue para todos os lugares necessários. Ele corria fervente pelo meu organismo, coberto de adrenalina. A questão era: ela era minha aliada; numa aliança, deveríamos trabalhar em equipe. Porém, lá, na arena, é cada um por si... Eu deveria ajuda-la? Ou só presenciaria seu corpo sendo estraçalhado enquanto não fazia nada? O certo a fazer seria o errado?

Até hoje não sei o que era correto naquela situação, se minha decisão fora lógica. Mas corri até ela, pronunciando um batalhão de xingamentos, amaldiçoando tudo, abominando minha escolha, porém não conseguindo lutar contra.

Tinha muito sangue no chão, em Ruber, em todo lugar. Antes que o animal abocanhasse a cabeça da minha aliada, seus olhos me fitaram e eu soube imediatamente que eu era o novo alvo.

Dentro das pupilas negras dele eu vi a minha própria morte. Eu pensei em fazer tudo, menos algo sensato. Eu ia congelar no lugar devido ao pânico; iria correr, gritar, fugir. Mas, de acordo com os ensinamentos da academia, era inadmissível que um carreirista não tomasse posição e amarelasse. Era inconcebível deixar-se ser dominado pelo desespero.

Eu só senti patas enormes e uma força descomunal sobre mim, levando-me ao chão. Defendi-me com a lança, impedindo que os dentes mortíferos chegassem mais perto. Tentava me desvencilhar usando toda a minha força, todos os artifícios do meu corpo, empurrando o felino com a lança e com meus pés. Parte do meu esforço foi em vão. Ele me arranhou com suas unhas mortíferas no ombro e em outros lugares. Saliva com sangue escorreu de sua boca e pingou em meu rosto.

Quando comecei a perder a esperança, com meus braços já fraquejados, Jasper apareceu e cravou seu facão no pescoço do bicho. O animal grunhiu de dor, alto e intensamente, dando a chance de me libertar. Assim que estava a salvo, a raiva me consumiu por dentro e eu enterrei a lança em seu peito, onde deduzi estar seu coração. A fera caiu, debateu-se até seu coração parar, até o sangue não mais circular pelo seu corpo, seus órgãos falharem um por um e o oxigênio lhe faltar.

Eu estava ofegante e sangrando. Quando encostei no ferimento para verifica-lo, toda a região em volta ardeu como o inferno.

Porém, Ruber estava cem vezes pior.

A perna dela já não era mais uma perna. Era uma mistura de sangue, pele e músculos dilacerados. Parecia... mastigada. Lembro até hoje a sensação terrível que tive ao observar aquilo, um arrepio contínuo dos dedos do pé até o último fio de cabelo, uma vontade de vomitar e desmaiar. E, para piorar, ela urrava de dor. Lágrimas lavavam a sujeira no seu rosto, deixando rastros.

Para tributos espertos, os gritos alertariam perigo, logo, eles se afastariam. Somente o mais sem noção e talvez mais ousado se aproximaria para verificar. Quando notasse o bando carreirista, fugiria. E, só se fosse extremamente suicida e confiante, atacaria. Portanto, não nos preocupamos em silenciar a garota.

O resto do bando se reuniu entorno dela. Todos estavam em silencio, só escutando Ruber agonizar, observando o cenário de horror. Demorei para entender porque ninguém fazia nada. Às vezes eu era muito inocente. No entanto, assim que olhei para Delphine e ela balançou a cabeça, eu entendi.

Ruber não iria sobreviver. Não poderíamos leva-la conosco, seria um atraso, um empecilho. Mesmo que a levássemos com ela, sempre dependeria de nós para alguma coisa. Ela já não podia mais andar, não tinha como salva-la dentro da arena. Tínhamos apenas duas opções: matá-la ou abandoná-la para morrer. Algo me dizia que a primeira opção seria menos dolorosa.

Febe segurou o ombro de Jasper, aproximando-se para dizer algo. Eu, que estava ao lado deles, pude ouvi-la.

— Não podemos continuar assim.

Ele assentiu, compreendendo o que viria a seguir. Jasper se ajoelhou ao lado dela e analisou bem o estado de sua perna. Não havia salvação.

— Jas... — a carreirista e amiga apertou o braço dele com força e contorceu-se. — Não posso aguentar isso.

— E-eu... — ele balbuciou. Percebíamos que a vontade dele era lutar contra aquilo e ajudar Ruber, mas ele era inteligente e sabia que não era possível. — Sinto muito Ruber.

Jasper se levantou e deu sinal positivo com o olhar. Pegou sua espada e girou-a nas mãos, mas ainda hesitava. A garota ferida fechou os olhos e derramou mais algumas lágrimas, aceitando a sentença.

Pelo menos ela morrerá com o que restou de sua dignidade, pensei. Mas eu estava errado. Podemos viver com dignidade, mas não morrer com ela. Não existe dignidade em morrer e apodrecer.

Jasper não era do tipo que andava para trás diante de circunstâncias assim. Ele tinha clareza de que a vida de Ruber não valia nada para ele no jogo; não deveria, na verdade. E, para mim, aquela foi uma hesitação comum. Nós todos hesitávamos enquanto a garota ferida pedia enlouquecidamente para acabarmos logo com aquilo. Eu não ousava me mover, não ousava dar o tiro certeiro. Jasper aceitaria a morte dela de qualquer forma, mesmo assim... preferia não arriscar.

— Façam logo! — ela gritou uma última vez, então o som de sua voz foi abafado por um zunindo cortando o ar. Seu corpo sem cor e sem vida caiu para trás. O tiro do canhão soou e Febe baixou o arco.

 

Estava silencioso demais naquele fim de tarde.

Retornamos à praia. Armamos as barracas, montamos uma fogueira, onde assávamos os peixes que eu e Del pescamos. Ninguém pronunciava uma palavra.

Quando fui deixado sozinho com as ondas do mar, comecei a refletir. Algo parecia errado. Depois do incidente daquela tarde, o clima entre os membros da aliança não era o mesmo, mas sabíamos que deveríamos continuar unidos. Para mim, porém... era diferente. Mesmo adolescente, sempre fui um tanto independente, preferindo não compartilhar meus pensamentos e agindo sozinho. Dessa forma, nada me restringia. Eu me sentia preso, coisa que odiava sentir. Acontece que desde o momento que pisei na arena até o meu último suspiro eu me senti assim. A revolução iria enfim me libertar, mas eu não sobrevivi para saborear da liberdade.

Infelizmente, naquele momento, eu atribuí esse sentimento ao grupo dos carreiristas. Se eu quisesse ganhar, eu deveria mostrar meu valor. Sim, eu estava prestes a tomar uma decisão maluca e impulsiva. Era melhor fazer isso sozinho, sem me preocupar com alguém a não ser eu mesmo. Afinal, eu nunca senti parte dos carreiristas. 

Eu sabia que podia sobreviver por conta própria, mas porque continuava na aliança? Bem, hoje eu entendo que estava com um pouco de medo me arriscar. A vida com os Carreirista trazia-me certa segurança; dádivas em um piscar de olhos, refeição todas as noites, um lugar seguro e o conforto de uma fogueira para dormir. Lá fora... eu não teria nada disso.

Mesmo assim, se eu quisesse vencer, não poderia sentar meu traseiro na areia e só esperar a tranquilidade acabar até a hora que todos nós começássemos a nos matar. Enfiei na minha cabeça que eu precisava correr atrás da minha vitória.

Fui maior que meu medo — talvez, mais estupido que ele, também — e levei a decisão de ir embora ao auge.

Havia um problema, porém. Se eu saísse de mãos vazias, estaria escasso de recursos que me ajudariam. As armas eram minhas, tinha uma faca e uma lança. Sabia caçar, não precisava assaltar as provisões. A água, por outro lado, era um fator limitante. Consegui-la não era um desafio, ter onde guardá-la era. Não poderia levar nada para me proteger do frio. Teria de me privar dos sacos de dormir.

Eu poderia dar um jeito de adquirir todas essas coisas, mas levá-las seria o problema. O uniforme da arena não oferecia bolsos suficiente para guardar tudo. 

O que mais me doeu o coração foi o estojo de primeiros socorros. Nem mesmo conseguiria furtar um utensílio, pois ele se encontrava ao lado de Jasper na barraca dos garotos. Pensei também na caixa de fósforo, na lanterna, nas cordas...

Parei de pensar nisso ou eu ficaria deprimido. Se os Jogos Vorazes era um jogo de sobrevivência, então deveria garanti-la com minhas próprias mãos. Usar a natureza e toda a minha sabedoria ao meu favor, já que a sorte não estava. Nunca estava.

O mínimo eu teria que conseguir. Bom, não custava tentar. De última hora, é claro, e feito sob o efeito do desespero, eu já tinha todo o meu plano elaborado. Só faltava esperar até o anoitecer.

Entrei na barraca, esperando que Jasper e Cecil não acordassem, mas assim que abri a caixa de primeiro-socorros, o garoto ruivo se remexeu.

— Precisa de algo, Finnick? — perguntou.

Peguei um fraco de pomada antisséptica e balancei para ele.

— Só disso aqui — falei. Apontei então para meu ferimento no ombro, feito pelo felino que encontramos mais cedo. — Está doendo, preciso aplicar novamente.

— Tudo bem. — Ele não protestou.

Sai da barraca suspirando aliviado que pelo menos essa parte dera cedo. Enfiei o frasco no bolso.

Havia uma bolsa menor, que Cecil recolhera na Cornucópia, de uma alça só. Essa eu pegara e escondera em um local próximo a fogueira. Dentro, havia minha linha e o anzol, os temperos e bandagens, tudo que eu poderia fazer caber lá dentro

Sentei ao lado de Delphine em frente a fogueira para nosso turno de vigília. Ela deu um sorriso rápido como cumprimento e eu retribuí. Espreguiçou-se e ajeitou o corpo no tronco da palmeira, observando as estrelas.

Logo o hino da Capital preencheu a arena e as baixas foram mostradas. Só o rosto de Ruber apareceu entre os pontinhos brilhantes e desapareceu depois de alguns segundos no céu.

O silêncio permaneceu, sendo rompido apenas pelo crepitar do fogo. Nós não falávamos nada. Era estranho, porque eu queria conversar, queria me sentir humano no meio de todo aquele caos. Ao menos, nem que por um segundo, ser uma pessoa normal conversando com alguém normal.

Os corpos celestes estavam estonteantes naquela noite. A luz intensa do fogo era refletida no cabelo de Del, dando a ele um tom alaranjado, e nos seus olhos castanhos. Toda vez que olhava para ela, lembrava-me das vezes que conversávamos na Capital, de todas as vezes que ela fora gentil. E eu, no entanto, não conseguia deixar de pensar que ela não estaria comigo no fim. Que no final de tudo, ela desapareceria da minha vida como poeira. Saber que ela estava ali comigo, sabendo que não poderia estar e no fim não estaria. Era... anormal, desconfortável pensar que a existência dela não seria nada de importante na minha vida.

Mal percebera eu que estava encarando ela. Del virou o rosto rapidamente, olhando no fundo dos meus olhos.

— Algum problema? — ela perguntou, sorrindo. Como ela sempre conseguia sorrir daquele jeito?

— O que...? — perdi-me nos meus pensamentos por um momento. — Ah, desculpa, só estava pensando.

Ela balançou a cabeça, voltando a olhar para as ondas.

— É isso que faz quando fica sentado na água por horas, olhando pro nada? — indagou.

Assenti.

— Ajuda a relaxar — respondi.

— Hm, entendi — ela pronunciou num tom um tanto suspeito. — Pensar em coisas de casa faz você se lembrar de quem é.

Fiquei quieto e não respondi. No fundo, sabia que aquilo era verdade; Del tinha acertado em cheio. Se tivesse demonstrado choque que estava surpreso ao ouvir aquilo, denunciaria que ela revelara um dos meus segredos.

— Eu entendo — Del riu levemente. — Na verdade estou surpresa, Finnick Odair. Achei que você não tinha sentimentos.

— Eu não sei se devo considerar isso um insulto ou elogio — brinquei.

— Considere um elogio.

Ela virou o rosto. Com o dedo, começou a desenhar algo na areia. Vi pelo canto do olho Del bocejar.

— Você pode tirar um cochilo — sugeri. Del levantou uma das sobrancelhas, questionando. — Relaxa, eu fico de olho. Os outros nem vão saber.

Era uma ideia muito tosca, você deve imaginar. Mas eu precisava tentar. E se Delphine confiava em mim o suficiente, ela iria ceder. O olhar de desconfiança permaneceu; no fim, porém, ela deu de ombros.

— Tudo bem, melhor assim. Vou ter que fazer turno com Jasper mais tarde também — disse. — Acorde-me um pouco antes de trocarmos com Cecil e Febe.

A garota se esticou e deitou-se sobre a areia, de costas para mim. Mordi o lábio; estava ansioso e nervoso.

Esperei mais alguns minutos para sair. Fiquei fazendo e desfazendo nós em uma pequena corda que trouxera comigo. Quando deduzi que já passara tempo suficiente e minha aliada estava imersa no mundo dos sonhos, pus-me em pé lentamente, como uma criança se esgueirando a noite pela cozinha para furtar biscoitos.

Desenterrei a bolsa da areia. Assim que dei os primeiros passos, com meus suprimentos já em mãos, uma faca cravou-se no chão a centímetros dos meus pés.

— Você não achou que me enganaria fácil, não é, Finnick? — Delphine sorriu de uma forma diferente dessa vez, um tanto ácida, declarando sua vitória.

Suspirei, derrotado.

— Estava mesmo achando fácil demais — confessei.

Não consegui prever o que ela faria em seguida, portanto fiquei apreensivo, parado no mesmo lugar. Então, Del catou o odre de água ao seu lado e jogou-o para mim.

— Seria muita idiotice sair sem um desses.

A tensão não foi aliviada, mas agradeci da mesma forma.

— Obrigada.

— Não se preocupe — cochichou, piscando em seguida. Um sorriso zombeteiro brilhou nos lábios dela. — Vamos nos encontrar novamente, Finnick.


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Notas finais do capítulo

Bem, gostaria de saber o que acharam sobre (1) Ruber morrer no segundo dia e o jeito que morreu e (2) A fuga do Finnick, incluindo a decisão de Delphine. Podem escancarar suas bocas e jorrar suas opiniões, eu aguento hahahaha

Bom, acho que é só. Obrigada, pessoal.

Att,
Magicath.