O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 4
Capítulo 3: Prisioneiro n. 86096




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Capítulo 3

 

Prisioneiro n. 86096

 

Oswaldo concluiu a solda, ergueu a máscara de proteção e guardou o maçarico novamente em seu cinto magnético. Ao fechar o painel do robô-faxineiro, constatou satisfeito estar consertado quando as luzes de seu painel se acenderam feito uma árvore de Natal, a máquina já flutuando pela própria sala de manutenção – o aspirador de pó desenrolando-se em sua longa mangueira após desacoplar-se de um dos lados da engenhoca – para começar a compensar o trabalho atrasado.

O mecânico virou-se de costas, o som de sucção ficando intenso conforme o robô removia a poeira do local, e dirigiu-se até a porta de saída, usando seu cartão de acesso pessoal e tendo a retina verificada no visor logo ao lado para retornar ao corredor.

Apesar de todos os procedimentos de segurança, era tranquilo trabalhar ali. Oswaldo divertia-se ao pensar naquilo. A maioria dos cariocas nem suspeitava que, abaixo dos sessenta andares do quartel-general da Polícia Unificada, existia um complexo secreto. Não era muito grande – constituído apenas por três subsolos interconectados por escadas e elevadores privativos – mas devia parecer gigantesco aos prisioneiros que ali chegavam.

Já empregado ali há três anos, testemunhara diversas vezes todo o processo de tratamento dos “indesejados” – desde chegarem ali com os pulsos presos por algemas elétricas, até saírem carregados em sacos pretos para a incineração em Bangu.

Primeiramente eram jogados dentro de celas apertadas de poucos metros quadrados no chamado “Setor de Detenção”– e às vezes amontoavam-se dezenas de jovens em apenas uma. Doce ironia ouvir os drogados, muitas vezes julgando jamais serem pegos e simplesmente cagando para a lei, gritarem e choramingarem em meio a uma pilha humana. A aparência dos cárceres era fria e desoladora. Tudo, inclusive as paredes e o teto, constituído de metal. O cheiro de suor, sangue e fezes incomodava os guardas, mas este não chegava até o térreo, desviado pelo sistema de ventilação – o qual Oswaldo tinha orgulho em ter ajudado a reformar.

Ao lado do Setor de Detenção ficava a enfermaria. Bem precária, digna dos mais despreparados hospitais de antes da Reconstrução. Em alguns casos, quando chegava um novo prisioneiro vítima de acidente ou seriamente ferido por resistir à prisão, algum membro do jovem – como um braço ou perna – acabava amputado ali mesmo, a sangue frio, através de um simples laser cirúrgico. Os berros eram de gelar a espinha, porém acalentadores ao se pensar que os desgraçados mereciam tudo aquilo. Oswaldo tinha sido encarregado de se livrar do lixo hospitalar diversas vezes, as partes do corpo ensanguentadas colocadas em freezers para posterior envio às usinas de biomassa no interior.

Não era muito dado à leitura, mas já topara com um interessante artigo de revista tratando dos efeitos prolongados de drogas como a Perestroika e os Sais Dourados no organismo, intensificando as sinapses dos neurônios e a carga elétrica do indivíduo. Imaginou se os drogados eram capazes mesmo de gerar mais energia quando tinham suas carcaças atiradas nos reatores. Ao menos ajudavam a suprir o tablet de seu filho, onde fazia os trabalhos de escola...

No segundo subsolo ficava a sala de interrogatório. Todos os prisioneiros, antes mesmo de nela entrar, já concluíam que deveria se chamar “sala de tortura”. Ninguém sabia ao certo quais eram os métodos usados pela PU, nem mesmo ele, apesar das histórias que se contava; mas a maioria das vítimas abria o bico em poucos minutos. Às vezes segundos. E, para o bem de seu sono à noite, talvez preferisse continuar sem saber.

Ainda no segundo piso se situavam os dormitórios dos carcereiros do “complexo secreto”. Rudes e bem pequenos – embora, claro, mais confortáveis que os dos detentos – ajudavam a aumentar a já alta agressividade dos oficiais. O tenente Vaz uma vez explicara a Oswaldo ser uma prática “behaviorista”, por mais que não fizesse ideia do que a palavra significava. Só desejava que a irritação dos guardas fosse mais direcionada. Até ele tomava uns bons esporros quando demorava com a limpeza...

Já no terceiro e último subsolo havia o depósito. Não, não era um mero almoxarifado de peças de robôs ou computadores-reserva; de todos ali, ele era o que com certeza saberia. Nenhum funcionário comum tinha acesso ao lugar. Já topara com alguns figurões escoltados descendo o elevador restrito até ele, inclusive o comandante Almeida. Diziam que a PU escondia algo comprometedor lá embaixo. Os servidores principais dos firewalls do governo, afirmavam alguns. Prisioneiros dos primeiros tempos da Reconstrução ainda vivos, cogitavam outros. De qualquer modo, Oswaldo não queria saber. Enquanto seus cinco mil e seiscentos reais-novos líquidos continuassem caindo em sua conta por manter o bico fechado, a PU poderia até ocultar múmias ali dentro – que ele encararia como um armário de roupas.

A agitação no corredor captou sua atenção tão logo nele entrou. Guardas apressavam-se até o elevador de serviço conectado ao estacionamento do prédio – principal via de entrada de novos prisioneiros. Sem perder a calma, Oswaldo checou as ferramentas no bolso da camisa para manter o disfarce, enquanto rumava na mesma direção que os PUs.

Dois dos policiais logo formaram pequeno cordão fechando a passagem – o mecânico tendo de se resignar em parar. Ainda assim, por entre os guardas que se aproximavam e acima dos ombros de outros compondo uma escolta, vislumbrou uma figura curvada mancando, cabelos despenteados e sangue a jorrar de um ferimento à cabeça.

O “complexo secreto” ganhava novo morador.

E ele precisava manter tudo limpo.

 

X – X – X

 

— Anda, vagabundo!

Felipe não conseguia mais andar; depositar todo o peso do corpo em uma só perna havia piorado ainda mais a situação desta. Por conta disso, era agora arrastado pelos dois PUs pelo lúgubre corredor pouco iluminado, e a dor piorou quando chegaram a uma escada – cada resvalar dos pés nos degraus que desciam fazendo seus nervos explodirem.

Após um nevoeiro de corredores, risadas e espasmos, eles se detiveram diante de uma porta de ferro.

— Agora você vai falar! – bradou um dos policiais, abrindo com um cartão de acesso a porta da sala de interrogatório depois de posicionar um olho diante do painel.

Puxado para dentro, Felipe foi preso numa gélida cadeira enferrujada pelas mãos e pelos pés. Apreensivo, viu os dois oficiais se aproximarem de uma pia imunda do lado oposto do recinto. Colocaram luvas cirúrgicas azuis claras, máscaras de elástico e lanternas acima das testas, presas por argolas pretas que os faziam parecer anjos do submundo. Preparavam-se para verdadeira operação cirúrgica, confirmando os relatos que Felipe ouvia nas ruas. Mas a última coisa que fariam, ali, seria curá-lo de qualquer coisa.

Começou a tremer. Achou que conseguiria se manter firme, a droga ajudava nisso – conforme já pudera apurar de seus efeitos. Porém vacilou. Os policiais voltaram até ele. Um deles empurrava um carrinho barulhento com algumas ferramentas que ele não conseguira identificar. Cada zunir agudo das rodinhas era uma pontada em sua espinha.

— Abra a boca, seu inútil! – um dos homens gritou a ordem. – Diga o nome de quem te fornece a droga, onde ele está, como funciona o esquema, e talvez suavizemos um pouco!

O jovem recusou-se, e com isso o segundo policial agarrou-lhe a mandíbula e puxou-a para baixo. Felipe retorceu-se quando sentiu algo como as presas de um alicate bem duro agarrando um de seus molares. A dor foi crescendo com o aperto. O oficial, rindo, divertia-se com cada segundo de sofrimento do viciado.

Felipe gritou. Foi um grito seco, sem vida, como se sua voz não quisesse sair. Mais uma onda de dor profunda e, num movimento rápido e intensamente brusco, o dente foi arrancado.

A boca latejava e sangrava, fios vermelhos escorrendo pelas rachaduras dos lábios. Felipe gemia. O policial, com o alicate numa mão e o dente na outra, exibia o molar como se fosse um troféu, a raiz vermelha voltada para o torturado.

— Beleza! – riu o outro PU. – Os dentes parecem de leite. Agora vamos ver se a língua dele é sensível!

O policial que arrancara o dente voltou a usar o alicate, desta vez para puxar a língua de Felipe para fora pela ponta. Esta, esticada, aos poucos ia sendo esmagada pela ferramenta e também doía demais, sangue minando dentre as papilas. Lágrimas não paravam de escorrer pelo rosto do viciado, por mais que tentasse resistir. Fora ingênuo em acreditar que já nas primeiras doses os comprimidos o deixariam imune à dor. As instruções haviam sido bem claras quanto a isso, e ele as ignorara...

Quando retornou a atenção aos seus algozes, um deles abrira uma caixa metálica aos pés da cadeira, o interior repleto de pedras de gelo. O PU enfiou uma mão enluvada no interior do recipiente, retirando-a com um pequeno saco plástico em mãos, repleto de água e de uma estranha massa avermelhada. Num só movimento dos dedos, abriu o saquinho e apanhou o que havia dentro dele, aproximando-o do rosto de Felipe.

A coisa parecia uma planta, talvez uma flor – e sua parte de cima estava repleta de pequenas cerdas, na verdade tentáculos, que se agitavam freneticamente sentindo a mudança de habitat. Algum tipo de organismo marinho – uma anêmona, mais precisamente; um fragmento das aulas de Biologia do ensino médio sendo recuperado dentre as lembranças distorcidas do viciado. E o PU a aproximava ameaçadoramente de sua língua ainda esticada.

— O comandante Almeida adora frutos do mar! – debochou o policial. – Nunca poderá dividir uma mesa de jantar com ele, mas aqui está seu prêmio de consolação!

Os tentáculos de início se debateram contra a língua de Felipe, feito algum tipo de espaguete vivo e gelado – mas logo as batidas mudaram para chicotadas, os membros da anêmona praticamente se tornando lâminas conforme abriam mais feridas entre as papilas do prisioneiro. Por fim, um dos tentáculos penetrou no órgão, perfurando-o e afundando até quase atravessá-lo. Convertido em agulha, o ferrão do animal não só destroçava a língua de Felipe, mas injetava nela seu veneno.

A dor lancinante logo mudou para crescente dormência, de início similar a uma anestesia de dentista, para então paralisar toda a cabeça do viciado. Não mais sentiu a língua, ainda percebendo o sangue verter por toda boca e fora dela para logo também não mais controlá-la. A respiração diminuiu o ritmo, durante um breve momento causando a sensação de que ia se asfixiar – levando-o a debater-se na cadeira. Logo o corpo se acalmou, conforme a cabeça era desligada e a visão se extinguia, convertendo-se num borrão cinza antes de escurecer.

— Prisioneiro número 8-6-0-9-6 perdeu os sentidos – a voz do PU com o alicate aparentava vir do além. – Vamos deixar o veneno sacudi-lo um pouco antes de administrar o antídoto. Uma hora até a próxima sessão.


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