Produção Independente escrita por Mary


Capítulo 17
17. No prontuário da alma - Por Cuca


Notas iniciais do capítulo

Bom, estou surpresa por saber que esta história tem leitores. Minha emoção é grande demais porque não imaginei que a Cuca e a Lelê conseguiriam prender a atenção das pessoas. Espero que vocês estejam gostando porque desse modo vou continuar trabalhando para melhorar cada vez mais.



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Os olhos dele foram os primeiros a me fitarem diretamente depois de ter dormido a ponto de perder a noção do tempo (ou nem tanto), recuperar o sono de meses. Dava a impressão de ser um sonho, mas apesar disso, não era.

Ele estava ali. Em carne, osso, virilidade e sem o jaleco branco cujo nome completo estava bordado na altura do peito (o lado direito). Fábio Duarte Aragão, em pessoa. Sem o estetoscópio nem a prancheta, com as mãos vazias, mas de corpo presente, com o perfume inebriante tanto quanto a presença já o era.

Transferida para um quarto comum assim que me recuperei do trabalho de parto, tinha a ilustre companhia de Lia que pediu licença do trabalho para me acompanhar, enquanto Ivan tomava conta das crianças que mais do que nunca aguardavam ansiosas pela nova integrante da família. As paredes estavam enfeitadas com balões de todas as cores porque eu já havia determinado nada muito tendencioso, se é que me compreendem...

― Parabéns, Cuca! — exultou o médico que ali tinha o vínculo de um amigo, não do profissional. — E que bom te encontrar acordada.

― Dr. Fábio? Você por aqui? ― Eu mal havia acordado e milhões de borboletas se abriram no meu estômago.

Borboletas no estômago, uma expressão que eu costumava utilizar quando era mais nova e estava perdidamente apaixonada por alguém. Elas estavam de volta e aquele desuso era não mais que uma necessária rotatividade que vinha para bagunçar as minhas locuções substantivas do momento.

As borboletas no estômago podiam ser também a fome de leão que viria a rugir. Eu não me recordava quando tinha sido a última vez que havia feito uma refeição decente. Entretanto, meu apetite era daquilo que as enfermeiras não poderiam me trazer em uma bandeja.

― Quantas vezes eu vou precisar repetir que você pode me chamar só de Fábio? ― sorriu ele. ― Só Fábio, por favor.

― Está bem, “Só Fábio”. Obrigada por vir!

— Eu nunca deixaria de vir. — sorriu Fábio, elogiando a recém-nascida e repetindo que eu poderia contar com ele sempre e sempre.

― Eu compreendo suas razões e, além disso, seu amigo tomou conta de mim e da minha pequena.

― Mas eu realmente me esforcei. ― protestou ele, driblando a angústia que o traía pelos olhos.

— Pra quê? — inquiri com a voz mais rouca.

— Eu te devo uma explicação.

— Não precisa, não.

Fábio não me devia satisfações. Tendo uma centena de pacientes, eu era apenas mais uma. Não mais. Para mim, ele também já não era somente o meu obstetra, era alguém que eu não queria deixar de ver jamais, apesar de saber que isso iria acontecer. Tão cedo eu não pretendia ter outro filho. Não que não tivesse gostado da ideia de ser mãe, é que eu não teria resistência para passar por tudo aquilo de novo.

Durante os meses em que minha menina estava dentro de mim, dei um tempo ao meu coração. Li no feed de notícias ainda naquele final de julho tão tumultuado por um coração partido, uma gravidez repentina e uma sensação incomensurável de vazio e fracasso, a postagem de uma amiga sobre mulheres que tentavam consertar um mau relacionamento emendando-se em outro, sem sequer fazer um balanço para entender o que as levava a cometer sempre o mesmo erro. Foi um soco no estômago, discurso direto, aquela alfinetada que cutuca a dignidade.

Senti na pele a dor da personagem da crônica porque meus relacionamentos tinham um padrão determinante. Eu sempre procurava alguém a quem pudesse “salvar”. Mantive firme enquanto pude a intenção de ajudar Herbert a se encontrar no aspecto profissional, o Amauri a parar de beber e voltar para a faculdade, o Bruno a consumir a medicação para que o transtorno bipolar não imobilizasse os outros setores da vida, no entanto apesar dos meus esforços, ninguém queria ser salvo.

Protegendo-os, o desgaste da minha parte inviabilizava a partilha de amor e carinho, era eu quem saía dos relacionamentos completamente em frangalhos. Apreciava sobremaneira a sensação de acolhimento que proporcionava aos outros esperando retribuição, afinal de contas, aquele amor que só descobri em mim mesma depois dos trinta e poucos anos.

Na medição de forças, eu doava o melhor de mim e recebia em troca o meu coração em estilhaços, procurando consolo nos braços daquele que se alimentava da minha fraqueza para oferecer-me a força que nunca teve.

Parei de chorar por eles para olhar um pouco por mim.

Quem esperava por mim?

Se eu porventura perdesse a direção, quem seria capaz de me reencontrar em meio ao caos?

A dependência facilmente se confunde com esmero, por isso muitas vezes não basta à relação ter todos os indícios de toxicidade, o medo de perder o que na realidade nem se tem nos prende a correntes invisíveis a tolher os passos.

A liberdade é assustadora para quem perdeu o costume de louvá-la.

― Eu não estou chateada por nada, Fábio.

― Mas eu sim. ― Fábio decidiu explicar-se, mesmo não havendo qualquer necessidade disso. Éramos amigos de qualquer maneira. Maior prova do que ser visitada por ele quando mal havia recebido alta não teria.

― Tudo isso por mim?

― Eu faria muito mais por você. ― Fábio Aragão olhou bem dentro dos meus olhos. ― Continua linda. ― confessou ele, com os braços para trás, tão meigo e tímido, como se aquela fosse à primeira vez que dissesse isso a uma mulher.

― Se estiver com pressa não precisa ficar. Longe de mim querer te atrapalhar.

― Ô se todo incômodo fosse como você. ― Ele inclinou o seu corpo para que suas mãos alcançassem as mechas bagunçadas do meu cabelo. Eu estremeci quando tocada.

― Me desculpe...

― E pelo quê, querida? Se for pelo fato de não estar arrumada, saiba que não dou à mínima.

Meu desconforto era vaidoso, por assim dizer. Eu não esperava recebe-lo tão cedo, portanto não havia ajeitado o cabelo e colocado um pouco de maquiagem no rosto para espantar a palidez. Ele não parecia se importar com esse detalhe, alisando a minha testa com carinho, tanto é que pediu permissão para arrastar uma cadeira e se sentar ao meu lado que afofei os travesseiros e me ajeitei para fita-lo.

― Eu não imaginei que você estaria aqui. Logo você que vive de uma parte a outra, sempre sem tempo para quase nada.

― Não, Cuca, não precisa se esforçar muito. ― Ele estendeu seu braço direito para que eu me segurasse, ofereceu um copo de água e me ajudou a beber alguns goles, minha garganta estava seca e a alimentação tinha de ser leve para que eu amamentasse bem a minha pequena preciosidade que descansava no berçário.

― Eu estava grávida, não moribunda. ― dei de ombros.

― Mas o Léo (Dr. Leonardo Palhares) me contou que você passou por um perrengue ― Fábio insistiu. ― Você não se aborreceu com nada, Cuca? Quando você chegou aqui trazida por um taxista, sua irmã quase morreu de tristeza, sua pressão estava a 18 por 10, um perigo para você e a pequenina.

― Eu só me lembro de que pensei que iria morrer.

― E por pouco isso não aconteceu. Se a sua pressão não tivesse se normalizado como felizmente aconteceu, provavelmente o trabalho de parto teria sido uma tragédia. — alertou Fábio com a preocupação externada nos olhos.

― Você sabe me informar que dia é hoje?

― Dia 24 de fevereiro.

― Não parece tanto tempo assim.

Eu tive minha conversa com o Herbert no dia 22 de fevereiro.

― De fato, não foi. Mas dentro desse ambiente cada minuto tem a amplitude de mil anos, logo quando uma vida está em risco, um minuto tem mil anos e mil anos de dor nós médicos padecemos quando não conseguimos salvar nossos pacientes.

― Então eu podia ter morrido?

― Podia... ― Ele concordou com a cabeça, esticando as mãos para fazer carinho nos meus cabelos: — Mas não precisa mais se preocupar com isso. Você passou pela parte mais difícil e está aqui!

Apertamos nossas mãos, aproveitando a sinceridade daquele raro momento para nos desprendermos de nossas máscaras convencionais e falarmos “eu te adoro”, numa disputa de quem adorava mais.

Se Fábio Aragão não nutrisse outro sentimento por mim que não fosse o de compaixão, teria seguido sendo meu médico e nosso vínculo se encerraria ali, porém com mais formalidades. O fato de ter me transferido para o amigo dele precisava significar alguma coisa, mesmo que minha imaginação, tão ávida por alguma surpresa boa, inventasse alguma emenda só para me confortar de outra ilusão unilateral. Eu não me atrevia a indagar, ele era sempre mais contido em suas declarações. Permanecíamos assim, entre sorrisos largos, carícias suaves e poucas definições.

Dividida, como sempre. Entre aceitar que gostava muito de Fábio Aragão e reconhecer que também poderia me decepcionar se mais uma vez tivesse confundido os sinais de uma boa amizade com a paixão. Esperando outro resultado, outro imprevisto, uma solução menos desgastante. Esperando acordar sem lembrar. No entanto, revendo-o na manhã seguinte ao pós-parto, ouvindo suas desculpas e sentindo suas mãos apertarem as minhas, todo aquele esforço de me afastar não evitou o inevitável.

Eu o desejava como homem.


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Notas finais do capítulo

https://fanfiction.com.br/historia/719752/Fabio_e_Cuca/

Um convite para quem quiser conhecer o Dr. Fábio.



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