Queridos Amigos, Todo Mundo Morre escrita por AdrianaRV


Capítulo 1
Capítulo 1 - Queridos amigos, todo mundo sabe o que vai acontecer


Notas iniciais do capítulo

- Enjoy!!



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Cap. 1 - Queridos amigos, todo mundo sabe o que vai acontecer

            A verdade é que o nervosismo e a ansiedade estavam me consumindo vivo. A essa altura já estava fazendo um grande esforço para evitar que minha mão repousada sobre a mesa iniciasse qualquer súbito movimento similar a um tamborilar de dedos. Mas inevitavelmente sentia que uma fina camada de suor começava a se formar em minha testa e estava ali pronta para denunciar meu estado emocional. Ainda assim, insistia em manter a postura ereta na intenção de, milagrosamente, passar alguma confiança ao senhor de cabelos grisalhos e nariz protuberante sentado à minha frente.

            Ele parecia bastante compenetrado na tarefa de ler cada uma das várias páginas que lhe entreguei. Vez ou outra ajeitava os óculos e franzia o cenho, enquanto eu tentava interpretar se tais reações indicavam um sinal de aprovação. Ao fundo apenas o som do badalar de um velho pêndulo preenchia o silêncio existente na enorme sala.  

            Mais alguns minutos se passaram e eu já tinha certeza de que não conseguiria aquele emprego. Só queria sair dali o mais rápido possível. Estava pronto para me desculpar pelo tempo gasto naquela entrevista quando Sr. Jones levantou os olhos dos textos e me encarou.

— É, rapaz, não vou mentir – Retirou os óculos e pousou-os sobre a mesa – Isso aqui está muito bom. – Esboçou um meio sorriso e continuou – Para um jovem de 20 anos você já mostra algum potencial como repórter. Você articula bem as palavras, não é repetitivo, parece capaz de colocar o essencial em linhas suficientes e sabe como tirar uma boa matéria a partir de assuntos tediosos e extremamente cotidianos. Até conseguiu fazer com que eu gastasse mais de dois minutos lendo sobre taxação de bagagens em aeroportos. – Rimos – Mas veja bem. Tudo o que me mostrou aqui reforça apenas que você é um bom redator e apresenta talento para o jornalismo. Assim como qualquer outro funcionário que eu tenha neste jornal. Diga-me, Sr McCollin, o que o torna indispensável para mim?

Eu sabia que essas perguntas clichês e quase filosóficas eram bem comuns em entrevistas de emprego, e suas respostas requerem apenas saber fazer um bom marketing pessoal. Mas com Willian Jones, um dos grandes chefes de reportagem de um dos maiores jornais de todo o oeste do Canadá, o Vancouver Daily, parado ali me encarando, não consegui refletir sobre um motivo sequer que parecesse bom o suficiente para que ele me aceitasse como novo estagiário. Eu só sabia que queria desde sempre ser jornalista. E queria mais que qualquer coisa trabalhar ali. Eu precisava dessa chance.

— Sr. Jones – Ajeitei-me melhor na poltrona e encarei-o – vou poupá-lo de ouvir sobre meus grandiosos sonhos infantis de ser um magnata dos jornais, e digo apenas ao senhor que eu tenho uma visão jovem, aguçada, crítica e sagaz. Eu sou apaixonado por comunicação e posso garantir que seus leitores vão querer ler o que eu tenho para escrever. Tudo o que lhe peço é uma oportunidade para provar que posso ser tão ou mais indispensável que qualquer outro funcionário que o senhor tenha contratado.

Sr. Jones cruzou os dedos sobre o queixo e se recostou em sua elegante poltrona, parecendo querer enfatizar bem o que estava prestes a me dizer.

— Acontece, Sr. McCollin, que eu não posso contratar ninguém à base de promessas. Nós trabalhamos com fatos aqui, como bem deve estar ciente. E o que esse material me mostra é que o senhor é bastante dedicado ao que faz. Mas não é versátil. Veja bem, reportagens são essenciais para qualquer jornal. No entanto, não as considero um meio satisfatório de se conhecer o jornalista por detrás do trabalho, entende? As matérias que tenho aqui em mãos são imparciais, objetivas e concisas, como qualquer boa reportagem que se preze. Mas o que elas me dizem sobre o senhor? Sobre suas experiências? Sobre sua visão jovem, aguçada, crítica e sagaz? – Permaneci em silêncio – Não me entenda mal, seu trabalho está em um nível bastante aceitável e sei que sua intenção é a de seguir a linha de reportagem. Mas eu quero ver mais da sua capacidade profissional. Quero ver o que o senhor vê. Preciso ter ideia do que te motiva e de suas inspirações criativas.

— Certo. – Concordei sem entender direito o que estava sendo exigido de mim.

— Teremos um processo de admissão de novos estagiários no início de fevereiro do próximo ano. Isso lhe dá aproximadamente quatro meses para produzir mais material. Procure se diversificar e me impressionar. – Levantou-se e me senti persuadido a fazer o mesmo - Sugiro que escreva... uma crônica. É, uma crônica! Trata-se de uma modalidade por vezes subvalorizada por muitos repórteres e jornalistas, mas que exige uma capacidade crítica, observadora e reflexiva bastante interessante. – Estendeu a mão em minha direção. Prontamente cumprimentei-o – Se for capaz de se renovar, Sr. McCollin, espero revê-lo em breve. – Assenti.

Rapidamente juntei minhas reportagens em minha pasta e me direcionei porta à fora. Respirei fundo. Aquilo só podia ser brincadeira!

Afrouxei o nó da gravata enquanto esperava pelo elevador e não pude evitar o sentimento de frustração que me atingiu. Reportagens e crônicas pertenciam a mundos diferentes. Um requeria impessoalidade. Fatos em relação a fatos. O outro requeria subjetivismo. Impressão pessoal de algo que nem sequer precisava ser notícia. William Jones parecia ter entendido muito errado o motivo que me levou até seu escritório esta manhã.

Entrei no elevador e não deixei de notar as pessoas ali. Todas pareciam apressadas. Alguns estavam claramente impacientes e batiam levemente os pés no chão. Outros faziam anotações em seus celulares. Um senhor a meu lado cheirava fortemente a charuto de aroma amadeirado. Preconceituosamente, julguei que seu cargo deveria ser relevante para o Jornal. Eu queria ser como todos eles. Eu pertencia a esse ambiente.

Saindo do edifício, parei na calçada e me pus a olhar para o alto.

— Eu vou trabalhar aqui. – Sussurrei para mim mesmo.   

~//~

Cheguei alguns minutos atrasado para aula de Técnicas Avançadas de Reportagem. Sentei ao fundo da classe e me esforcei para prestar atenção ao que o professor dizia sobre o fluxo da notícia, mas meu esforço estava sendo em vão.

Após torturantes duas horas, finalmente a classe foi dispensada e me obriguei a andar até a cafeteria do prédio de jornalismo da Universidade da Colúmbia Britânica (UBC), uma das melhores universidades do Canadá. Paguei por um café e me sentei numa das mesas ao ar livre. O dia estava bastante fresco e bastante ensolarado. Normalmente seria um dos dias em que eu não me permitiria ficar de mau-humor. Meus pensamentos vagaram por vários caminhos até que um clique me voltou à realidade.

— Ethan! Você não vai acreditar nessa foto! Você saiu um arraso! – A moça de cabelos castanhos carregando uma câmera grande demais para sua baixa estatura veio andando apressada em minha direção – A luz te beneficiou demais aqui, olha só. Não vou mentir, você ficou lindo com essa cara de sério! – Falou sorrindo provocativamente.

Ri do comentário de Julie.

— E eis que temos a honra da chegada de nossa fotógrafa do ano – Aplaudi. Julie bateu em meu ombro e se sentou ao meu lado.

— Um dia esse seu comentário vai ser verdade, pode continuar caçoando. – Pegou meu café e bebericou. – E aí? Não vai contar para sua melhor amiga como foi a entrevista para o Vancouver Daily? – Fingiu uma cara sentida.

— Ah, Julie. – Suspirei – Não foi ruim. Mas não saiu como o esperado.

Contei a ela sobre os elogios que minhas matérias receberam e como isso não foi o suficiente. E por fim falei da “sugestão” que Sr. Jones jogou para mim.

— Pelo que eu entendi, Ethan, ele está claramente tentando desvendar os segredos mais profundos da sua alma. – Empurrou-me de lado. – Mas falando sério, acho que ele tem razão. Você é um escritor incrível. Mas se limita a textos objetivos. Nem mesmo para mim você já mostrou algum projeto mais pessoal. Você pode ser bom repórter, mas acho que seu futuro chefe só quer saber se você é capaz de fazer o que uma máquina não faria, entende? Transmitir uma certa emoção, um olhar novo sobre algo que passa despercebido no dia a dia.

— Eu entendo o que está sendo pedido, Julie. Só não sei se sou capaz de fazer algo assim. Olha bem para mim. – Levantei e parei à frente dela – Eu nunca fiz nada interessante demais, divertido demais, incrível demais. Não tenho uma história pessoal que valeria tempo para ser lida. E sinceramente, eu estou tranquilo quanto a isso. É questão de idade, né? Ainda estou jovem e sei que as coisas vão acontecer na minha vida num futuro. Mas enquanto isso, me atenho a contar o que se passa com os outros. Algo que seja relevante para a sociedade. – Sentei novamente – Agora, se eu vi alguém comprar um café e isso me levou a refletir sobre o trabalho escravo na China, não vejo a necessidade de partilhar com o mundo, entende? É só um pensamento. Não é uma verdade. Essa história de crônica não acrescenta à vida de ninguém. É entretenimento. E eu quero fazer notícia. – Esfreguei a mão nos cabelos nervosamente.

— Sabe o que eu acho? – Julie questionou após alguns segundos em silêncio – Acho que você não entende ainda como viver uma história muda sua visão de mundo. Você só sabe sobre como contar uma história muda alguém. Talvez você precise ouvir um pouco algumas histórias pessoais para te inspirar...

— E vou ouvir histórias de quem? Suas? Te conheço desde pirralha, Julie, já sei tudo que você aprontou. – Rimos.  

— Não, cabeção! Não as minhas. De pessoas que realmente já viveram uma vida de experiências. Tem um lar de idosos perto daqui. Vi um folheto outro dia que dizia que estão procurando voluntários para ir lá passar um tempo com os velhinhos. Conversar, essas coisas. Acho que podíamos ir e ver no que dá. Talvez te inspire a ver o lado mais subjetivo da vida e te ajude com a sua crônica. Topa?

Pensei por um momento. Não custava nada. Era só ir lá e escutar. Poderia mesmo ser útil ouvir algumas experiências de vida de outras pessoas e ver inclusive os resultados.

— Você até que tem umas ideias boas às vezes, Julie.

— Haha, se esse é seu jeito de falar “obrigado”, pode tentar de novo. – Sorri para ela. – Ah, agora sim, é esse o sorriso que quero. – Bateu outra foto. – Nossa, isso aqui em preto e branco vai te dar uma valorizada que você nem imagina.

~//~

No dia seguinte, sábado, encontrei Julie bem cedo em sua casa e fomos caminhando até o Asilo de que ela tinha me falado.

Julie era minha melhor amiga desde que colei chiclete em seu cabelo no ensino fundamental para tentar chamar sua atenção. Coisa estúpida de garoto. Acontece que ao invés de me odiar, a garota me agradeceu, porque queria o cabelo curto desde sempre, mas a mãe achava coisa de menino. Passamos a ser amigos naquele momento e isso se seguiu até os dias de hoje.

Julie era uma garota engraçada. Deixou o cabelo voltar a crescer com os anos, mas andava sempre com eles presos em uma trança. Achava que isso lhe dava um ar de criança. E mesmo com seus 20 anos, ainda queria manter a infância presente de alguma forma em seu estilo de ser. Cursava jornalismo comigo e era completamente apaixonada por fotografia. Enquanto eu era adepto da ideia de que existem palavras certas para se contar os fatos, Julie achava que uma foto era capaz de dizer tudo e muito mais. Suas fotos por vezes já ilustraram minhas reportagens nos jornais do colégio e nós sempre formávamos uma ótima dupla.

O dia estava meio nublado, então andamos o mais rápido possível para evitar uma possível chuva.

O Lar para Idosos, Bella Vista, era um lugar aparentemente aconchegante. Era um conjunto de pequenos prédios alaranjados, com janelas pintadas de amarelo. Havia um jardim bem cuidado na entrada e o nome do local estava pintado com cores alegres em uma grande placa de madeira. Fomos entrando.

Na recepção, uma senhora de meia idade gordinha de óculos nos recebeu.

— Boa tarde, meus jovens. Em que posso lhes ajudar hoje? Vieram para alguma visita?

Julie se apressou em responder.

— De certa forma sim. Ficamos sabendo que vocês precisam de voluntários para passar tempo com os residentes e gostaríamos de participar. E além disso, – Puxou-me pelo braço – meu amigo aqui e eu fazemos jornalismo na UBC e achamos que seria bastante produtivo para nosso aprendizado profissional entrar em contato com pessoas que têm tanta experiência de vida para compartilhar. – Assenti, concordando.

— Oh, seria realmente muito bom se pudéssemos nos ajudar mutuamente então. – A moça nos indicou uma salinha atrás da recepção – Podem se sentar aqui e logo a Dra. Parker, diretora do nosso Lar, virá lhes receber. Meu nome é Anna, caso precisem de alguma coisa. – Saiu fechando a porta.

— E aí, nervoso?

— Não é como se fosse uma entrevista de emprego, Julie. – Sorri – Somos boas pessoas, eles vão nos adorar. Fica tranquila.

  - Quando foi que não fiquei? – Tamborilou os dedos na perna.

Poucos minutos depois, uma senhora alta, magra e de cabelos brancos adentrou a sala. Vestia um terninho elegante e nos cumprimentou.

— Queria lhes informar que fiquei muito feliz quando Anna me disse que tínhamos possíveis voluntários aguardando. Sou Elisabeth Parker, diretora deste asilo. – Sentou-se à nossa frente – Então, vocês são estudantes de jornalismo?

— Isso mesmo – Confirmei.

— Bom, devem ser bons de comunicação.

— Somos sim – Julie disse alegremente.

— Nossos idosos aqui são bastante diversificados. Temos alguns bastante introvertidos. Outros, porém, são bastante comunicativos e estão ávidos por mais atenção e carinho. Nem todos recebem visitas de familiares e amigos, então há um sentimento bem presente de solidão para esses senhores e senhoras. Se vocês puderem vir ao menos uma vez por semana, já seria uma grande ajuda. E creio que muitos têm histórias fantásticas que vocês adorariam conhecer. Peço apenas que preencham essas fichas com suas informações pessoais e de contato para que possamos saber quem são vocês e para que providenciemos carteiras de identificação afim de que tenham acesso ao prédio e às alas permitidas aos nossos voluntários. – Entregou-nos duas fichas. Julie e eu terminamos de colocar nossos dados em alguns minutos.

— Sejam muito bem-vindos a nossa equipe então – Levantou-se e nos direcionou à porta – Anna, querida, leve-os para conhecer alguns de nossos residentes, por favor.

Seguimos Anna por um largo corredor. Ela falava empolgada com Julie sobre como o lugar estava mesmo precisando de novos rostos amigos. Chegamos a uma sala oval. Havia cerca de quinze idosos ali dispersos. Muitos jogavam algum jogo de carta, outros liam, alguns tricotavam ou desenhavam. Todos conversavam entre si ou sozinhos.

Anna se aproximou de um grupo de cinco idosos com baralho.

— A esse grupinho aqui vocês se dedicarão principalmente. Outros voluntários já foram distribuídos para outros grupos. Falta apenas um senhor que pertence a essa turma e que está lá fora no jardim neste momento. – Voltou-se para os idosos que pareciam não se importar muito com sua presença – Pessoal, quero que vocês conheçam Ethan e Julie. Eles estarão aqui pelos próximos dias para passar tempo com vocês. Sejam gentis! – Depois de seu mini-aviso, Anna se retirou e nos deixou ali. Julie me encarou e decidimos puxar uma cadeira para nos sentarmos com os idosos.

— Olá, gente! Eu sou a Julie e esse aqui é o Ethan.

— Está pensando que somos surdos, moça? Ou que temos problemas de cabeça? A Anna acabou de falar quem são vocês – Disse o velhinho com cara fechada.

— Owen, não seja mal-educado! Julie só estava sendo gentil. Sou a Claire, meu bem. – Falou a senhorinha de rosto amável - Estamos felizes em tê-los conosco. Deixem-me apresentar meus queridos companheiros. Aqueles são Joseph, – um senhor que estava prestando bastante atenção ao jogo de cartas – Olívia, – uma senhora risonha que estava tricotando e observando o jogo que ocorria a seu lado – e Emma – parecia ser a mais velha de todos ali.

Julie e eu sorrimos, tentando parecer educados. Mas não sabíamos ao certo o que dizer.

— Vieram aqui conversar conosco? – Perguntou Claire, aparentemente tentando também ser educada.

— Sim, sim. Somos estudantes de Jornalismo. Temos ainda bastante o que aprender sobre comunicação e pessoas. Gostaríamos muito de ouvir a história de cada um de vocês. – Julie disse.

Joseph continuou seu jogo, assim como Olívia continuou a tricotar. Mas Owen, Emma e Claire nos olharam e balançaram de leve a cabeça.

— Oh, queridos, então é bom se apressarem. – Claire falou com pesar e a olhei curioso. Ela indicou com a cabeça a janela que dava para o jardim. Dali podíamos ver um senhor reclinando-se em uma cadeira de balanço. Parecia ter os olhos fechados, como se estivesse dormindo ou meditando. Sua expressão era suave. – O Tommy ali tem umas baitas histórias de vida, mas o pobre vai morrer dia 23 de janeiro do ano que vem. – Falou com convicção.

Inclinei-me sobre a cadeira e encarei a janela. Parecia que Julie estava certa. Aquele lugar tinha acabado de mostrar potencial para me render algo interessante para contar.


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Notas finais do capítulo

- Comentários são sempre bem-vindos!



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