Queridos Amigos, Todo Mundo Morre escrita por AdrianaRV


Capítulo 2
Capítulo 2 - Queridos amigos, todo mundo tem uma história


Notas iniciais do capítulo

- Música do capítulo: "Kodaline - High Hopes"



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Cap. 2 – Queridos amigos, todo mundo tem uma história

 

“I know it’s crazy to believe in silly things...

(Eu sei que é loucura acreditar em coisas bobas)

 

— Como assim ele tem uma data definida para morrer?! – Julie, levemente indignada, verbalizou o que eu estava me questionando.

— Ah, crianças, ninguém sabe explicar. – Emma falou pela primeira vez. – Desde que conheço esse velho, ele é assim. Fala de uns assuntos esquisitos... sem sentido... A Claire aqui é a única que acredita nas caduquices dele.

— Acredito mesmo! Tommy tem uma sabedoria que transcende a minha compreensão! Por que não estaria certo sobre sua própria morte, hein?

— Oras, Claire! Faça-nos o favor! Por que, diabos, ele estaria?! – Nós já havíamos percebido àquela altura que Owen era o ranzinza do grupo. – O velho não é vidente! – Bufou. – Ele só quer chamar atenção como sempre...

— Bom, pessoal, talvez ele esteja se sentindo deprimido. – Julie tentou amenizar o que poderia se tornar uma discussão entre os idosos e quase todos assentiram com sua suposição. Claire foi a única a se manifestar contra.

— Mas aí que está, menina! – A velhinha segurou a mão dela e se reclinou em sua direção como se fosse lhe contar um segredo. – Tommy não está triste em saber quando vai morrer. Ele conta como se fosse algo banal.

            Eu estava um tanto incomodado. Aquela história parecia uma conversa sem pé nem cabeça e eu queria descobrir o que estava por trás dessa suposta “sabedoria/depressão” de Tommy. Decidi que estava na hora de ir lá fora conhecê-lo.

— Vocês se incomodariam se Julie e eu fôssemos conversar com o Tommy por uns instantes?

— Claro que não, meu bem! Podem ir! – Claire sorriu para nós.

Julie se levantou me acompanhando. Antes de sairmos pela porta, Owen fez questão murmurar alto o suficiente para ouvirmos.

— Eles não vão arrancar nada do velho. Se o Tommy não fala conosco, família dele, quem dirá com a jovem imprensa! – Riram entre si e voltaram ao jogo de cartas.

Seguindo pelo corredor a frente, Julie parecia tão curiosa quanto eu para tirar aquela história a limpo.

— Ethan, você acha que Tommy pode estar pensando em suicídio? – Ela foi bem direta.

— Nossa, calma, Julie. Não vamos nos precipitar com quaisquer conclusões. Nem falamos com ele ainda. Pode ser que ele não esteja deprimido, como Claire disse.

— Eu sei. Mas é que não consigo pensar em outro caso que permita alguém saber sua exata data de óbito – Enrolou a ponta da trança nos dedos. – Quer dizer, ele não está numa prisão com sentença de morte, por exemplo... Nem num hospital com uma doença terminal... E olha que nem assim a data é certa!

— Pois é. – Só consegui dizer isso. Nunca fui uma pessoa crédula o suficiente para acreditar em vidência ou habilidades paranormais, então a possibilidade de algo que não pudesse ser cientificamente explicado para mim não existia.

Em silêncio percorremos alguns corredores amarelos, tentando achar a saída para o exterior do asilo. Nos perdemos em algumas tentativas, mas, como a construção era relativamente pequena, em poucos minutos acabamos por nos deparar com uma larga porta de madeira, cuja janela ao lado indicava que estávamos a uma parede de distância do jardim de convivência externa. Atravessamos porta à fora e apreciamos a visão um lugarzinho simples e aconchegante.

Havia ali várias hortaliças e algumas flores plantadas em volta de um caminho, feito com pedras, que se iniciava na porta de maneira pela qual tínhamos acabado de passar. Logo a frente, o caminho se tornava um grande círculo, envolto por bancos e mesas para jogos de tabuleiro. Já em seu centro podíamos ver uma pequena fonte, com alguns poucos peixes, jorrando água. Externo ao círculo, havia gramado e, mais distante, algumas cadeiras de balanço se posicionavam próximos às três árvores que cresceram naquele jardim. Pudemos ver dois funcionários vestidos de branco observando os poucos idosos que estavam ali sentados, uns tentando capturar os poucos raios de sol que não eram bloqueados pelas nuvens cobrindo o céu, outros compenetrados em seus jogos de dama e desenhos em papel. Tommy estava se balançando na cadeira próxima à árvore que meus conhecimentos de biologia me permitiram julgar ser uma laranjeira. Caminhamos até ele.

Ao nos aproximarmos, pudemos notar o senhor, de olhos fechados, que aparentava ter uns 70 anos. Não era magro nem gordo, nem mesmo era careca como Owen e Joseph. Mas tinha uma barba cinza relativamente rala. E se vestia com uma blusa de manga longa xadrez por baixo de um suspensório semelhante à de um nerd dos anos 80.  

— Sr. Tommy? – Julie o chamou, um pouco envergonhada por estar acordando-o. Ele, no entanto, abriu os olhos como se já tivesse se dado conta da nossa aproximação e só estivesse nos esperando falar.  

— Pois não, querida? Posso ajudá-la com alguma coisa? Acho que nunca te vi por aqui... – Riu um pouco do que ele mesmo disse, endireitou-se na cadeira e pareceu fixar o olhar no vazio a frente.

— Ah, não viu mesmo! – Julie sorriu – Eu e meu amigo Ethan aqui viemos ao asilo pela primeira vez hoje.

— Mas então sejam muito bem-vindos os dois. Como vai, Ethan? – Estendeu a mão em minha direção. Prontamente o cumprimentei.

— Muito bem, obrigado! E o senhor?

— Ah, eu estou ótimo! A vida tem sido generosa comigo. – Falou sorrindo e Julie olhou para mim. Numa análise superficial, ele não aparentava estar deprimido afinal.

—  Então, o senhor... – Comecei.

— Deixe de formalidade, menino! Pode me chamar de Tommy. Eu gosto de ouvir meu nome.

— Certo, então, Tommy. Julie e eu conhecemos seus amigos lá dentro... Claire, Owen, Olívia, Joseph e Emma...

— Sim, sim. Eles são umas raridades, vocês viram? Um mais diferente que o outro. Não passam um dia sequer sem brigar por alguma besteira. – Fechou os olhos e sorriu. – Outro dia mesmo foi o Owen que começou a discussão. Vocês acreditam que ele ficou bravo porque o Joseph comeu um pedaço de pudim a mais na sobremesa?! Mas é, meninos, ele ficou louco! Arranjou quase um alvoroço. Disse que era o dele! Fez um espalhafato! E veja bem se faz sentido isso?! Brigar por um doce ruim desses! E o pior! O velho é diabético! Nem pode comer esse tipo de sobremesa! – Abriu os olhos enquanto ria consigo mesmo e Julie o acompanhou. – Mas olha, vou contar um negócio para vocês. – Balançou-se na cadeira. – Isso me divertiu um tanto! Esses velhos me fazem um bem danado aqui, vocês nem imaginam.

— Que bom, Tommy! Fico feliz em saber que se sente assim. Até porque há alguns minutos pensávamos que você pudesse estar deprimido. – Julie disse levemente acanhada.

— Ora, vejam só! Por que pensariam isso, querida?

— Claire nos contou que o senhor acha que sabe quando vai morrer. – Respondi, me antecipando. Ao que o idoso riu. Ele fazia isso bastante.

— Meu rapaz. Eu sei quando vou morrer. Dia 23 de Janeiro do ano que começa logo, logo. – Voltou a se balançar. – Eu nem fico surpreso com o quanto vocês são céticos! Essa geração só sabe acreditar no que está fotografado, ou escrito nessa tal de internet ou demonstrado nuns cálculos doidos de vinte páginas de conta. Se não enxergam com os próprios olhos, então é mentira! Oras! Eu sei o que eu sei. – Foi categórico.

— E como é que o senhor sabe algo assim? Estou realmente interessado – Admiti.

— Meu filho, essa é uma longa história... – Sorriu novamente.

— As melhores histórias que eu já ouvi começaram assim! – Julie o incentivou. – Além disso, acho que o senhor vai ser perfeito para ajudar o Ethan!

— É mesmo?

— Acho que sim. – Eu disse – Estou tentando ouvir umas histórias de vida interessantes para me ajudar na minha futura carreira jornalista e você parece gostar de contar. Se estiver disposto a compartilhar conosco, estaremos dispostos a ouvir sobre seu grande mistério. – Tentei ironizar um pouco. Tommy não percebeu.

— Claro, claro! – Entusiasmou-se. – Histórias existem para ser contadas!

— Nisso todos nós aqui concordamos! – Falei sorrindo para ele.

— Que pena seria morrer sem deixar nada nessa terra, uma palavra sequer para ser lembrada por alguém. Ser tão rapidamente esquecido... – Tommy continuou. – Mas olha só, estou soando melancólico. – Riu. – É claro que eu ajudo vocês. Inclusive, juntem-se a nós para o jantar de hoje. Tenho um convite para fazer aos meus queridos amigos e gostaria que vocês então participassem.

— Seria um prazer, obrigada! – Julie nem hesitou. Assenti em concordância.

— Que maravilhoso! – Abriu um largo sorriso. – Agora se importariam se entrássemos? Está ficando um tanto frio aqui fora.

— Claro! Ia sugerir o mesmo! – Disse Julie. – O senhor precisa de ajuda para se levantar?

— Oh não, minha filha. Eu já estou acostumado há anos com essa cadeira. Passo muito tempo aqui fora. – Comentou como se fosse um segredo.

Direcionei-me então para fazer o caminho de volta ao interior do asilo, acompanhado de Julie ao meu lado, quando Tommy, já de pé, tornou a falar.

— Mas se um de vocês puder me dar o braço para andar, seria muito bom. Eles reformaram esse jardim tem uns dois meses e colocaram esse caminho novo e eu ainda não me lembro bem de todos os detalhes para percorrer com segurança sem minha bengala...

— Não se lembra? – Indaguei sem entender.

— É meu filho. Eu sou cego.   

E Tommy não parava de nos surpreender.

~//~

            Ficamos para a hora do jantar.

Como os idosos do asilo tinham rotinas que consistiam em levantar bem cedo pela manhã, o horário para se recolherem também era relativamente inferior àqueles de universitários. Por volta de oito horas da noite, todos eram levados para seus quartos. Sendo assim, o jantar acontecia pontualmente às cinco e meia da tarde todos os dias, conforme Anna, a funcionária que nos recebeu, informou-nos posteriormente.

Depois de ajudarmos Tommy a voltar para a área de convivência interna, conversamos mais com ele e seus amigos. Assistimos os velhinhos jogarem e Olívia até se ofereceu para ensinar Julie a tricotar alguma coisa. Logo fomos avisados de que o jantar seria servido e ajudamos o grupo a se dirigir ao refeitório.

Era um local bastante amplo, com várias mesas grandes e retangulares ordenadamente posicionadas. Uma das paredes possuía uma abertura larga que evidenciava a cozinha logo atrás e permitia que os funcionários pegassem as bandejas para os idosos. Tommy escolheu sentar naquela que ele chamou de “mesa tradicional do grupo”, a qual ficava bem perto de uma janela que dava para um dos lados do jardim.  

Julie e eu ajudamos a pegar as bandejas servindo os cinco idosos e, posteriormente, pegamos as nossas e nos juntamos a eles. A comida era basicamente uma forma de um purê nutritivo, já que acredito que se travava de uma mistura de batata com algum legume. Algo leve e fácil de engolir. Havia um copinho de gelatina de limão de sobremesa.

Tommy, após terminar sua refeição, disse que tinha uma proposta a fazer.

— Queridos amigos, como vocês bem sabem, meu tempo aqui está chegando ao fim. – Owen bufou em seu lugar, desdenhando. – As histórias de vocês sempre foram preciosas para mim. Mas não sei se todos nós sabemos das histórias de vida uns dos outros. E antes de partir, eu queria que compartilhássemos nossas experiências de vida. Cada aprendizado, cada perda, cada alegria e cada lágrima. Quero relembrar cada um de vocês. E mais ainda, quero deixar minha essência com vocês e levar as suas comigo, aonde quer que eu vá. – Suspirou. – Sei que nem todos acreditam, Owen mesmo já deixou claro que acha que estou caducando. – Riu. – Mas se meus motivos não forem bons o bastante, façamos isso por nossos novos amigos, Ethan e Julie, que ficariam muito contentes em ouvir as peripécias de nossas vidas. – Mesmo não podendo enxergar ninguém ali, Tommy moveu a cabeça de um lado ao outro lentamente como se estivesse tentando nos ver. – Minha ideia é que comecemos já no próximo sábado, quando os meninos voltarem para nos visitar. Podemos fazer nossas conversas após o jantar. O que me dizem? Estariam de acordo? – Sorriu, esperançoso.

Todos nos entreolhamos, especialmente os idosos, cogitando até onde Tommy estava fazendo sentido. Claire se manifestou.

— Mas só se eu puder contar minha história primeiro.  

Estava decidido então.  

…But I’ve got high hopes”

(Mas eu tenho grandes esperanças)


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Notas finais do capítulo

- Comentários sempre bem-vindos! :)



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