No More Secrets: Segunda Temporada. escrita por CoelhoBoyShiper


Capítulo 14
Triângulo de quatro lados




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Naquela noite, Dipper teve um sonho.

Primeiro, achou que não seria capaz de dormir por causa dos recentes acontecimentos. Achara que ficaria rodando na cama por horas até o amanhecer, sem conseguir fugir dos seus pensamentos, no entanto, ele dormiu. Estava tão exausto daquilo tudo, afinal das contas. Exausto de ter que estar sempre fingindo, exausto de sempre estar tendo que transportar-se por cima das dificuldades que se multiplicavam, exausto daquele jogo que o destino fazia com ele.

Era um sonho que, não diferente de como ele se sentia acordado, incutia nele angústia.

Um medo estranho, mesmo que ele não soubesse definir se aquilo havia sido um pesadelo ou não.

Era mais ou menos assim:

Ele estava nas florestas de pinheiros de Gravity Falls, mesmo que não pudesse ver nada por causa da potente escuridão que o precingia por todos os lados; ele sentia que estava lá, como se aquela floresta fosse familiar o suficiente para ele reconhecê-la de olhos fechados. O cheiro do orvalho subia às suas narinas, guiado por um zéfiro de outono no qual Dipper sentia correr frio sobre sua pele.

A única coisa que ele era capaz de ver com clareza era a lua, que brilhava forte. A luz dela desprendeu-se dos céus, descendo até onde o garoto estava feito um holofote a converter divergentemente todos os raios do luar para iluminar determinado ponto naquele palco natural. Quase como se apontasse a direção para onde ele deveria ir.

Foi então que Dipper viu, com a ajuda do brilho lunar, algo mais distante na mata. Quando se aproximou, pôde enxergar com mais clareza, vendo o contorno familiar tomando forma, delineando-se com firmeza dentro daquele mundo tremeluzente dos sonhos.

Era uma caixa de correio.

Mas não era uma caixa de correio comum, Dipper já havia visto-a antes. Foi há anos atrás, 2012, no Oregon, pelas férias de verão. Era a caixa de correio mágica que existia nas florestas, a mesma que respondia qualquer pergunta caso colocassem uma carta com tal questionamento dentro dela, a mesma que ele e Soos usaram uma vez para perguntar em qual ano o mundo iria acabar e a caixa respondera: “3012”.

Chegou mais perto, vendo o contorno metálico do objeto misterioso reluzir, atraindo os seus olhos e sua vontade de tocá-la.  Puxou a alça da portinhola, ainda sob o efeito hipnótico daquela sensação estranha, ela se abriu bruscamente e, de dentro, começou a sair um manancial de sangue.

Dipper pensou que talvez devesse se assustar, mas só ficou ali, vendo o sangue a escorrer para fora da caixa de correio sem nenhuma reação. E não parava mais, sangue continuava a ser derramado como uma cachoeira.

Até um objeto sair de dentro, caindo no chão, destoando-se no meio de uma poça sangrenta. Dipper se abaixou para ver o que era. O símbolo de uma marca verde fluorescente de uma ampulheta fulgurou, ardendo nos seus olhos. Era a insígnia da Comissão do Tempo, impressa em uma das suas fitas métricas.

Nisso, uma voz desconhecida e grave sussurrou no ouvido de Pines, arrepiando cada pelo da sua nuca:

— A única pessoa no seu caminho é você mesmo.

 

Acordou com o som distante de alguém lhe chamando, quando deu por si, Stanford estava do seu lado, sentado na beirada da cama.

— Dip... acorde...

— O que houve? — ergueu-se, ficando sentado na cama ainda sonolento.

— Precisamos ir.

— Que horas são?

— Um pouco mais tarde do que você costuma acordar, Mabel já foi na sua frente com o ônibus. Eu vou te levar.

— O quê? Eu vou chegar atrasado? — começou a ficar mais agitado assim que a realidade começava a ficar mais perceptível para ele.

— Sim, mas não se preocupe — Stanford deteve o garoto na cama, colocando a mão sobre o peito de Dipper. O toque formigou sobre sua pele. — Pode ficar calmo, eu conversei com os seus pais, eles estão ok em te deixar dormir mais um pouco hoje. Vou te deixar lá no terceiro horário, certo?

— Por quê? — coçou os olhos.

O seu tio-avô abriu um sorriso radiante, como se trouxesse o aconchegante sol da manhã para dentro da penumbra fria do quarto.

— Ontem foi uma noite cheia, Dipper. Tenho a impressão que a minha presença nessa casa nos últimos dias tem exigido um pouco mais de você. Então, por isso, eu tenho a me agradecer e me desculpar. Veja o tempo de sono estendido como um pedido de desculpas e a carona como um agradecimento.

O toque e o sorriso, unido com a confirmação irrevogável de que Stanford se importava com ele. Só aquilo havia sido o suficiente para nocautear a barreira sentimental de Dipper, acordando as borboletas adormecidas de dentro do seu estômago.

— Você... não precisava. — segurou o sorriso de sair afetuoso demais. Agradeceu pelo ambiente ainda estar escuro, em outra ocasião Ford provavelmente notaria a vermelhidão que acabara de esquentar sobre as suas bochechas.

— Eu precisava, sim, Dip. — afagou o peito dele, elevando a mão para levantar o rosto dele pelo queixo, retornando a atenção do menino a ele. — Vou te dar um tempo para se arrumar. Vou te esperar lá embaixo, estarei aquecendo o motor.

Stanford saiu de cima da cama e, com ele, saiu o aconchego, e Dipper sentiu o frio excruciante do ambiente molestar contra a sua pele desprotegida; não tinha feito nem um segundo e ele já ansiava pela volta da presença calorosa do homem diante dele. Assim que Ford saiu do quarto, Dipper se sentiu mais sozinho do que antes. Aquele momento de ternura entre os dois, aquela calmaria trazida por ele, era tão incomum e distante dentro dos parâmetros da vida de Dipper que, assim que a porta bateu, o garoto teve a impressão de que ele tinha acabado de acordar de outro sonho, que aquilo não havia de fato acontecido, que ele só poderia voltar a ficar bem na presença de Ford daquele jeito numa ilusão utópica.

Suspirando, ele jogou os cobertores longe, pronto para assumir os desafios de mais um novo dia. Após mudar de roupa e juntar o material necessário, Pines recorreu ao seu celular, tecendo as memórias da noite anterior ao procurar pelo nome de Wirt na sua lista de contatos. Não havia nenhuma mensagem para ele, e a aflição de não saber qual havia sido o resultado do drama ocorrido ontem na casa do seu namorado era lancinante, transformando-se numa dor física específica — uma pontada aguda, como um alfinete invisível a cutucá-lo por dentro, bem na beirada abaixo do seu coração.

 

DIPPER: Você está bem?

 

Mandou a mensagem, querendo urgentemente que Wirt reconhecesse a sua preocupação.

Desdeu as escadas, alcançando o tio-avô já na calçada.

— Estou pronto. — disse. — Ford assentiu, gesticulando na direção da picape vermelha estacionada ainda sobre a porta aberta da garagem. — Achei que iríamos na sua moto. — continuou ele assim que entrou no carro, jogando a mochila para a parte de trás.

— Eu não teria como conversar com você se eu te levasse na moto. — explicou Ford a sério.

— O quê?

— Eu queria conversar com você um pouco, Dipper. Conversar sobre algo que não fosse todo esse auê que está acontecendo.

— Conversar comigo...? — Dipper deslizou-se para o assento, Ford, ao seu lado, fechou a porta no mesmo instante que ele, ligando a ignição.

— Sim. — o motor roncou, agora brandamente, e o carro saiu da calçada. A janela entreaberta convidava o ar da manhã para dentro do espaço do carro, uma mistura de frio e calor; relento. A luz do sol parecia como um pisca-pisca – aparecendo ora sim, ora não por entre as fissuras das longas copas das árvores acima deles, na medida em que o carro acelerava, passando por debaixo delas. — Você se lembra daquela vez em que eu te pedi para ficar em Gravity Falls comigo, Dipper?

A pontada aguda no fundo do cerne dele voltou a se intensificar, feito um post-it fluorescente de alerta preso nele com uma tachinha afiada, sempre servindo como um lembrete indissociável de que ele sempre estaria pisando em ovos, nunca em total paz.

— Como eu poderia me esquecer...? — sua mão se fechou em um punho em torno da alça da porta.

— Pois bem... eu fiz aquilo pois eu acreditava em você. Você, Dipper... — mesmo com a evidente intenção de já ter aquela conversa toda roteirizada na cabeça, o tio-avô pareceu se perder por um instante. —... você sempre foi diferente. Diferente para mim. Eu fiz aquele pedido porque eu nunca tinha visto um garoto tão maduro e tão corajoso na sua idade... e isso continuou. Continuou por todo o tempo que passamos juntos naquele verão, continuou quando você teve coragem o suficiente para me revelar o seu verdadeiro nome nas colinas, quando você me salvou lá e no weirdmaggedon, continuou em todas as situações. Por isso, quando você me deu a notícia de que iria ficar com a sua irmã e voltar para Piedmont, eu procurei não me exasperar... porque eu sabia que aquela ainda era uma das suas decisões responsáveis, que você era aquele garoto além do tempo dele e que também conseguia ver, de algum jeito, o tempo além dele; quando eu olhei pra você, Dipper, quando eu olhei para os seus olhos, eu percebi o quanto de certeza e determinação tinha em você... como se você estivesse vendo uma coisa que eu não podia ver. Então eu tive a certeza de que, talvez, o meu pedido tivesse sido precipitado, que, talvez, eu tinha pedido de você uma besteira e não tinha notado. Não tivesse notado a besteira que estava fazendo. — “Você não imagina o quanto”, pensou Dipper. Stanford correu os dedos entre os cabelos cinzas. — Então, eu te deixei ir, pois sabia que você ficaria bem, que não precisaria de ninguém para te proteger no mundo lá fora, que, de alguma forma, você daria conta. Que você continuaria a ser, por anos e anos, o mesmo garoto intrépido que eu já estava tão acostumado a observar.

— E você está me dizendo isso porque...?

Ford se virou para ele, o olhar de cumplicidade.

— Porque, depois de todo esse tempo separado de você, depois de você ter crescido tanto, depois dessa eternidade, quando eu te vi de novo, quando eu te vi pela primeira vez em quatro anos... Eu já não observava mais aquele garoto de novo.

Dipper abaixou a cabeça, sentindo-se como uma criança que havia sido pega numa mentira, e havia mesmo.

— Você pode fazer a sua irmã e seus pais acreditarem nisso, Dip. Mas, não me ache estranho: eu sinto uma conexão forte o suficiente com você para saber que essa não é a pessoa que você é. Eu apenas sei. — Soltou um suspiro frustrado e preocupado, colocando os dedos sobre a testa brevemente.  — Eu esperava ver o mesmo menino de antes, e, até mesmo agora, mais maduro ainda! No entanto, mesmo você estando tão crescido, você nunca me pareceu tão jovem e indefeso. Eu não vejo mais meu “Lobinho”, Dipper. Eu não consigo ver você.

O menino fixou o olhar lá fora, as palavras de qualquer resposta que ele poderia dar acumulando na barreira que era o nó firme dentro da sua garganta.

— Então, como eu disse no começo, eu “acreditava” em você. Eu quero voltar a acreditar. Acreditar o suficiente para te dizer uma loucura como eu tinha dito naquela vez nas colinas. Eu... — chegou num ponto que ele falava com tanta intensidade que se prendeu, ficando em silêncio e respirando fundo. A voz dele voltou, dessa vez, calma, porém, deslizou-se pelo ar, acertando-o como uma ponta de faca nas costas de Dipper. — Eu quero te ajudar. Seja lá pelo o que você esteja passando eu quero te ajudar, Dipper. Mas... mas eu não posso fazer isso se você não quiser ser ajudado. Eu só preciso que você confie em mim de volta.

As decorações de Halloween já montadas das casas apareciam na sua festa inebriantemente abstrata. A forma que a vizinhança ficava decorada daquele jeito condizia perfeitamente com o que Pines sentia: acalorado pela beleza de um arredor lindo de pacífico do outono – Ford –, contradito pelas criaturas macabras e personagens assustadores de filmes de terror – suas decisões do futuro e passado materializadas por toda sua volta.

Dipper era um monstro horrível vagando desconexamente sobre um gramado lindo.

— Eu não mereço isso... — disse catártico, quase sem perceber, ao segurar um soluço.

— O quê? — o tio virou-se para ele, o menino ainda observando o exterior.

— Eu não mereço andar nesse lugar lindo, ser abraçado por essa natureza linda enquanto permaneço sendo mais um desses monstros horríveis.

Ford ficou calado; antagonicamente, não entendia o que o sobrinho falava, mas entendia. Por isso, ficou em silêncio e apenas assentiu.

— Você não é nada horrível, Dipper. E seja o que for, não é culpa sua.

— Mas o mundo parece querer me dizer o contrário. — ele já começara a limpar as lágrimas. — Porque por mais que as minhas intenções sejam boas, toda vez que eu tento fazer as coisas direito, elas dão errado. Toda vez que eu tento proteger as pessoas que eu amo, elas acabam prejudicadas.

— Às vezes seja porque você queira sempre consertar tudo.

Dipper olhou para ele, o seu tio avô sorria de volta, mas ele podia ver, pelos vincos contraídos dos cantos da sua boca e testa o quanto ele estava abalado com aquela situação; o quanto ele também queria chorar.

— Como assim?

— Eu estou dizendo, Dipper, que você não tem a obrigação de salvar todo mundo, não tem a obrigação de proteger todo mundo. Às vezes o motivo de tudo dar errado quando você tenta fazer dar certo seja justamente o problema; algumas coisas apenas estão fadadas a darem errado, e não é nosso trabalho se lamentar ou contorná-las de maneiras fantasiosas, e sim deixar estar.

— Deixar estar...? — segurou um riso de ironia.

— Claro. Pelo o que eu estou pegando de você, o seu problema estar sendo achar que tudo tem que ser perfeito. Sendo que não é assim, algumas... — ele travou, parecia que o que diria em seguida carregava mais significado para ele do que aparentava. — uma pessoa inusitada uma vez me disse que é justamente pelas coisas serem imperfeitas que elas são perfeitas.

— Então você está me dizendo que se o mundo estiver acabando eu deveria deixar acabar?

Os olhos de Ford se ampliaram, o seu susto tomando forma física. Ele pareceu mentalmente dar um passo atrás.

— Dip... Dip, isso tem a ver com o que você fez quando voltou no tempo?

Ele não respondeu, ao invés disso, desviou o olhar mais uma vez, o rosto copioso de lágrimas.

O silêncio perdurou por mais um breve instante até Dipper ver a sua escola aparecer e Ford manobrar a picape para estacioná-la. Assim que o carro parou, Dipper urgiu para destravar o cinto de segurança, mas seu tio o deteve, colocando a mão por cima da dele.

— Você pode me contar. Seja o que for, eu vou te entender, vou estar do seu lado. Sempre.

A mão do garoto relaxou na alça, e a coluna no encosto. O toque de Ford ficou nele, e, como um anzol, instigava ele para mais, para se afundar naquele mar de sensações.

— Eu estarei aqui para você. Sempre. Quando dizer. Como quiser. Poderá me contar quanto estiver pronto, mas, lembre-se, se isso implica no que estamos tendo que passar agora, é bom manter em mente que não temos muito tempo... só mais um dia e...

Antes que ele terminasse, Dipper soltou o cinto e virou-se para ele totalmente, abraçando-o. O gesto pegou Ford de surpresa, que tombou para trás sem reação. Dipper deitou sobre ele, as lágrimas a rolarem sem parar sobre o suéter, afagou o rosto no tecido. Logo, as mãos do outro se fecharam sobre ele, completando o abraço. Os dedos de Stanford se emendaram às mechas castanhas enroladas do menino, acarinhando-o, mais uma vez o lembrando de que tudo estaria bem, de que ele estaria ali, de que sempre no final acabaria sendo o seu suporte.

Stanford, Stanford, Stanford...

Sempre Stanford.

Ele sempre voltava para ele.

— Não quer faltar hoje? — perguntou. Dipper balançou a cabeça como um não.

— N-não... posso... — continuou entrecortado pelos soluços. — Eu preciso.

— Okay, então, vamos fazer o seguinte: eu vou ficar aqui fora, no estacionamento, o resto do dia, certo? Caso se sinta pressionado demais, apenas saia a hora que quiser e venha para cá. Estarei te esperando e te dirijo de volta sem perguntas.

— Mas... — ele levantou o rosto do suéter, encarando o outro no olho. As bochechas dos dois estavam coradas e o ar entre eles havia se tornado pesado, ambos respirando um sobre o rosto do outro; impossível dizer com clareza se o rubor era só por causa do contato entre os dois e se a respiração era só pelos pulmões estarem pressionados sobrepostos, no entanto, uma coisa era certa: os dois se sentiam bem. Aquela posição era agradável e segura, Dipper sozinho já acreditava poder ficar ali pra sempre, ou deitar a cabeça no colo dele de novo e voltar a dormir mais um pouco. — Você precisa voltar pra casa, precisa analisar os dados ou algo assim, e se você ficar aqui você...

Stanford cobriu a boca de Dipper com os dedos, o indicador a pressionar sobre o seu lábio inferior. O garoto não deixou de imaginar o quão seria fácil, o quão acessível e simples seria para ele abrir os lábios mais um pouco e sentir o gosto de Ford mais uma vez, colocar o calor daquele homem dentro dele, permiti-lo passear e dar voltas pela espiral de suas sensações. Entretanto, a voz do outro o enraizou no solo do controle:

— Shhh... Não se preocupe com os outros — aproximou-se para terminar de sussurrar dentro do ouvido do outro. —, se preocupe com você primeiro.

Recuou com um sorriso encorajador, e Dipper automaticamente sentiu confiança o suficiente para assentir. Ao ver a reação do sobrinho, o tio passou a mão pelo cabelo dele:

— Aí está o menino corajoso.

Dipper deu uma risadinha e saiu de cima dele, abrindo a porta.

— Ei, Dip! — chamou-o, trazendo a atenção do sobrinho de volta ao carro antes que ele partisse. — Te amo.

A alfinetada contínua que vinha o acompanhando desde o começo daquela manhã voltou, e voltou com tudo, como uma facada bem pelo seu coração, porém, estava longe de doer. Dipper nunca havia gostado tanto de se sentir apunhalado.

— Te amo também.

Ford sorriu e assentiu de volta, mas o outro não ficou ali para apreciar. Invés disso, deu as costas e saiu correndo até o pórtico austero do colégio municipal, o coração descontrolado.

Assim que entrou e começou a vagar pelos corredores, sentiu-se completamente restabelecido da situação anterior, como se entrasse em outro mundo ou ativasse o seu piloto automático costumeiro. Dipper checou o celular para ver se tinha recebido uma atualização da parte do seu namorado. Wirt havia visualizado a mensagem que ele havia mandado, estaria tudo bem se não fosse pelo fato de que havia sido há cinco minutos e Wirt escolhera não responder de forma aparentemente proposital. Pines fechou os olhos, puxando o ar com força, obrigando o corpo a se controlar; ele sentia que se ele soltasse mais um soluço sequer, quebrar-se-ia ao meio.

Continuou a andar com força, obrigando-se a suprimir a urgência de ligar para o namorado. Ele tinha que se dar um tempo e, aparentemente, dar um tempo para Wirt também. Ele procuraria ser mais cauteloso do que de costume daquela vez. “Não apressa as coisas, Dipper... leve-as com calma... paciência...”, para abafar os pensamentos, colocou o fone. A música Satellite Heart da Anya Marina foi executada, a canção o fazia se lembrar de Ford, do que ele havia sentido no carro, aquela calmaria, então aumentou o volume e deixou-se estar.

— Foque-se... foque-se... tudo vai dar certo...

Claro, a primeira voz que ele ouvira naquele dia seria a de Evum. Estava distante, mas, mesmo assim, pelo silêncio dos corredores ainda em aula, alto o suficiente para ele ouvir mesmo por detrás dos fones.

“Com quem caralhos ele está falando desse jeito?”

Em questão de um segundo, lá estava ele, pé ante pé, seguindo a direção do som. Na esquina de um dos corredores, onde a voz se elevava, Dipper agarrou as alças da mochila sobre os ombros e espiou pela beirada da parede, tirando a música dos ouvidos.

Assim que viu com quem Cipher conversava, o choque:

Ninguém.

Exato. O demônio encarnado no corpo do soldado do tempo dava voltas em torno de si mesmo, as mãos na cabeça, agarradas no cabelo, quase arrancando o próprio couro. Os olhos amarelados estavam abertos completamente sem piscar uma vez sequer, mas sem necessariamente estarem observando uma direção especifica. Ele balbuciava com sigo mesmo:

— Onde está?... Eu sinto você aqui... Apareça... Apareca!

“Por que será que estou surpreso?”, se Dipper pudesse externalizar seu sarcasmo ácido, ele teria. “Até parece que eu achava que Bill tinha alguma sanidade antes. Se ele não for clinicamente louco a esse ponto, eu não sei o que ele é.”

Já estava prestes a sair quando um guincho puxou de volta sua atenção, um som que o demônio fazia, como o de uma panela quente ao ser colocada abaixo de uma torneira ligada com água gelada. Em seguida, ele fechou os olhos com força e todas as dobras e reentrâncias do seu rosto de contraíram de uma só vez, como se sentisse uma dor forte, e caiu de joelhos.

“Quê?”, voltou a observar.

— Certo... certo!... Entendi! Já sei! — Bill disse baixo, mas Dipper sentiu o quanto o outro segurava a vontade de gritar bem alto. No instante seguinte, Aevum ficou de pé e saiu como se nada tivesse acontecido, porém com um instinto de sentido perceptível, como se urgisse para se dirigir a um lugar que precisasse muito ir – a mesma cena de alguém que está muito apertado num lugar desconhecido, mas que, mesmo assim, como se apenas pelos seus sentidos biológicos, pudesse achar um banheiro onde quer que estivesse com precisão.

E foi isso que fez Pines o segui-lo imediatamente. Bill saiu pela porta dos fundos, retirando-se para o enorme pátio na parte traseira da escola. Assim que acessou o local, obrigou sua surpresa a ser silenciosa no que viu todo o ambiente decorado com os ornamentos que ele ajudou a fazer na aula extracurricular no dia anterior. Guirlandas de papelão estampadas de abóboras entalhadas ziguezagueavam até o final da clareira de árvores, como uma série de bandeirolas. Havia também teias falsas de espuma nas quinas das mesas grandes, cobertas por toalhas roxas e pretas, acompanhadas das aranhas de scrapbook que Dipper ajudara a destacar. Também tinha os galhos de árvores mortas por todas as partes, todos ponderando entre cores branca e negra; nos seus troncos, enroscavam-se trilhas de pisca-piscas que, quando ligadas à noite, o garoto imaginava que ficariam como serpentes brilhantes. O lugar da festa havia ficado esplêndido levando-se em consideração que havia sido organizado cem por cento pelos alunos, mas ele não estava ali para aquilo.

Evum saiu do centro da arrumação, indo para o gramado e, em seguida, adentrando as fileiras densas de árvores do bosque que circundava a cidade. Dipper esperou até o professor estar numa distância segura que ele fosse atrás, “O que ele tá fazendo?”

Na medida em que chegava mais perto, a escuridão do bosque se dissipava por causa de uma luz vermelha que brilhava do coração da mata. Uma vez cercado de arbustos e troncos grossos, Dipper viu que a luz emitia do chão. Ou melhor, de uma rachadura do chão que se abria o quanto mais perto Cipher se aproximava dela.

“Que porra é essa?”

A terra sucumbiu em algumas palavras em latim indecifráveis ditas por Bill, e se afastou como se tivesse vida própria. Dipper esticou o pescoço para conseguir ver melhor o que residia dentro da fissura: um pequeno lance de escadas que levava para um pouco mais fundo do chão e, no final dele, uma porta antiga, medieval, repleta de insígnias rúnicas contornando suas ombreiras. A porta se abriu e, de dentro, saiu uma... coisa? Mason não sabia como classificar a criatura, parecia um garoto, mas não era um garoto; parecia um mostro, mas não era um monstro.

Em despeito do terceiro olho que ele portava, a tonalidade da pele em si já era discrepante: era escurecida de um roxo claro; o cabelo, rosa num topete bem espichado para trás, em ordem de mostrar o par de chifres que saia de cada lado da sua cabeça. Ele usava roupas rasgadas, parecia até como um adolescente normal: uma camiseta rosa com estampa de uma estrela vermelha, shorts jeans rasgados e um par de botas marrons.

— Há quanto tempo, né não, Billy? — saudou ele assim que subia as escadas.

— Não tô com tempo pra colocar o papo em dia, Tom. — dispensou Bill. — Está com o que eu te pedi ou não?

— Jeez, seria bom ao menos uma consideração, você não sabe o que eu passei pra conseguir isso. — resmungou, os braços a se cruzarem.

— Onde está?

— Relaxa, relaxa... — colocou a mão no bolso, tirando um embrulhe em seguida. — Tó. Use com responsabilidade, não são todos os monstros que têm a oportunidade de usar isso. — passou o objeto para as mãos de Evum.

— Tá. Obrigado. Agora preciso ir. — continuou displicente, guardando o que quer que fosse aquilo dentro do paletó.

— Nossa... tá bom, então. — estava quase voltando quando virou-se para ele com um olhar preocupado e firme. — Você não está tentando fugir da guarda não, né?

“Guarda?”

— Não seja tolo. — aprumou-se Bill. — Eu não sou estúpido.

— Acho bom mesmo.

— Isso não é da sua conta, Thomas.

— Okay! Okay! Já entendi... — voltou a descer as escadas, impaciente. — Qualquer coisa me chama, tá?

Bill não respondeu. A entrada para aquele lugar estranho desapareceu assim que a terra voltou a se fechar de uma vez junto com o menino, a porta, a escada e tudo mais num estrondo. Dipper tomou um susto assim que Bill se virou para voltar, e ele percebeu o quão próximo estava do demônio, pisou em falso e acabou quebrando um graveto. Antes que corresse ou fizesse qualquer coisa, a cabeça do professor virou-se na direção dele no mesmo instante, flagrando-o no ato.

Os dois ficaram em silêncio, parados de olhos arregalados constrangedoramente. Aparentemente, os dois foram pegos fazendo algo que não deviam. Bill foi quem quebrou o gelo:

— O que está fazendo aqui?

— Te seguindo. O que você está fazendo aqui? Visitando os seus amiguinhos do quinto dos infernos?

— Tipo isso.

— Isso por acaso me envolve?

— ...

Dipper olhou para ele com um olhar inquisidor atrevido. — Hein?

— Você não está em posição de fazer perguntas, pecinha.

— Ah, estou, sim. Sou a única forma de você conseguir encontrar o seu poderzinho aqui na escola. Eu devo saber com o que estou lidando.

— Sou eu quem tenho a porra das memórias da sua vida passada. Ou você quer que eu abra o jogo pra todo mundo do quão mentiroso e dissimulado você vem sido com as pessoas que você “ama” tanto para que, assim, você possa estar acima de mim nessa discursão?

Dipper respirou fundo. Suas pálpebras desceram sutilmente até a metade dos seus olhos, construindo um olhar de pura reprovação à chantagem de Cipher.

— Tu tá ligado que se você morder sua própria língua cê morre envenenado, né?

Um resquício de aprovação transpareceu por detrás das irises violetas do demônio florescendo com a atenção da alfinetada ousada.

— Tá aprendendo bem comigo, hein? — os olhos semicerrados e o sorrisinho debochado dele foram o suficiente para inserir irritação em Dipper.

— Você é inacreditável. — deu as costas, saindo batendo pé para fora da mata. Assim do lado de fora, ouviu o outro de longe acompanhado do sino do terceiro horário se iniciando.

— Cadê o Sixer? Quero ele aqui pra gente botar a mão na massa logo.

Dipper ignorou, entrando de volta para a escola. Os corredores começavam a ficarem fervorosos com o fluxo dos alunos que começavam a sair das suas salas para irem para outras aulas. Quanto mais o número deles aumentava, mais Dipper começava a se sentir desconfortável. Parecia ser uma simples ansiedade, mas, o quanto mais ele andava, mais se sentia desestabilizado; algo ecoava dentro dele, e não era bom. Um mau agouro, um mau pressentimento que fazia seu estômago dançar numa coreografia complicada. Ele sentia as paredes e as pessoas se aproximarem, como se procurassem esmagá-lo.

“O que é isso?”, perguntou-se e avançou mais afundo, procurando chegar na sala o quanto antes, onde poderia se sentar e processar o que acontecia. Foi quando dobrou uma esquina e esbarrou com alguém no seu caminho, já ia pedir desculpas quando pôde reconhecer quem era.

“Não...”, a negação havia sido imediata. O garoto mantinha os olhares fixados em Dipper, quase irreconhecível: o rosto, cheio de hematomas; a postura, um misto de frustração e inferioridade, recuo.

— W-Wirt?! O que você está fazendo aqui?! E a essa hora?! T-tá tudo bem?! — ele se aproximou dele de imediato, levantando as mãos para tocá-lo, porém, o namorado esquivou-se como um gato arisco.

— Não... toca.

O coração de Dipper encolheu-se, dor imensurável.

— O... quê...?

— N-não... é porque... está doendo. — explicou melhor o menino na frente dele, passando uma das mãos por cima dele mesmo, segurando um dos seus braços. Ao analisar com mais cuidado, Dipper sentiu as lágrimas começarem a se acumular no canto dos seus olhos e cada pedacinho do seu corpo ser recheado por culpa.

— Wirt... o que aconteceu com você? O que aconteceu ontem?

— ... eu... — não continuou, pareceu se encolher ainda mais, desviando o olhar. Dipper nunca quis tanto tocá-lo, abraçá-lo, beijá-lo e assegurá-lo de que ficaria tudo bem, de que ele estava ali agora e iria protegê-lo. Que ele iria compensar aquilo.

— O seu padrasto fez isso com você? — disse num tom sério e raivoso, o seu poder respondeu por dentro dele, uma onda de energia singular inconfundível.

O menino voltou a olhar para Dipper e, sem jeito, passou a mão sobre a franja, afastando o cabelo da testa, revelando sem querer algo que destruiu o que sobrava do coração do namorado: um curativo enorme sobre a testa dele.

— Ele te deu um curativo?! — Dipper berrou no meio de todo mundo, munido de ira, aproximando-se de Wirt de uma vez. O menino de afastou de novo, colocando uma mão no caminho do outro, detendo-o.

— Não. Não! — evitou o mal entendido. — Isso... Isso foi por causa de outra coisa...

Dipper estava pronto para abrir a boca e perguntar mais, quando ele interrompeu:

— Mason, eu preciso que você me conte tudo o que está acontecendo.

— Quê? — ele ergueu uma sobrancelha, confuso. Sabia que o namorado sabia que ele havia mentido sobre “a coisa que ele queria falar para ele” no dia do parque de diversões, mas era tão estranho Wirt trazer aquilo naquela hora, naquela situação, tudo tão confuso e desconexo.

— A coisa que você queria me contar, o que era?

— Wirt, eu não acho que isso...

— Por favor.

Pines estagnou. — Não tem nada acontecendo.

— Mentira.

— Wirt, eu...

Wirt se aproximou e o pegou pelo casaco.

— Dipper, me beija.

“O quê?” — O quê?

— Isso mesmo que ouviu. Me beija aqui, agora.

Dipper segurou o maxilar de despencar. Wirt, aquele garoto inocente e inseguro que mal conseguia segurar a mão do outro em público estava pedindo para ser beijado? Ali? Naquela hora? No meio de todo mundo?

— Por quê?

— Não era isso que você queria desde o início, Mason? Não queria que eu te pedisse isso? Estou pedindo. Vá em frente, então. Se nada tiver mesmo mudado com você, ou pior, com nós, eu sei que você vai me beijar aqui sem hesitação alguma.

Pines sentiu o nó se formando na garganta. Logo após ouvir aquilo, sentiu-se num medo absurdo, como se fosse uma peça de xadrez sendo colocada na armadilha de um perfeito cheque. Fechou as mãos em punhos.

— Certo. — suspirou, colocando as mãos sobre o ombro do outro, colocando o rosto perto do dele. Respirou fundo e aniquilou o restante de espaço que os separavam. Assim que os lábios se tocaram, tudo que Dipper sentia era pressão; sentia-se vigiado, vigiado por Wirt, como se qualquer movimento diferente que ele fizesse com os lábios do outro entregaria todos os seus segredos. Sentia o corpo tenso, preocupado em reproduzir da sua memória todas as outras vezes que tinha beijado o namorado e, quando se separaram, o menino olhou para ele, depois para o chão e balbuciou num murmuro:

— Mentiroso.

— ...

— Algo mudou. — Wirt levantou a cabeça para o namorado, mas o seu olhar parou de fazer contato visual e se focalizou em algo na multidão, por trás de Pines. Dipper virou a cabeça para ver o que era e viu Cipher apressado pra cima dele. Antes que pudesse racionalizar direito, o professor passou os dedos firmes em torno do braço dele e disse autoritário:

— Dipper, nós precisamos ir.

— Quê?

— Agora. É sério.

— Não. — disse ele, mais como uma dúvida do que como uma negação. Os olhos afobados do demônio foram dele a Wirt e, assim que reconheceu a imagem do garoto, apertou o braço de Dipper com mais força.

— Vem. Logo! — puxou Pines com uma força absurda.

— Não! — esbravejou Dipper de volta, tentando se manter firme no chão. — Wirt! — gritou com a voz chorosa na direção do outro, mas o namorado nem se mexeu. A cena já estava atraindo a atenção de alguns transeuntes.

— Dipper, nós precisamos ir! Agora! Eu estou mandando! — deu uma investida forte, tragando o menino para longe do namorado, as pessoas se acumulando, fazendo Dipper sentir-se mais longe dele do que realmente estava.

Havia sido a gota d’água.

— Você não me controla mais!

Como um cano que havia inesperadamente estourado, os poderes fluíram pelas artérias de Dipper, jorrando magia por todos os lados. Subitamente, Dipper era um ímã e Cipher um polo de mesma carga, pois, de modo sobrenatural, ele fora sido rechaçado para longe do garoto com ímpeto. Repelido a alguns metros de distância, acertando o chão e deslizando até atingir uma das paredes. As luzes piparotearam e o zumbido daquela energia ecoou dentro dos ouvidos dele e de Cipher.

Os alunos soltaram gritos de espanto, parando e observando, chocados, a cena. Silenciou-se tudo, a boca de todos fazendo um “o” perfeito.

Cipher atirou em Pines um olhar incrédulo e assustado, levantando-se num pulo, porém claramente em dor do golpe.

— Você está com ele?! — gritou. — Estava com o Poder esse tempo todo?!

Os alunos se olharam confusos, Dipper deu meia volta, procurando pelo namorado, mas ele não estava mais em nenhum lugar a ser visto.

— Droga! — preguejou entredentes, correndo alucinado pelos corredores, afastando com grosseria qualquer um que cruzava seu caminho, sem um rumo determinado; sua cabeça virando em todas as direções a cada esquina virada e a cada porta aberta. — Wirt! Wirt, cadê você?! — chorava como uma criança que tinha perdido os pais num supermercado.

Abriu as portas da frente, voltando para o exterior, dessa vez, no estacionamento. Chorando absurdamente, gritou por Wirt mais uma vez. Desceu os degraus, tirando o celular do bolso e ligando incontáveis vezes para o número dele, todas elas terminando numa caixa postal.

 

DIPPER: Wirt, onde você está? Precisamos conversar. Não volte pra casa. Por favor. Não faça nada estúpido. Eu ficarei aqui na escola o dia inteiro, vai ter a festa de Halloween de noite, eu estarei trabalhando lá. Por favor, venha até ela e me encontre. Eu vou te contar tudo.

 

Assim que a mensagem foi enviada, Dipper leu ela, e leu de novo, e de novo... sentiu o vazio se instalando e, antes que o deixasse oco, mandou o que estava faltando:

 

DIPPER: Eu te amo.

 

Foi um tempo até ele parar de andar em círculos sobre o concreto e ligar a tela do aparelho de novo.

Wirt havia visualizado.

Dipper se sentou no chão coberto de folhas secas e terra molhada, esperando a resposta numa paciência angustiosa, respirando pesadamente e sentindo o corpo derretendo cada vez mais para baixo, a terra o engolindo para que ele fizesse parte das suas pilhas nojentas de barro e dejetos.

Ele esperou e esperou.

Mas a resposta não veio.


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