O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 5
Capítulo 4: Filho e pai




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Capítulo 4

Filho e pai

— Oi, amor – disse Carlos sem muito ânimo, beijando o rosto da namorada.

— Oi, fofo! – ela, de sua vez, esbanjava sorrisos.

Jéssica era o tipo de garota pela qual o rapaz agradecia todas as noites. Por mais que evitasse os mesmos pensamentos de baixa autoestima que o haviam arrastado ao fundo do poço, não podia deixar de questionar o que aquela mulher vira nele. Linda e resoluta, Carlos questionava-se o quanto ela tinha consciência de ele contribuir para atrasar, e muito, a evolução de sua vida. Mas tinha medo de que, quando tocasse no assunto, Jéssica somasse todas as variáveis e saísse da dele – o que cravaria a lápide sobre o túmulo.

— Como foi a entrevista? – ele tratou de questionar, não querendo que a amada se lembrasse de que dia era.

— Você não vai acreditar!

O estudante de Direito jogou suas coisas sobre um sofá e acomodou-se nele. O apartamento em Copacabana, presente do pai comprado há cinco meses, era uma bagunça que contrastava com a vizinhança fina. Tudo estava fora do lugar, sem contar a sujeira cuja limpeza era negligentemente adiada para os dias em que a faxineira vinha trabalhar. Os móveis de madeira estavam totalmente cobertos de pó e restos de comida cobriam o carpete bege, inclusive um pedaço de pizza cujo queijo seco já se camuflava em meio ao revestimento.

Jéssica assistia a uma novela na TV de streaming quando ele chegou, de certo alguma reprise idiota pela qual insistia em pagar algum dinheiro. Diminuiu o volume do aparelho enquanto se acomodava numa poltrona para dar as boas novas, enchendo os pulmões de ar para soltá-lo de uma só vez:

— Você está falando com a mais nova secretária da Stelix Corporation!

Carlos permaneceu calado por vários segundos, sem sequer piscar. Finalmente respondeu, após o que pareceu uma eternidade:

— Não acredito!

— É isso mesmo! – os olhos dela brilhavam.

— Parabéns, amor!

E você bombou de novo na OAB. Esplêndido!

O jovem ignorou a reprimenda interna sacudindo a cabeça. Saltou do sofá, tomou outro impulso pisando na seção do carpete que os separava e por fim aterrissou num abraço sobre a namorada, beijando-a ardentemente na boca.

— Isso merece uma boa comemoração! – riu o filho do juiz Castro.

— A noite será apenas nossa... – os lábios de Jéssica se contraíram de modo lascivo.

— Não pode ser agora?

Ah, não, você não está propondo sexo só para ela esquecer de vez da data, está?

— Vou ter que acessar a BrazilNet para providenciar os documentos e autorizações necessárias – ela explicou desapontada. – O prazo já vence amanhã, e você sabe como a rede anda lerda. Pode ser mais tarde? – a voz dela tornou-se fina e meiga. – Por favor?

Ele sorriu cansado.

— OK. Eu espero. Estarei lá no quarto.

Trocaram outro beijo antes de Carlos levantar-se e, dobrando por um corredor, abrir a porta do dormitório. Do lado de dentro, envolvido pela penumbra do local de janela semiaberta e nuvens escuras bloqueando a claridade solar, fechou a maçaneta devagar e, com o máximo de discrição, trancou-a usando uma pequena chave magnética.

Suspirou. A cama de casal continuava desarrumada tal qual quando haviam acordado, metade do lençol de nanofibra atirado fora do leito e os travesseiros dobrados parecendo ameaçar sufocar quem neles deitasse. Ainda assim não se intimidou, atirando-se sobre o colchão. Pousou de bruços, virou-se e levou a mão direita de modo instintivo ao bolso da calça. A seringa de Perestroika parecia um cilindro escuro indistinto em meio à ausência de luz.

Hora da consolação...

Sentou-se de costas para o encosto do móvel, estendeu o braço esquerdo e, batendo nele dois dedos da outra mão repetidamente, fez as veias esverdeadas sob a pele pálida se destacarem.

X – X – X

Pedro de Castro saiu do elevador tão logo as portas se abriram no trigésimo sétimo andar do condomínio na Barra da Tijuca. Ainda remoía o encontro no covil de Júlio de Almeida conforme atravessava o corredor repleto de câmeras de vigilância, as mãos levemente dormentes e o corpo ainda um tanto trêmulo devido à adrenalina ainda não eliminada.

Parou diante da entrada de seu apartamento, o 909, e usou seu cartão pessoal para destrancá-la – a porta automática deslizando ao interior da parede. Deu alguns passos dentro da sala, momentaneamente sem rumo conforme os olhos percorriam os móveis de vidro sem nada distinguirem, quando o sistema de reconhecimento da moradia emitiu um bipe e a voz robótica feminina da secretária eletrônica holográfica trouxe-o de volta à realidade:

Você tem três novas mensagens.

Ele definitivamente precisava desativar o acionamento automático daquela porcaria.

— Ativar primeira mensagem.

Pequenos projetores cilíndricos começaram a rodar por trilhos presos às paredes poucos centímetros abaixo do teto, podendo ser confundidos com suportes para cortinas. Triangularam rapidamente uma posição comum e começaram a lançar feixes luminosos sobre uma área do chão de madeira da sala, a figura luminosa indistinta e tremida logo se convertendo num holograma branco feito um fantasma, possuindo metade da altura do juiz. Representava uma mulher de vestido, cabelo preso em coque e saltos altos, bolsa a tiracolo, que disse sorrindo, face voltada para o ponto em que se encontrava Pedro tal qual uma mini-pessoa interagindo de verdade com ele:

Querido, o jantar ontem à noite estava tão romântico! Quero que tenha certeza de que gostei. Passarei aí mais tarde. Um beijo!

O holograma então se curvou para frente num beijo simulado – e, considerando que a cabeça da projeção alcançava a cintura de Pedro, teria sido estranho se ele houvesse resolvido ficar próximo demais dele. Mônica conseguia sempre aliviar um pouco o peso de seu penoso dia-a-dia. E sim, seria ótimo poder repetir o que tinham feito na noite anterior.

Você tem mais duas novas mensagens— a voz da secretária eletrônica reportou quase enciumada, conforme o holograma de Mônica se dissipava.

— Ativar segunda mensagem.

Os projetores reposicionaram-se conforme o juiz atravessou a sala para sentar-se num sofá. O holograma de um homem de terno, pouco cabelo e sapatos compridos – talvez maiores que seu número, e algo distinguível mesmo na proporção menor da imagem – surgiu girando cento e oitenta graus para seu rosto acompanhar a trajetória de Pedro.

Estou indo conversar com aquele canalha do Almeida — o sujeito afirmou num tom ansioso. – Tenho provas suficientes para jogá-lo numa cela em Manaus pelo resto da vida. Você quer travar o bom combate, Pedro, porém não podemos esperar. Não enquanto a PU realiza esse extermínio nas ruas. Ligo mais tarde em seu celular.

A figura do promotor público Mário Valente desapareceu enquanto o juiz continha seus próprios demônios.

Merda! Daquele jeito ele estragaria tudo. Qualquer investigação contra a PU exigia o máximo de tato – coisa que Valente, em toda sua impaciência, estava mais que distante de possuir. Se mesmo fingindo-se de presa amiga na jaula dos leões Pedro conseguira apenas uma incerta permissão de inquérito por parte de Almeida, Mário acabaria devorado. E comprometeria o pouco que obtivera.

Pedro viu-se inquieto no sofá. Precisaria contatar o Ministério, aconselhar alguém a dissuadir Valente da decisão de ir sozinho até o Edifício Nascimento – isso se ele já não houvesse saído. Mas agir com precipitação como o colega não ajudaria muito as coisas.

Você tem mais uma nova mensagem – a inteligência artificial da secretária aparentou concordar com seu julgamento da situação.

— Ativar terceira mensagem.

Um holograma mais que familiar foi projetado desta vez diante do juiz. E seu tamanho diminuto fez com que ele desejasse que a pessoa gravada ainda fosse uma criança fácil de ser controlada. Fácil de ser retida.

Pai, eu preciso falar com o senhor— o filho Carlos parecia agitado e nervoso em sua figura iluminada, vestido com a jaqueta e calças surradas de sempre, como se não tivesse dinheiro para comprar roupas. – Venha até o meu apartamento. Por favor, não deixe para depois!

Pedro esfregou o rosto.

— O que você aprontou agora? – perguntou como se pudesse dialogar com a projeção.

Antes que o holograma desaparecesse por completo, deu uma ordem à secretária:

— Verificar horário da chamada.

Seis de agosto de 2032, uma e quarenta e cinco da manhã— a máquina replicou prontamente.

Hoje de madrugada, depois que fui dormir...— o juiz concluiu. Haviam se passado quase dez horas desde então, e temia pensar no que Carlos poderia ter arranjado nesse tempo.

Preocupações, preocupações. Elas sobravam em sua vida. A secretária autodesligou-se e os projetores voltaram para as caixas metálicas nas quais ficavam em "stand by" junto ao teto. Pedro precisaria decidir do que tratar primeiro. Seu estômago, num ronco, protestou.

Antes de tudo, teria de almoçar.


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