Produção Independente escrita por Mary


Capítulo 19
19. Produção independente - Por Cuca


Notas iniciais do capítulo

Estou tão contente. Uma leitora nova chamada sackthais fez o meu dia não só pelo comentário lindo como pelo carinho pela Cuca e pela Lelê.
Obrigada de coração.



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Desde que tive alta do hospital com Samira três dias após o nascimento dela, recebi uma visita atrás da outra, a casa estava sempre movimentada, dia e noite. Minha pequena era o centro das atenções. Os priminhos a paparicavam, os tios estavam abobados, os parentes distantes tratavam-na como se fosse membro da realeza britânica.

― Samira? Mas esse nome é estranho... Não seria Samara? ― comentou a Marinete que estava grávida pela segunda vez (agora de um filho do Herbert) e não queria saber qual seria o sexo do bebê antes do parto, jurando de olhos fechados que teria uma filha e a mesma chamar-se-ia Sofia. Nada contra, com a condição de que respeitasse a minha escolha.

― É Samira. ― Fiz questão de deixar bem claro que escolhi para Samira o nome que lhe fazia justiça.

― É estranho ― pronunciou Marinete olhando com certo desdém para a pequena Samira que dormia aninhada em meus braços. Imagina se ela soubesse que aquela criança era filha de Herbert.

― Eu não vejo desse jeito.

Sempre tive uma queda por nomes árabes e gostei do significado: amiga inseparável, vigorosa, animada, companheira de conversas. Meu pai se chamava Emir, cuja origem também é arábica. Se Samira fosse garoto, chamar-se-ia Victor Hugo.

― Eu sou tradicional. A minha filha se for menina vai se chamar Sofia. ― rebateu ela como se o nome Samira fosse uma ofensa. Era por isso que eu evitava fazer trabalhos com a Marinete na faculdade que queria liderar tudo e se não pudesse ser do jeito dela, estava errado.

Minha colega até hoje tem dificuldades em aceitar opiniões divergentes, tanto é que parou de falar comigo por um tempão porque no pleito presidencial votamos em candidatos diferentes. Optei por não dar parte na delegacia sobre o vandalismo cometido no meu carro naquela mesma época de ânimos acalorados porque não queria levar adiante uma situação constrangedora: um farol traseiro quebrado e um arranhão na porta do motorista.

Marinete Montes gostava de transferir o ódio que sentia para os outros, a fim de se tornar a vítima da intolerância que ela própria fomentava.

Nós docentes não temos que obrigar nossos alunos a se alinharem às nossas ideologias, mas permitir que eles aprendam a opinar, a pensar por si próprios, não apenas despejar pelos lábios alguma coisa que viram por aí. Com isso, imaginava que Letícia Ventura não estava gostando nem um pouco da professora substituta.

― Que bom para você!

Samira sinalizava choramingando que queria mamar.

― E o pai da criança? ― especulou ela.

― Está por aí.

― Pensei que depois que você o contasse, ele ficaria com você e estaria aqui babando em cima da Samira.

― Foi uma produção independente.

― Que horror! Não tem vergonha de ser mãe solteira?

― Vergonha de quê?

― De essa criança não ter um pai. ― ilustrou Marinete, aquela que sempre se utilizou das conjunções adversativas para tentar justificar seus pré-conceitos e o soneto sai sempre pior que a emenda. Ela era aquela caloura de Letras frustrada porque nunca passou em Direito, mas se sentia como se estivesse em Medicina. Quando um professor criticava alguma coisa, tempos depois vinha falar o que os mestres disseram como se fosse uma epifania pessoal dela.

― Eu queria ser mãe e combinei com o pai da criança, sem problema algum. A propósito, como vão as coisas com o Herbert?

— Muito bem, obrigada. — exclamou Marinete, soberba. — Nunca vi papai mais babão. Imagina quando a Sofia nascer.

— Que bom, não? Já estava na hora de ele amadurecer, levar a vida a sério!

— Mas, e aí? O que você vai dizer a tal da Samira quando ela crescer e perguntar pelo pai? ― Aquele olhar malicioso querendo escutar uma confissão tórrida que seria pauta de fofocas mais tarde foi o bastante para me enfurecer.

― Se você repetir outra injúria desse tipo eu serei obrigada a pedir para que você se retire. ― respirei mais fundo sempre tomando cuidado para não machucar Samira nem atrapalhar lhe o sono. — Respeite a minha filha. Ela é só um bebê!

― Calma Cuca! Eu não falei nada de mais! ― Marinete se redimiu como se a ofendida fosse ela.

― Eu só não lhe respondo o que gostaria porque você não merece e também porque o que eu fiz ou deixei de fazer entre quatro paredes fosse com quem fosse não é, não foi e nunca vai ser da sua conta. Sou mãe solteira? Sou. Pedir algum favor a você? Não. Não pedi nem para quem me visitasse. Deveria mesmo me importar com a sua opinião?  

― Samira vai crescer e querer saber quem é o pai. Nossa sociedade ainda não aceita isso muito bem.

― Eu quero que se dane essa “sociedade”. Eu quero que você se dane também. Ninguém tem nada com a minha vida. Vá viver a sua vida e pare de julgar a minha, eu não preciso da sua opinião.

Marinete deu uma disfarçada básica alegando que tinha “compromissos” e retirou-se.

― E que vá pra bem longe de mim, idiota. ― gritei quando ouvi a porta principal sendo fechada pela Lia.

A visita da Marinete não me fez nada bem.

― Não liga para essa chata não, Samira. Não é só porque somos uma família diferente que nós somos estranhas. O que faz uma família de verdade é o amor e pode ter certeza de que o meu amor por você é incondicional...

Lia entrou no meu quarto às pressas:

― Eu não vou com as fuças dessa Marinete desde o tempo em que vocês estudavam juntas. ― Lia trouxe um copo com suco de maracujá para mim: ― Ela falou alguma bobagem para você, Cuca?

— Marinete nasceu com a máquina de bobagens ligada. Se ela não falasse bobagem não seria ela.

Lia apoiou o copo em cima do criado-mudo e inclinou o tronco para pegar Samira no colo.

― Tenta descansar um pouquinho, irmã. Vou ajudar a Samira a dormir. ― Ela deu uma piscadela com o olho esquerdo: ― Sou experiente nesse ramo.

― Obrigada! ― Com a voz embargada agradeci e Lia imediatamente se sentou na cama.

― Viu só como eu sabia?

― Não tem importância, Lia. ― ajeitei os cabelos para me deitar novamente. ― Acho que você tem razão, eu preciso descansar.

Lia ficou de pé novamente, ajeitando Samira em seus braços:

― Fica aí que daqui a pouco eu volto com a nossa preciosidade. ― Lia parou em frente à porta do dormitório, agora meu e de Samira.

― Obrigada, irmã. Não sei o que faria se não tivesse você por aqui.

― Eu é que não sei o que faria se você não existisse. ― Lia por fim fechou a porta do meu quarto e eu rolei na cama sem me esforçar para conter as lágrimas.

Marinete tem razão no que diz respeito a nossa sociedade ainda ser arcaica e machista, porque realmente é, sem dúvida alguma. O mundo igualitário com que sonhamos ― divergências ideológicas à parte ― vai depender de muitas rupturas para deixar de ser ideal e ser real.

Eu não estava chorando porque Samira não tinha pai. Chorei por essa causa várias noites enquanto ela estava em meu ventre. Chorei porque queria que minha menina tivesse sido fruto de um amor correspondido, mas faria o que ao meu alcance estivesse para que ela nunca se sentisse culpada nem diferente das outras crianças.

Eu seria sua mãe e seu pai ao mesmo tempo.

Meu celular tentou chamar a minha atenção várias vezes. Por mim, eu ficaria incomunicável. Marinete cutucou na minha ferida.

Uma filha sem um pai.

Apesar de eu conviver bem com a minha solteirice, havia dias em que me sentia um pouco deslocada, como se ser diferente fosse uma punição.

Muitas amigas minhas já têm filhos praticamente “adolescendo”, outras já estão no segundo (ou até terceiro) casamento, eu ainda sou mãe de primeira viagem e nunca cheguei a trilhar a ponte até o casamento.

Eu escolhi não me casar na fase dos vinte e poucos anos. Poderia, por exemplo, ter ficado com o Miguel Strapasson, o veterano que me tirou o sono nos primeiros semestres da faculdade. Marinete e ele chegaram a namorar naquela conturbada época, o que fez essa caloura derrubar lágrimas de dor ao descobrir, porém o sentimento dele por mim falou mais alto e nós dois namoramos por um breve período até eu chegar à conclusão de que o grande amor da vida daquele rapaz era a bebida. Entre mim e uma garrafa de dois litros de vodca eu perderia sempre.

A carreira musical de Miguel resume-se a uma partitura marcada pelo descontrole regrado ao vício. Que ele tem um talento ímpar é inegável, no entanto, sua mente é sua pior inimiga. Eu não o abandonei por não amá-lo. Eu o amei o bastante para respeitar o seu espaço. Por mais que insistisse, nunca poderia salvá-lo de seus fantasmas interiores, poderia ser engolida pelos meus próprios.

Meu ex-namorado é uma alma livre e o mundo apenas um recanto provisório. De qualquer modo, desejo-o que encontre a paz, onde quer que ela esteja, para que prossiga encantando o mundo através do seu talento.

Victor Hugo, meu melhor amigo, era bissexual e entre um coração partido e outro nós ficávamos sem nunca deixarmos de sermos o que éramos, todavia depois de formados, com a Angélica já casada, saíamos juntos e envolvidos até o último fio de cabelo, decidimos namorar. A família dele me adorava totalmente. Eu os amava tanto quanto amo os sogros e cunhados de Lia.

― Cuca, nem você e nem eu queremos promover uma cerimônia convencional, então estive pensando e quero ver se você concorda de nos casarmos no civil como manda o protocolo e fazermos uma festa na praia só para os nossos convidados VIPS? ― sugeriu Victor Hugo numa das muitas noites em que fazíamos amor e ficávamos proseando até que um de nós fosse vencido pelo sono.

― Casar na praia? A ideia é fantástica!

― E não é só isso, minha baixinha, eu nem comecei! ― exultou Victor Hugo, animadíssimo com as ideias mirabolantes que pipocavam em sua mente e precisavam ser compartilhadas comigo para terem sentido. ― O que acha de conhecermos o velho continente na lua-de-mel?

― Não brinca, amorzinho.

― Não sei se vamos poder conhecer tudo logo de uma vez, mas vamos ser dois mochileiros apaixonados desbravando o velho continente.

Victor Hugo levantou-se da cama, caminhou até o guarda-roupa e remexendo lá dentro voltou com um embrulho para mim, incentivando para que eu abrisse.

Era uma filmadora.

― Para que as aventuras dos mochileiros apaixonados nunca sejam esquecidas. ― argumentou Victor Hugo, contente, fazendo carinho no meu rosto.

― Você não existe, Victor Hugo.

Victor Hugo e eu pretendíamos ter um filho. Não havíamos decidido o nome e não fazíamos predileção de gênero, com a condição de que fosse nosso. Um pedacinho de mim e dele, da nossa juventude antológica e consciente, do nosso amor que fugia de qualquer formalismo, um híbrido interessante de boa vontade e companheirismo.

 Vivemos juntos por oito maravilhosos meses antes de uma tragédia abater de vez todos os nossos sonhos.

Victor Hugo vinha se queixando de alguns sintomas incômodos e eu, como toda namorada zelosa, o incentivei a fazer um hemograma e consultar um médico. A notícia que ele tinha para me dar não era nada auspiciosa: o diagnóstico foi de leucemia aguda, um dos tipos mais agressivos da doença.

Eu, como parte da família dele, mantinha a esperança de que ele se curaria e nós teríamos mais uma história para contar aos nossos filhos além das aventuras na faculdade. Minha missão era injetar o otimismo que nem os efeitos colaterais da quimioterapia tiravam dele.

― Às vezes a gente demora tanto pra perceber que aquela pessoa sempre esteve do lado da gente. Como fui demorar tanto pra te encontrar? ― expressou Victor Hugo, dizendo que eu era o seu anjo, que passar por aquela adversidade seria doloroso se eu não estivesse por perto segurando em sua mão quando o medo de perder a luta era maior do que os sonhos que nos aguardavam quando aquele pesadelo fosse página virada.

Victor Hugo internou-se numa manhã de segunda-feira para submeter-se a uma corriqueira sessão de quimioterapia e faleceu uma semana depois na UTI, vítima de infecção hospitalar.

Após o óbito dele perdi a vontade de me cuidar, desenvolvi síndrome do pânico, bulimia, tentando o suicídio por três vezes, associando então a figura do Herbert ao “amor”, visto que quando meu amado faleceu, ele vinha me visitar em casa e se mostrava sensibilizado com o meu sofrimento.

Herbert, porém, nunca substituiu Victor Hugo, nunca poderia.

VH foi o melhor namorado que uma jovem de vinte e poucos anos poderia querer. Não havia segredos entre nós nem cobranças ou crises de ciúmes. Na cama nós nos entendíamos bem. Eu o apoiava e nunca encontrava desalento ao necessitar do seu carinho. Nos braços dele eu me sentia plena, segura, mulher, poesia. Não à toa, a doença dele me destruiu por completo. Em seis meses aquele homem que me carregava no colo e fazia todas as minhas vontades resumia-se a um semblante pálido e alheio a tudo, menos a mim, a quem queria por perto nos melhores e piores momentos.

Os anos foram se passando e embora eu tenha voltado a sair, me abrir para o mundo e as oportunidades, aquilo que vivi com Victor Hugo jamais se repetiu. A princípio, quando o luto pesava mais que a esperança, a impressão era a de que nunca me desvencilharia daquela recordação, que estaria sempre a comparar todos os que aparecessem com o falecido e, portanto, ninguém nunca estaria à altura dele.

Sem prerrogativa de reescrever os trechos do destino que encheram o meu peito de dor, o silêncio foi a minha resposta. Não quis colocar ninguém no lugar dele. Nem no pedestal e nem no fundo do baú.

Um dia me surpreendi quando falei o nome dele sem me afogar em lágrimas. Um aperto no peito teimou em ficar ali para me lembrar de que o sorriso não me fazia indiferente à dor. Eu só havia encontrado o meu próprio jeito de seguir adiante.

Foi importante ter aprendido a ficar sozinha.

Com o coração cheio de feridas e ressentimentos, meus espinhos seriam minha única retribuição. O meu lado sombrio. Sem meios de negá-lo, cabia-me buscar um equilíbrio onde eu me enxergasse sem o estigma de farsante.

Isso significa “dar um tempo a coração”.

Se esse caminho foi eficien te ou não, eu o trilhei. Consciente ou não disso fiz minhas escolhas, mesmo com ventos contrários soprando em meus ouvidos, fui firme e preferi cuidar da área profissional, fazer grandes viagens tanto entre amigas quanto sozinha, esforçando-me para ter uma qualidade de vida maravilhosa e não posso me queixar, fui feliz, não do jeito que impõe o fluxograma idealizado pela sociedade como se nós todos fôssemos brinquedos controlados por mãos invisíveis que nos querem vivendo de imitações.

Isso nunca serviu para mim.

Se eu fosse casada, não seria a Cuca Magalhães que sou. Mãe da Samira, tia da Nathália, do Benício e do Jacques, nem a amiga da Lelê, a professora que eu gosto de ser, nem tenho tanta certeza se amaria o meu provável esposo, se porventura Victor Hugo não tivesse falecido. Talvez eu não morasse com Lia, tivesse três filhos, talvez estivéssemos separados, só sei que tudo seria diferente do que é.

Foi então que eu me peguei filosofando demais. Se a Samira não tivesse vindo ao mundo, eu nunca teria conhecido o Fábio. E eu não sei se conseguiria passar por esse mundo sem ter cruzado ao menos uma vez com os seus olhos.

No more I love you's mais uma vez.

Sim, era o toque personalizado que coloquei para atender ao Fábio. Eu sabia quando era Lia por causa da Macarena e a foto de exibição do contato era aquela de papagaio depenado, da época rebelde sem causa.

― Fábio? ― funguei, pronunciando seu nome com deleite, de modo que ele não percebesse nenhum indício de dor na minha voz.

― Cuca? ― Ele fez uma pausa: ― Está chorando?

― Claro que não!

― Se estiver, Cuca, me chama que eu vou agora mesmo te abraçar. — pediu ele, meigo.

― Só estou um pouco cansada.

― Não quero que minta para mim, querida. ― argumentou ele. Não mentirei que a minha vontade era mesmo chorar nos braços dele, mas não queria fazer o papel da garotinha vulnerável que se apaixona e se entrega ao primeiro que lhe sorri. Esse papel nunca combinou comigo.

Nunca quis ser a mocinha em apuros nem aquela disputada por vários e também nunca me encaixei naquele estereótipo de fresca, não-me-toque. Sempre gostei mais de consolar, de ser aquela que ampara aos outros.

Perdi a minha mãe de repente e uma semana depois voltei ao colégio procurando me mostrar forte, mesmo que todo mundo estivesse me tratando como se eu fosse um vaso prestes a se partir em mil pedaços.

Chorei, sim. E não foram em poucas ocasiões. Em silêncio, para o travesseiro. A ausência de Emir e Romilda às vezes crava um punhal de melancolia no meu peito, todavia guardo-os com vivacidade na memória e escrevo sobre eles com todo o amor que me cabe, desse modo nunca me sinto só. Lia está aqui para me lembrar dos bons frutos deixados.

Perdi a conta de quantas amigas apaixonadas eu consolei estando o meu coração muito mais ferido. Mesmo com os meus olhos cheios de lágrimas e a vontade de sumir, lá estava eu oferecendo meu ombro amigo a alguém, sentindo um pouco de alívio por ainda conseguir me colocar no lugar dos outros.

Quando meu pai me deixou sozinha no mundo com a Lia, eu tinha uma irmã de quinze anos a tiracolo e mesmo estando com tanto medo quanto ela, não havia meios de escapar da grande provação que o destino me impunha.

Lia sofreu muito mais do que eu porque a mudança foi bastante drástica. Teve de abandonar as brincadeiras para levar a vida a sério, estudar à noite para trabalhar durante o dia. Se quisesse tênis novos não poderia pedir para ninguém, teria de juntar dinheiro suficiente para adquirir o produto. Por um lado, isso fez com que a minha irmã mais nova refletisse sobre a importância das coisas, não se ligando tanto à marca, mas ao conforto, ao que valia de cada coisa, cada pessoa.

 Não tínhamos folgas aos sábados. Passávamos as tardes no curso de informática, batalhando para que o nosso futuro fosse muito melhor do que aquele presente tão cheio de indefinições. Quem nos observava agindo com tanta serenidade nem imaginava o quanto estávamos destruídas. Ela naquela fase punk meio (ou muito) nada a ver e eu me forçando a ser adulta mais rapidamente do que previa.

Nunca encontrarei palavras que expressem a minha eterna e profunda gratidão pelos meus amigos Angélica e Victor Hugo por terem acolhido Lia e eu na república, pois tudo o que eu menos queria era viver à custa de parentes, o que aconteceu e não teve (muito) sucesso, a começar pelo fato de não estarmos na nossa casa de verdade e por conta dos sucessivos episódios de assédio sexual a que estávamos sujeitas. O falecido esposo da minha irmã mais velha Cátia que também já não está mais entre nós era, no vulgar português, um tarado.

Parente é aquela pessoa que você vê uma vez ou outra, conversa um pouco, mata a saudade e depois fica um tempão sem ver. Parente é legal quando se fica sem contato, pois se começa a interação frequente, sempre tem confusão. Não é uma observação maldosa, eu digo por mim, mas pode ser que sua unidade de família seja totalmente diferente da minha.

― Não quero que se preocupe comigo. ― Repreendi-o um pouco dengosa, mentindo a mim mesma que o carinho que ele vinha me dando não era sincero, sendo que apesar de não estar na lista de prioridades, era sim algo que me fazia uma falta imensa.

― Mas me preocupar com você é um prazer, não um incômodo, e como eu te disse por esses dias, ô se todo incômodo fosse como você.

Fábio me telefonou “para saber como eu estava”. E eu, por medo, não confessei para ele que tudo que estava entalado na garganta e apertando o meu peito tinha de ser esclarecido pessoalmente.

Algum dia.


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Notas finais do capítulo

Na continuação de PI, na verdade voltamos uns 20 e poucos anos no tempo para conhecermos a adolescência de Cuca e Lia, as amizades, encrencas, dúvidas, angústias e também os micos, amores, sonhos loucos... Lá Cuca conta tudo sobre o Victor Hugo, o Miguel e o ridículo do Herbert...



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