The Witcher: Broken Blades escrita por BadWolf


Capítulo 19
Roche


Notas iniciais do capítulo

E chegamos ao Epílogo do Roche, espero que gostem!



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Agora não existe mais uma Teméria livre e independente. Um sol escuro se agiganta sobre suas muralhas. Porem, ainda existe temerianos. E sempre existirão. Enquanto o povo ainda acreditar, o usurpador que tomou nossa amada capital, Vízima, e a tratou como sua propriedade sempre terá de olhar por cima de seus ombros com medo. Pois nas sombras não há somente uma adaga, mas o poder de uma nação de adagas, esperando para aplicar o golpe de justiça.

 


(trecho do Livro “O Que Irá Acontecer com a Teméria?”)


            Olho de corvo emitia um aroma interessante quando fervido. Não era considerável agradável pela maioria das pessoas, mas Turiel gostava daquele cheiro. Era particularmente amadeirado e a lembrava de uma boa caminhada na floresta em um dia de chuva. Qualquer pessoa que escutasse suas impressões a daria por louca, por isso Turiel limitava a guarda-las e apreciá-las na solidão de sua choupana, enquanto preparava extratos e elixires.

            Havia se passado duas semanas desde a partida de Iorveth e Saskia e a morte de  Elendil. Para surpresa da elfa, o luto que se seguiu depois disso não foi algo tão dolorido quanto à incerteza dos anos de seu desaparecimento, que a levaram a concluir que ele estava morto. Talvez porque, no fim, Elendil já não era mais o mesmo. Havia amargado anos na prisão, anos estes que ela sabia que foram de conformismo com sua situação injusta, apesar de ninguém ter mencionado coisa alguma. E, após passar por tamanha provação, ele descobre que os humanos – ou dh’oine, como agora passou a chama-los – subtraíram não apenas seis anos de sua vida, mas também o seu filho. Dado a dificuldade com que elfos costumam conceber, o único filho que os dois poderiam ter.

            Neste ponto, Turiel sentia inveja dos humanos. As mulheres, que algumas acabavam por engravidar ainda durante o resguardo, sua curta gestação de nove meses e a extrema facilidade com que se recuperavam de uma gravidez, estando pronta para próxima, como se a única função biológica de seu corpo fosse parir. Os homens, que eram capazes de ser poligâmicos – apesar de tal comportamento ser visto pela sociedade como algo imoral – e manter três casas, cada uma delas repletas de crianças, para não dizer daqueles que tinham uma vida itinerante e deixavam um filho em cada cidade que pernoitavam. Uma vez, Turiel ouviu de um anão que os humanos eram, na verdade, uma “máquina de trepar”. A elfa não iria tão longe, mas reconhecia que nenhuma raça conseguia abatê-los no que tange a procriação. Melitele, a dita deusa da fertilidade e protetora das mulheres, deveria ser mesmo uma deusa extremamente poderosa.

            Em meio às suas divagações existenciais, Turiel não pôde deixar de ter seus pensamentos voltando, vez ou outra, à menina Anya e o estranho pai dela. Talvez ela tivesse ido longe demais ao ter arrancado o seu chapéu. Especialmente porque toda a situação foi deliberada. A garrafa de Mahakam, que ela tinha planos para vender, acabou sendo usada com propósitos de vingança. Turiel tinha uma natureza calma, mas sua intimidade era algo intocável. Aquele que ousasse profana-la pagava caro por isso. E conhecendo Roche, ela sabia onde melhor atingi-lo: seu chapéu com forma de toalha, que ele não tirava da cabeça de modo algum. Era uma vingança com ares de traquinagem, algo que não deveria acabar tão mal assim.

            Agora, tudo que ela poderia se perguntar era o que havia acontecido aos dois, especialmente com Anya, tão jovem e já levando uma vida tão irregular ao lado do pai errante. Ela só esperava que nada de mal lhe acontecesse.

            Quando preenchia o último frasco de extrato de Olho de Corvo, Turiel notou que os pássaros, que adoravam ficar pousados sob a copa das árvores aquela hora do dia, se agitaram. Um pressentimento estranho lhe pedia para verificar o que era.

            -Roche? – surpreendeu-se a elfa.

            O temeriano estava outra vez com sua filha, mas não estavam sozinhos. Havia mais uma mulher ao lado deles. Uma humana, de belas feições, com os cabelos loiros e curtíssimos, porém tão armada até os dentes quanto Roche. Carregava um exótico aroma de sabão de lavanda bastante inebriado pelo cheiro sempre enferrujado de sangue humano. Um bom indício de que ela era um soldado.

            -Turiel.

            Ao contrário dos tempos idos, Turiel sentiu que o coração de Roche estava em um ritmo plenamente normal. Não ficava mais acelerado quando por perto. A elfa, então, percebera que Roche já não tinha mais segredos diante dela. Ou ao menos assim ela pensava.

            Os três entraram à casa de Turiel, que lhes serviu água. A elfa pôde reparar melhor na mulher loira que acompanhava Roche e concluiu que ela não era mãe de Anya. Sim, ela era uma mulher bonita, mas não tinha as feições da menina. A beleza tranquila e pacífica de Anya.

            -Turiel, está é Ves. Ves, Turiel. Ves é meu braço-direito nos Listras Azuis.

            -Braço-direito? – estranhou Turiel. – Os Listras Azuis permitem que outros além do Comandante possuam um braço-direito?

            Roche e Ves se entreolharam, hesitantes.

            -Turiel – começou o temeriano. – Há muitas coisas que não te contei durante a minha estadia aqui. Não foram propriamente mentiras, mas omissões, pois eu não confiava plenamente em você.

            Turiel rolou os olhos.

            -Por que todos ao meu redor parecem sentir a necessidade de me enganar?

            -O quê?! – estranhou Roche seu devaneio. A elfa bufou, aparentando estar cansada.

            -Esquece. Foi só uma constatação minha. – disse Turiel, sentando-se em um banco. – Mas é claro, que outra coisa esperar de você senão desconfiança?

—Precisa admitir que o sentimento foi mútuo. – retrucou Roche.

—Como não ser? Uma elfa abrigar um Listra Azul em sua própria casa é como uma ovelha dar abrigo à raposa.

Anais não entendeu muito bem a comparação, mas riu levemente com a semelhança às suas histórias infantis.

            -Não é pra tanto. Os Listras Azuis não necessariamente caçam inumanos, mas rebeldes. Se os Scoia’tael fossem humanos, nós os caçaríamos mesmo assim. Mas enfim, não cruzei meia Teméria em um cavalo a ponto de deixar minha bunda dolorida para ter uma conversa com você sobre um conflito que perdura por séculos. Trata-se de Anais.

            -Anais... Acho que esse era o nome da filha bastarda do Rei Foltest, não é?

            Sentada ao lado de Turiel, Anais estremeceu ao ouvir, ainda que indiretamente, a opinião de Turiel sobre sua verdadeira identidade. Uma opinião deturbada a seu respeito de alguém que ela tanto prezava. Isso a feriu um pouco.

            -Exatamente.

            -Não entendo o que eu tenho a ver com essa menina. Muito menos você, pois afinal você é um mero soldado que...

            Os olhos de Turiel se arregalaram repentinamente. Claro. Roche sabia que a elfa havia sido ludibriada, mas também não era tola a ponto de não reunir, sozinha, todas as peças do quebra-cabeças quando estas fossem postas diante de si. Não foi necessária uma longa e desculpada confissão de sua parte. Apenas confirmações.

            -Anya... É na verdade Anais?

            -Sim. – respondeu Roche, calmamente.

            -Então... Você não é um mero soldado Listra Azul, como me fez acreditar.

            -Não. Meu nome é Vernon Roche e eu sou o Comandante dos Listras Azuis. Em outros termos, o que se poderia dizer “A Mão Esquerda” do Rei Foltest. Alguém preparado para executar ordens que os outros não são capazes de cumprir.

            -Então, a mãe de Anya... Quero dizer, a mãe de Anais não está morta. – corrigiu-se Turiel.

—Ela está a salvo. – mentiu Roche. O olhar direcionado a Turiel praticamente parecia suplicar a elfa para que ela não insistisse em saber mais detalhes sobre o paradeiro dela.

            -E muito menos a mãe dela é sua esposa.

            Roche riu. – Jamais teria qualquer chance com uma mulher bonita daquelas, nem se ouro transbordasse dos meus bolsos. A mãe dela é a Baronesa La Valette. O pai dela, o Rei Foltest. Anais tem sangue real correndo em suas veias. No momento, ela é a última esperança da Teméria.

            -Um peso e tanto para se colocar nos ombros de uma menina de oito anos, não acha?

            A frase pareceu acertar um nervo de Roche.

            -Nem todos nascem com as responsabilidades do tamanho que desejam.

            Turiel pareceu satisfeita com isso, enxergando um pouco de verdade em sua observação. Seus olhos voltaram-se para a menina, que escutava toda a conversa a respeito de seu futuro com uma atitude indiferente que lhe assustava. Ela não opinava ou se pronunciava sobre absolutamente nada. A elfa se perguntou a quanto tempo aquela menina se submetera a ser relegada de sua própria vida. No fim, chegou ao seu entendimento que Anais se comportava como uma criança da monarquia: uma criança que sabia que estava destinada a algo grandioso e que não poderia fazer nada a respeito para mudar isso.

            -Espero que tenha compreendido o porquê de minha omissão.

            -Do mesmo modo que compreendi o porquê do seu maldito chapéu. – declarou Turiel, deixando Ves chocada. Os olhos azuis da temeriana pareciam dizer “ela também sabe sobre suas orelhas?”

            -No fim, você compreendeu.

            -De um modo torto, sim. Mas acho que a comparação que eu mesma fiz é um tanto infeliz. Tudo que fez ao inventar um nome para a menina e omitir sua verdadeira história de mim foram protegê-la das mãos de uma estranha, que tinha todos os motivos do mundo para cortar o seu pescoço enquanto dormia. Já o seu maldito e ridículo chaperon foi um gesto para ocultar uma hipocrisia de sua parte. Mas parafraseando um certo Comandante temeriano, você não cruzou meia Teméria sob um cavalo a ponto de ficar com a bunda dolorida apenas para discutir comigo problemas entre elfos e humanos. Dá para perceber pelo seu semblante cansado, o cheiro de sangue fresco que está exalando de um curativo na sua cabeça, para não mencionar o odor de carniça entranhado na sua farda, que você passou por algo ainda pior do que uma bunda cansada de viagem. E tudo por causa de Anais. Os meios pelos quais você atinge seus objetivos, Vernon Roche, são extremamente inaceitáveis e questionáveis, mas por trás deles, está a sobrevivência do seu país, no qual você deposita em uma menina de oito anos por quem eu sei que você nutre um profundo afeto, embora jamais vá admitir isso em voz alta.

            Todos entreolharam-se com hesitação, até que coube a Roche cortar o silêncio.

            -Então... – começou Roche. – Você não está furiosa com minha omissão?

            Turiel rolou os olhos.

            -Você não prestou atenção em nada do que eu disse, não é?

            O temeriano riu levemente. – Foi um discurso interessante.

            -Para responder a sua pergunta, não. Não, eu não estou furiosa. Teria feito o mesmo em seu lugar, embora seja difícil me imaginar em seu lugar, já que você cheira tão mal.

            -Caralho, outra vez você e essa sua história de que eu sou fedido...

            Ves riu da irritação de Roche.

            -Mas você fede, Roche. Eu estou mentindo, Ves? Ora, mas a quem estou perguntando...

            -Você está querendo dizer que eu sou fedida também? – ofendeu-se Ves.

            -Não tanto quanto ele. Só quis dizer que como braço-direito, você deve estar acostumada ao cheiro horrível dele.  Não me leve a mal, é que tenho o olfato extremamente apurado e isso me leva a situações constrangedoras, na maioria das vezes. Da mesma forma como quase tenho um orgasmo quando passo em um campo repleto de gardênias, eu também quase desmaio diante de humanos que passam todo o inverno sem se banhar, ou os que têm a tarefa de matar como ofício. E nesse quesito, acho que o seu Comandante é uma das pessoas mais fedidas que já conheci em toda a minha vida.

            -O que você acha que seria ideal para um humano ser “satisfatoriamente limpo” aos seus padrões de higiene élfica? – perguntou a temeriana, curiosa.

            A elfa parecia analisar.

            -Um banho por dia, no mínimo.

            -Isso deve fazer mal. – alegou Roche. – Sabe, a pele deve descascar...

            Turiel rolou os olhos, enquanto Anais ria de toda aquela estranha conversa.

            -Não seja estúpido, Roche. A pele humana nem de longe é feita de açúcar para tanto.

            -Mas você nem toma banho todos os dias!

            Ves pareceu surpresa ao perceber que seu comandante sabia detalhes íntimos da vida da elfa. Turiel retrucou.

            -Vocês, seres humanos, possuem pelos, o que os torna mais sucintos a serem fedidos. Há quase um consenso entre os elfos que vocês são resultado de uma evolução entre primatas...

            -Ah não. Já ouvi essa história antes. Vocês, elfos, alegam que os humanos são peludos porque vieram dos macacos. Pois saiba que essa é a coisa mais estúpida que já ouvi falar em toda a minha vida. Em minha opinião, se trata de uma balela inventada pelos elfos só para nos ridicularizar.

            Turiel riu da irritação de Roche.

            -Eu tenho uma teoria – começou Turiel – de que os humanos mais fedidos são justamente os mais peludos.

            Ves arregalou os olhos.

            -Então... Você é bastante peludo, Roche? – perguntou Ves, fazendo Roche quase se engasgar.

            -Que pergunta escabrosa é essa, Ves? Eu ainda sou seu Comandante, porra! – exclamou Roche, ficando cada vez mais irritado com as risadas das duas mulheres, enquanto Anais observava a tudo com extrema confusão, não entendendo porque Roche estava tão irritado e porque as duas mulheres riam sem parar.

            -Oh, Ves, se você tivesse a audição um pouco mais apurada como a de um elfo Aen Seidhe, saberia que o coração dele está quase saltando pela boca. É melhor mudarmos de assunto, antes que seu “Comandante” tenha um enfarto. Que tal mantermos nossas bocas ocupadas com uma boa fritada de ovos?

            -Bem a porra que eu precisava! – exclamou Roche, erguendo as mãos aos céus.


II



            A noite se estendeu para mais um dia, que se estendeu para outra noite, e depois outro dia começou a raiar. Turiel havia acordado para preparar chá na cozinha quando sentiu alguém se aproximar dela. Era Roche.

            -Precisamos conversar. Em particular.

            A elfa assentiu. Largou a chaleira com água fervida, depositando o conteúdo em um bule, e acompanhou Vernon Roche até o lado de fora. Era manhã cedo e Ves e Anais estavam dormindo. Apesar do semblante firme, Ves estava exausta e dormia profundamente. Anais sempre foi mais dorminhoca, especialmente em uma cama com cobertas, de modo que o Comandante e a elfa eram os únicos acordados no raiar do dia.

            Os dois caminhavam juntos, para longe da casa. Foi Roche quem começou.

—Preciso te pedir uma coisa. Você tem todo o direito de negar, se quiser...

            -Eu aceito.

            Roche parou imediatamente de caminhar.

            -Como assim? Eu nem mesmo cheguei a te pedir...

            A elfa se virou para ele.

            -Ontem, soube que Nilfgaard invadiu a Teméria. Vízima está ocupada. O pouco de Exército que havia foi massacrado. Seu reino está em frangalhos, Roche. Sua Teméria praticamente deixou de existir. Logo que pus os olhos em você, tive certeza de que esteve na guerra, embora eu não faça a mínima ideia de como sobreviveu. E como eu disse, você gosta de Anais. Talvez mais do que gostaria, ou sente que deveria, mas você gosta dela. Talvez, aos seus olhos, ela seja a filha que você jamais será permitido a ter em sua vida como soldado.

            Roche assentiu com a cabeça.

            -Anais é filha do homem que fez mais por mim do que meu próprio pai jamais fez, apesar do meu pai não ter feito exatamente nada, pois eu jamais o conheci. Se não fosse por Foltest, eu seria um bêbado ou um vagabundo. Ele deu um voto de confiança a um camponês com uma espada na mão e poucas perspectivas e fez de mim o que sou. Mas... Acho que você está certa. Eu me apeguei a Anais. Profundamente. E tudo que fiz nos últimos tempos foi pensando no bem dela, em sua integridade, por mais que eu tenha cometido alguns erros no caminho.

            Os dois caminharam por mais alguns instantes.

            -Bom, eu aceitaria a sua presença em minha casa de bom grado, assim como a de Anais, contanto que tomasse banho “pelo menos” de dois em dois dias.

            Roche riu.

            -Será que minhas orelhas estão sujas e eu não ouvi bem, ou você realmente está me convidando para morar com você?

            A elfa apenas deu de ombros.

 -É bem possível que suas orelhas estejam sujas, mas você escutou corretamente.

            Roche voltou a falar.

            -Depois de todo o massacre que presenciei na batalha do Monte Carboun, a oferta de me abrigar na floresta, longe de nilfgaardianos, e acompanhar o crescimento de Anais até atingir a maioridade seria muito tentadora. Mas não posso me dar ao luxo de me esconder quando ainda há muito a ser feito.

            -Você ainda acredita que a Teméria poderá reverter esta situação?

            -Não sozinha, infelizmente. Precisaremos nos voltar a aliados. Ainda há a Redânia.

            -E também Kaedwen, que quer a sua cabeça. – completou Turiel, mas Roche ignorou.

            -O que quero dizer é que estes reinos tem poderio bélico o bastante para repelir Nilfgaard do Norte. Nenhum deles está confortável em ver Cavaleiros Negros do outro lado do rio Pontar. A ambição do Imperador Emhyr desconhece limites. Ele irá desejar o Norte todo para si, e não descansará enquanto esse dia não chegar. Teméria e Aerdin foram só o começo.

            Os dois pararam de caminhar.

            -Eu prometi a Anais um Reino. E será isso que irei entregar a ela, quando eu retornar. Isso poderá levar anos, tempo o suficiente para que ela cresça longe de todas as intrigas e desgraças dos nobres, dos Reis e de seus esquemas. Anais será uma monarca diferente. Ela crescerá e viverá entre camponeses e inumanos, desenvolverá uma visão de mundo única, que nenhum monarca antes dela jamais sonhou em ter. Entende o que estou te pedindo, Turiel?

            -Sim. Você quer que eu seja uma espécie de “tutora” dela.

            -De certo modo, sim. E aposto que ela desejará que você seja a Conselheira dela, quando ela ocupar o Trono da Teméria, por isso vá se preparando para o convite.

            A elfa riu. – Não sei por que diz isso. Conselheira é cargo para feiticeiras.

            -Exatamente.

            Foi a vez de Turiel parar de caminhar ao lado de Roche.

            -Desde quando? – perguntou a elfa, constrangida. – Desde quando você sabe que eu sou uma feiticeira?

            Roche suspirou. – Nenhuma reles herbalista enfrentaria uma caverna repleta de nekkers só para coletar cogumelos. Somente bruxos e feiticeiras teriam tal coragem. Aqueles filhos da puta são uns astutos do caralho. Além disso, eu convivo bastante com uma feiticeira e pude notar os tiques de megalomania delas em você.

            Turiel riu novamente. – Então, por isso a desconfiança?

            -Claro. Em apuros, acabo por topar com uma feiticeira elfa, imagina a minha consternação? Mas depois, percebi que você era diferente. Talvez, estava mais para Triss Merigold do que Phillipa Eilhart. E caso não saiba, isto é um elogio.

            Que engraçado... Iorveth também mencionou essa Phillipa Eilhart.

Será que Roche e Iorveth se conhecem?

Não. Seria muita coincidência. Mas...

—O que foi? – perguntou Roche. – Parece que viu um fantasma...

Sim, eles se conhecem. Iorveth disse que o maior inimigo dele era um temeriano chamado Vernon Roche... Sim, os dois se conhecem. Não só se conhecem como são grandes inimigos.

—Qual o problema, Turiel? – insistiu Roche, diante do silêncio e do olhar mortificado da elfa.

—Nada. Nada mesmo. Não é nada.

—Turiel, você está bem? – questionou mais uma vez Roche, desta vez cruzando os braços. Não recebendo maiores explicações, o temeriano bufou. Mulheres, sempre tão problemáticas... E o pior é que vivo cercado delas. E nem sempre do modo que eu gostaria.

—Enfim, como eu estava dizendo, você é uma feiticeira, portanto entende de política. Quero que a ensine a não ser ingênua, a entender de estratégias e também linhagens reais. Também quero que permita a ela permanecer a treinar com espadas. Sei o que quer dizer, que ela é uma menina, mas uma monarca precisa saber se defender e precisa entender de batalhas, exércitos... Sabia que iria concordar comigo. Todo o conhecimento que ela precisar para ocupar um trono, passe a ela. Enfim, tenho certeza de que Anais estará bem protegida com você, até o momento em que ela esteja pronta para governar a Teméria.

            -E que a Teméria esteja pronta para ser governada. – acrescentou Turiel. – Algo que, aliás, pode não acontecer. O que fará se seu objetivo fracassar? E não me olhe assim. Sua força de vontade em restaurar seu país pode ser impressionante, mas apenas isto não bastará. Já considerou todas as possibilidades?

            -Sim. – concordou Roche, reflexivo. – Eu admito, há um risco implicado em minha tarefa, e como deve ter percebido, eu não sou mais nenhum garoto. Daqui a alguns anos, não terei mais fôlego para embarcar em conspirações políticas ou coisas do gênero. E até lá, caso a Teméria esteja muito longe de ser restaurada e todas as minhas alternativas tenham se esgotado, eu terei de desistir.

—Isto, é claro, supondo-se que não acabe morto durante o processo.

—Sim. – admitiu Roche. – Não que a ideia de morrer a serviço de meu país me incomode. Morrer em combate é algo que já passei a aceitar há muito tempo. Estranha-me a ideia de ter de pendurar a espada, como alguns dizem, mas é o que terei de fazer, caso meu plano fracasse e eu esteja velho demais para recomeça-lo. Terei de me assentar, e será ao lado de Anais.

Ao perceber o olhar de aversão da elfa, Roche tratou de corrigir.

—Para deixar bem claro, o que eu quero dizer é que você não terá de ficar com Anais para sempre, caso eu fracasse. Eu não vou esquecê-la, caso ela não consiga se tornar Rainha. Vou... – hesitou Roche. – Vou ficar com ela. Cuidar dela como se ela fosse minha filha, até o fim dos meus dias. Jamais deixaria a filha de Foltest desamparada. Devo isso a ele.

Turiel viu um leve rubor tomar as bochechas de Roche, mas preferiu não falar sobre isso. Após deixar escapar algumas piscadas nervosas, o temeriano pigarreou, retomando o tom sério do início da conversa. Agora falava como um estrategista a dar instruções.

—Caso os Cavaleiros Negros representem uma ameaça ou desconfiem da identidade de Anais, vá embora. Escolha um reino neutro como Kovir ou medíocre demais para ser invadido por Nilfgaard, como Cidaris.

            Roche recebeu um soco no braço.

            -Meu pai nasceu em Cidaris, sabia?

            O temeriano riu. – Não tenho culpa se tudo que os cidarianos sabem fazer é pescar. Mas enfim, você entendeu o meu recado. E não se preocupe comigo, eu darei um jeito de encontra-las. Uma elfa acompanhada de uma humana não é algo difícil de se encontrar. Além disso, eu conheço um ótimo rastreador.


III


Os cavalos já estavam prontos, concluiu Ves. A Listra Azul havia terminado de colocar as últimas provisões. Turiel deixou bastante comida para os dois, de modo que não seria necessário parar em nenhuma estalagem para uma refeição quente. Ela e Roche poderiam seguir sem maiores preocupações com comida e água até o Monte Carboun, onde se reagruparia com o que restou do Exército Temeriano. Agora, que estavam sem um líder, boa parte deles já estaria dissipada, colhendo os cacos da derrota, mas do que Ves conhecia de seu comandante, ele concentraria todos os seus esforços em reunir novamente o que restou dos soldados e buscar uma alternativa. Redânia, talvez. Ela ainda não sabia o que seria da Teméria, mas confiava em Roche e seu ardiloso jeito de agir. Um dia, a situação se reverteria. Um dia.

Arrumar os cavalos foi a tarefa que Ves decidiu tomar para si, para dar tempo de Roche ter uma despedida apropriada de Anais. Se estivesse o tempo todo ao lado de seu Comandante, ele não se despediria como deveria, preocupado demais com sua reputação mediante um subalterno. Permaneceram na casa apenas Roche, Anais e Turiel.

A menina estava aos prantos outra vez. Chorava e chorava sem parar. Mas desta vez, seu choro foi mais intenso que a última despedida. As promessas de vê-lo um dia agora eram vagas. Por mais que fosse uma criança, Anais já tinha quase nove anos de idade e entendia bem que a situação no seu país não era das melhores e que Roche tinha uma tarefa quase impossível a recair em seus ombros. Uma tarefa que poderia custar-lhe a vida.

—Você vai morrer... – choramingava Anais, com seu rosto afundado no peito de Roche.

—Não vou morrer, minha Rainha. Eu voltarei são e salvo, você vai ver. Não voltei da última vez? Então, eu também voltarei desta vez. Eu sei me cuidar.

—Por que você não fica aqui, Roche? Você pode viver aqui conosco. Turiel não irá se importar com isso. É só você se comportar e tomar banho todos os dias.

Roche riu com a oferta ingênua de Anais.

—Admito que a oferta de viver ao seu lado é tentadora, no entanto, eu tenho um Reino para tentar restaurar agora para você, minha Rainha. Temo que terei de declinar de sua sugestão.

—Não... Por favor, Roche... Fique... Sabe, eu não preciso de uma coroa ou de um trono, nem de um Reino. Eu posso viver como uma camponesa, eu não me importo com isso...

As palavras da menina deixaram Roche com o semblante sério. No mesmo instante, Roche retirou de seu peito o rosto encharcado de lágrimas de Anais, erguendo o rosto da menina pelo queixo e fazendo-a olhar diretamente em seus olhos. Os olhos de Foltest, recordou-se Roche. Qualquer um que conhecesse bem o falecido Rei temeriano poderia ver na menina o mesmo olhar.

—Anais... Você provavelmente escutou isso desde o seu nascimento, mas terei de repetir. Você é uma menina especial. Não só pela linhagem que carrega no seu sangue, mas pelo que você tem direito e pelo o que pode fazer com ele. A alternativa mais fácil é mesmo esta? Fugir, se esconder, abrir mão de sua herança e de seu direito e deixar que as pessoas ao seu redor sofram?

Os olhos escuros de Anais se arregalaram. O temeriano lamentou. Estou sendo muito duro com ela, concluiu Roche. Mas é necessário.

—Você quer que pessoas padeçam e morram nas mãos daqueles homens maus para que eu fique aqui, treinando de espada com você ao invés de ajudar a reagrupar os soldados do seu reino?

—Não, senhor.

—Se a Teméria cair, Anais... Se a Teméria permanecer nessa bagunça, esses mesmos camponeses que você diz não se importar em fazer parte sofrerão nas mãos dos Barões. Eles estarão sob o jugo deles, sem Lei e sem a quem recorrer. Sem um Rei, os camponeses poderão ser açoitados ou mesmo enforcados se desagradarem aos nobres, mesmo pelo mais absurdo dos motivos. Quer ver as suas mãos sujas de sangue por seu egoísmo?

—N-Não, senhor. – disse a menina, com a voz trêmula. Roche suspirou.

—Não vou mentir para você, Anais. Pode ser que demore anos até que o trono esteja pronto para você, mas eu quero que você também esteja pronta para ele, quando a hora chegar. E atos de fraqueza como este que acabou de cometer não terão de se repetir, entendeu? Tenho certeza de que muitas coisas irão acontecer até a hora certa chegar e que você se sentirá tentada a desistir de seu direito, mas lembre-se das vidas que estarão em suas mãos e que terão um futuro melhor tendo você como Rainha, não um estrangeiro parasita que só quer nos destruir e nos escravizar. Certo?

A menina assentiu, sentindo os dedos ásperos de Roche a limpar suas lágrimas. – Certo.

—E lembre-se, uma Rainha não chora.

—Papai disse o mesmo para Boussy, antes de... Antes de...

Roche assentiu. – Sim, você me contou. E ele estava certo, reis não choram. Não na frente dos outros. Precisa controlar suas emoções, e seria bom começar desde já. Aliás...

Roche moveu para sua cintura e, para abismação da jovem, desfivelou de seu cinto sua espada.

—É sua. – estendeu Roche a Anais, quase de modo solene.

—Mas... Mas você disse que eu não estava preparada para usá-la.

—E não está. – reforçou Roche. – Mas temo que... Temo que não esteja presente quando a hora chegar. Quero que continue treinando, reforçando os fundamentos que te passei. Nestes meses, eu te ensinei bastante coisa, e devo dizer, você tem talento para isso.

A menina sorriu com o elogio inesperado, algo que confortou o coração de Roche, que se permitiu arquear levemente o lábio. O mais próximo que ele sabia fazer de um sorriso.

—Cuidado, Anais. Ela está bastante afiada. – ele disse, quando viu a menina desembainhar a espada, cujo aço brilhava ao sol.

—Mas como saberei que a hora chegou? – ela perguntou, curiosa, segurando a espada com as duas mãos e com os olhos castanhos atentos ao brilho do aço.

—Quando conseguir segurá-la com apenas uma mão. Essa espada não é um montante para segurá-la deste jeito. Isso mostra que você ainda não tem idade o bastante para ela. E não se anime, eu avisei a Turiel para guarda-la, até que você tenha idade o bastante para usar. E não faça essa cara emburrada, o que eu falei sobre suas emoções?

O rosto da menina voltou às feições normais, apesar de se descontentamento em não ter a espada de Roche permanecer. Colocando a espada de volta à bainha, a menina abraçou o Comandante temeriano mais uma vez. Desta vez, não havia lágrimas.

—Obrigada, Roche. Por tudo.


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Notas finais do capítulo

Gente, que triste ter de separar Anais e Roche, mas é a vida.


Próximo cap: Epílogo do Iorveth



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