Obscuro escrita por Benihime


Capítulo 1
Prólogo




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Devil's Pit, 1984

Sob a luz do luar a pele da mulher que corria parecia ser feita de porcelana. Seus longos cabelos negros voavam com o vento, chicoteando em seu rosto e impedindo que visse claramente para onde ia. Apesar disso ela finalmente alcançou seu destino, um enorme casarão vitoriano, e suspirou de alívio.

— Nunca se cansa de arrumar problemas? — Uma voz masculina provocou.

A mulher ergueu a cabeça num repente, seus olhos se iluminando enquanto um largo sorriso se espalhava por seu rosto.

— Gabriel!  — Ela exclamou num grito de êxtase.

A morena se atirou nos braços do belo homem loiro, que a estreitou contra seu peito.

— Ainda a estão perseguindo por bruxaria? — Ele quis saber, parecendo divertido com a possibilidade.

— Pior ainda. — Ela ergueu para ele os enormes olhos dourados, todos os traços de humor ou leveza desaparecidos. — Não sei como, mas ... Eles descobriram o que eu sou.

O rosto de Gabriel se tornou sério, uma máscara de aço. Os braços dele, ainda ao redor da cintura delicada da mulher, se estreitaram como tenazes. Ela estremeceu, mas não se afastou.

— Venha comigo. — O loiro propôs num sussurro urgente. — Vamos fugir, como sempre planejamos.

Mais uma vez a morena ergueu os olhos, estendendo uma das mãos para correr as pontas dos dedos pela bochecha de seu amado. Seus olhos dourados o fitavam com tristeza, quase como um pedido de desculpas.

— Eles nos encontrariam. — Ela sussurrou em resposta, tão baixo que Gabriel mal a ouviu.

A mulher sentiu a mandíbula de traços fortes contrair-se sob seus dedos. Sabia muito bem o quanto aquele assunto era difícil. Lágrimas inundaram seus olhos e ela rapidamente os desviou na tentativa de escondê-las. Gabriel, porém, segurou seu queixo de forma que ela se viu obrigada a fitá-lo.

— Não se eu não for mais um deles. — Ele declarou simplesmente.

— Gabriel, não. — Lacey balançou a cabeça, livrando-se dos braços do loiro e dando alguns passos para trás. — Não vou deixar que abra mão disso por mim.

Gabriel a encarou, seus olhos límpidos como o céu tão duros de determinação que mais pareciam um par de pedras preciosas.

— Mas eu quero, Lacey. — Ele protestou. — Quero ficar com você.

— Eu sei, meu amor. — Ela mais uma vez se aproximou, agora aninhando o rosto de seu amado entre as duas mãos com delicadeza. — Mas nós já sabíamos que esse dia iria chegar.

Gabriel deixou-se ceder, inclinando-se até que suas testas se tocassem. Seus lábios estavam separados por meros milímetros. Por um longo momento os dois amantes ficaram imóveis, ambos de olhos fechados, contentando-se em deixaram suas respirações se mesclarem em uma só.

— O que posso fazer? — O homem loiro inquiriu enfim.

— Vá — Foi a resposta — E leve nossas filhas para um lugar seguro.

Gabriel assentiu, parecendo vergar e envelhecer a olhos vistos sob o peso daquela decisão. Lacey subiu as escadas a passos apressados e desceu poucos minutos depois com duas meninas.

A mais velha tinha dois anos, uma adorável garotinha de cabelos negros. Ela usava um vestido de babados cor de rosa femino e delicado que a fazia parecer uma boneca de porcelana.

— Papai! — A menina gritou, soltando a mão da mãe e disparando para os braços abertos do loiro.

— Natalia — Lacey chamou severamente, estendendo uma das mãos para segurar a filha mais velha pelo ombro. — Querida, preciso que me escute. Olhe para mim.

Natalia obedeceu, fixando na mãe os penetrantes olhos azuis herdados de Gabriel. Em tudo o mais, inclusive nos traços do rosto, a criança era a cópia quase exata de Lacey.

— Que foi, mamãe?

Gabriel colocou a pequena no chão e Lacey lhe entregou a filha mais nova, de seis meses, que dormia profundamente. A morena se ajoelhou na frente de Natalia, de modo a olhar a menina nos olhos.

— O papai vai levar você para longe agora, para um lugar melhor. — A mulher disse suavemente. Se Natalia fosse mais velha, teria notado o tremor na voz de sua mãe. — Preciso que seja forte agora, minha menina.

— E você, mamãe? — Natalia quis saber, os olhos brilhando de lágrimas. Ela, porém, balançou a cabeça, recusando-se a chorar. Mesmo naquela tenra idade, o orgulho era outro traço que herdara da mãe.

— A mamãe precisa ficar aqui. — Lacey explicou. — Ainda não terminei o que preciso fazer. Mas, assim que puder, dou um jeito de ir encontrar vocês. Combinado?

A pequena secou as lágrimas e assentiu. Lacey tirou do pescoço um colar. A corrente era grossa e o pingente era uma pedra-estrela em formato circular. Ela sussurrou algumas palavras e depois o colocou ao redor do pescoço da filha.

— Quero que seja forte. — A mulher morena disse novamente, acariciando aqueles cachos negros tão parecidos com os seus. — Seja a minha garotinha guerreira. E prometa para mim que vai cuidar da sua irmã, não importa o que aconteça. Pode me prometer isso?

O rosto de porcelana de Natalia assumiu uma seriedade quase impossível para seus dois anos de idade enquanto a menina assentia lentamente, seus dedinhos o tempo todo brincando com o pingente do colar recém recebido. Seus olhos se ergueram novamente e se fixaram nos da mãe. 

— Eu prometo, mamãe. — A garotinha disse lenta e gravemente.

— Então agora você precisa ir. — Lacey puxou a filha para si e abraçou forte mais uma vez. — Minha filha querida …

Ela soltou a filha e ficou de pé. Gabriel aproximou-se e beijou-lhe a testa num gesto de conforto.

— Vai dar tudo certo — O homem loiro garantiu — Eu volto para buscar você.

Lacey forçou um sorriso para tranquilizar sua filha e o homem que amava. Mesmo assim, seu coração batia pesado no peito. Ela já conhecia seu destino, sabia que não poderia escapar.

— Estarei esperando.

— Tchau, mamãe. — Natalia, já nos braços do pai, sorriu e acenou em despedida. — Não demore.

Lacey precisou de todo o seu autocontrole para não ceder às lágrimas. Forçando mais um sorriso, mandou um beijo para a menina.

Assim que Gabriel foi embora com suas filhas ela se permitiu um momento para desabar, encostada na parede, porém não cedeu às lágrimas. Sabia que, se a primeira lágrima caísse, não conseguiria parar de chorar. 

Silenciosa e determinada, a morena ajeitou a postura e ocultou-se nas sombras, à espera do destino reservado para si naquela noite.

Enquanto isso, Gabriel voava com as filhas pelo céu noturno. Sim, voava, pois o loiro era nada mais nada menos do que um anjo. Sob a luz iridescente que emanava de suas gigantescas asas brancas, Natalia o observava calada.

— Papai. — A menina disse enfim, muito baixinho. — A mamãe não vai voltar, vai?

Seu coração falhou uma batida antes que o loiro finalmente conseguisse encarar os olhos azuis de sua filha, límpidos como o mais claro céu do verão, o retrato da inocência.

— É claro que vai. — Gabriel assegurou, embora ele mesmo duvidasse. — Ela prometeu, não foi? Acha que a sua mãe iria mentir para você?

A menina hesitou, mordendo o lábio inferior, antes de por fim negar com um gesto muito lento de cabeça.

— Não, papai. — Natalia disse. — É claro que não.

O anjo, porém, tinha a estranha sensação de que a menina simplesmente lhe respondera o que ele queria ouvir. A intuição afiada era outra coisa que Natalia herdara da mãe.

Fechando suas asas colossais, o loiro mergulhou suavemente em direção ao chão. Estavam na frente de um grande casarão em estilo romântico, cuja porta se abriu à primeira batida de Gabriel.

Natalia recuou imediatamente ao ver a senhora de aspecto severo que abriu a porta, escondendo o rosto no ombro de seu pai. Muito delicadamente, o loiro desvencilhou-se e a pôs no chão, erguendo-lhe o queixo para que a garotinha o olhasse nos olhos.

— Lembra aquilo que a mamãe fez você prometer? — Ele inquiriu suavemente, recebendo um aceno positivo em resposta. — Eu também preciso que você me prometa uma coisa, está bem?

A pequena nem mesmo hesitou antes de assentir. Faria quase qualquer coisa que o pai lhe pedisse.

— Boa menina. — Gabriel forçou um sorriso. — Você e Cassandra tem que ficar juntas agora, até eu voltar. Entendeu? Quero que me prometa que não vai se separar da sua irmã. Pode fazer isso?

  — Sim, papai. — Natalia assentiu gravemente. — Promete que vai voltar?

Gabriel rezou para que a menina não percebesse sua dúvida, para que não intuísse a mentira em suas palavras quando ele se inclinou para beijar-lhe os cachos negros antes de enfim entregar Cassandra, a bebê que ainda dormia, nos braços da senhora de aspecto severo que esperava na porta.

— Elas ficarão bem. — A mulher disse, estendendo uma das mãos para pousá-la no ombro de Natalia e puxar delicadamente a menina para junto de si. — Venha, pequenina, vamos entrar.

A menina obedeceu docilmente, porém correu para uma das grandes janelas. De lá, observou irredutível enquanto seu pai sumia na escuridão da noite.

Gabriel voou o mais rápido que suas possantes asas podiam carregá-lo pelo céu de veludo negro. Quando pousou na frente do enorme casarão antigo, porém, imediatamente sentiu que havia algo errado. A construção parecia diferente, vazia e envolta numa aura de sombras.

— Lacey? — O loiro chamou, empurrando devagar a porta da frente. Esperava encontrá-la trancada, mas ela abriu-se facilmente. — Lacey, meu amor?

Sua única resposta foi o silêncio. A única luz provinha de suas asas ainda desfraldadas. Gabriel nem sequer parou para pensar em acender qualquer luz na casa. Não precisava disso. Como uma marionete, o anjo sentia-se inexoravelmente puxado pelos cômodos vazios, até dar por si perto da porta que levava ao porão. Era ali que o verdadeiro horror o aguardava.

Lacey jazia ali caída, encostada contra a madeira da porta como uma boneca descartada por uma criança birrenta. Seu vestido, um simples modelo cor de lavanda, tinha a manga direita rasgada até a altura do cotovelo. Em seu peito, cravada até o cabo, jazia uma antiga adaga de prata.

— Lacey! — Gabriel exclamou, caindo de joelhos ao lado de sua amada. — Lacey, não!

Mas aquele corpo sem vida não podia mais ouvi-lo. A escolha fora feita, Lacey optara pelo sacrifício final. Partira com orgulho, como deveria ser, como cabia a alguém como ela.

Delicadamente, o anjo loiro retirou a adaga do corpo da jovem morena, afastando de seu rosto mechas dos longos cabelos negros, evitando olhar para a mancha carmesin que manchava o tecido no local de onde a arma havia sido retirada.

— Elas conseguiram. — O loiro disse baixinho. — As meninas. Elas estão a salvo, crescerão bem longe de tudo isso. É o melhor para as duas.

Gabriel conteve as lágrimas, inclinou-se e deu um último beijo nos lábios já frios da mulher que amara antes de se pôr de pé novamente. Estava acabado. Não havia mais nada ali para ele.

Mais tarde, ainda naquela mesma noite, a pequena Natalia jazia acordada na cama, encarando o teto escuro sem de fato vê-lo. Tinha apenas dois anos de idade, mas uma inteligência afiada e uma intuição melhor ainda. Sabia que algo de ruim havia acontecido com seus pais.

Silenciosamente, a criança deslizou para fora da cama e foi até o berço onde sua irmã caçula dormia. Ao ver que Cassandra parecia bem, relaxou um pouco. Ela era tudo o que lhe restava, afinal.

Com um suspiro e algumas lágrimas rebeldes que teimaram em cair, a garotinha de cabelos negros esgueirou-se novamente para baixo das cobertas e, exausta, não demorou para adormecer. Uma de suas pequeninas mãos continuou o tempo todo agarrada ao pingente de pedra-estrela que ganhara de Lacey.

Na manhã seguinte a senhora de aparência severa que era dona daquela casa, senhora Rockfeldt, encontrou as pequenas Natalia e Cassandra, ambas ainda em suas camas, as duas ardendo em febre. A situação das irmãs não sofreu melhora alguma durante três dias, ao fim dos quais a mais velha finalmente abriu seus enevoados olhos azuis, lançando ao seu redor um olhar desnorteado.

Natalia não se lembrava de quase nada, fosse sobre seus pais ou sua vida antes de ser deixada aos cuidados da senhora Rockfeldt.

— Você não se lembra de nada, querida? — A severa matrona instou. — Nem mesmo seu nome?

A garotinha franziu a testa, esforçando-se ao máximo. Nada, porém, lhe ocorreu.

— Meu nome … — Ela balbuciou baixinho, incerta. — Meu nome … É Nia.

Fora esse detalhe, só conseguia lembrar de mais duas coisas: o nome da bebê que agora chorava no berço era Cassandra, e aquela bebê era sua irmã.

Helena Rockfeldt foi até o berço e pegou a infante que chorava, embalando-a com habilidade em seus braços. Cassandra, porém, não se acalmou.

— Senhora Rockfeltd. — Nia chamou. — Posso segurá-la?

A matrona hesitou, mas por fim concordou ao ver a garotinha morena sentar-se, seu rosto pálido, porém surpreendentemente determinado. Instruiu Natalia a recostar-se nos travesseiros e entregou a bebê nos braços de sua irmã mais velha.

— Está tudo bem, Cass. — A menininha morena sussurrou. — Eu estou aqui.

Para surpresa da mulher que as observava, Cassandra imediatamente parou de chorar, limitando-se a encarar sua irmã mais velha com aqueles seus olhos castanhos muito claros, quase dourados, antes de estender uma de suas mãozinhas para agarrar-lhe o dedo indicador. Natalia simplesmente sorriu, embalando desajeitadamente a irmãzinha enquanto cantarolava uma canção de ninar.

Os anos se passaram rapidamente depois disso, e as duas meninas cresceram. Nia, então já com quinze anos, estava deitada sob uma árvore em um dia de verão, girando pensativamente entre os dedos o pingente de pedra-estrela. Era algo de seu passado, algo que possuía desde que conseguia se lembrar. Mas a questão sobre de onde ele teria vindo era o que realmente a incomodava.

— Nia! — Uma garota exclamou, fazendo a morena dar um pulo de susto.

Natalia se virou, encarando uma menina de treze anos pequenina com longos cabelos loiros e olhos de um peculiar castanho-dourado.

— Cassie! — A adolescente sibilou, irritada. — Que droga, pirralha!

Cassandra riu alto e deitou-se ao lado de sua irmã. Notando o pingente entre os dedos de Nia, a garota mais nova aproximou-se mais para examiná-lo.

—  Me conta de novo. —  A loira pediu. — Onde foi mesmo que você conseguiu esse colar?

—  Sei lá. —  Nia deu de ombros. — Eu não me lembro. Mas esse colar é especial, disso eu tenho certeza.

—  Acha que talvez tenha sido da nossa mãe?

—  Acho. —  A morena assentiu, embora sem muita convicção. — Só o que eu sei é que esse colar é meio que um amuleto. Ele me protege.

— Será? — Cassie perguntou com interesse. — E por que você acha que não se lembra de nada?

— Não faço a mínima ideia. — A menina mais velha respondeu pensativamente. — Mas bem que eu queria descobrir.

A isso Cassie não respondeu, aninhando-se mais perto de sua irmã e pousando a cabeça em seu ombro. As duas ficaram deitadas ali juntas, em total silêncio, cada qual perdida nos próprios pensamentos.


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