Produção Independente escrita por Mary


Capítulo 15
15. Ficando pra titia - Por Cuca


Notas iniciais do capítulo

Vai nascer a filha da Cuca! Ebaaaaaa!
Dedicado à Larissa Patricia.



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2015 ficaria conhecido como sendo o ano dos tarifaços.

Fevereiro foi tudo, menos um mês calmo. A categoria de professores decidiu entrar em greve após o governo estadual apresentar um pacote de maldades que seria aprovado pela Câmara dos Deputados totalmente favorável a ele. Nós servidores públicos perderíamos benefícios de carreira que não eram meras regalias, mas direitos pelo tempo de serviço, dentre uma medida que sabotaria o fundo de aposentadoria, um absurdo sem precedentes.

Professor nenhum que se prezasse engoliria em seco todas as supostas medidas para "equilibrar" as contas do estado, sendo que se a caixa estava inflada era por conta do excesso de cargos comissionados e gastos desnecessários com publicidade. Decretaríamos greve enquanto aquele projeto nefasto que causaria um dano enorme para todos os servidores públicos não fosse tirado de pauta para votação.

Geralmente estou sempre a par de tudo o que acontece no sindicato, mas por conta da gestação tive de me afastar e me senti muito frustrada por não poder acampar em frente à Assembleia Legislativa junto com os meus companheiros de profissão, montar nossas barracas, dialogarmos com a população nas ruas e pressionarmos os deputados a ficarem do lado daqueles que os elegem a cada quatro anos, dos docentes, daqueles que a eles confiam à administração do estado.

Nossa categoria sabe muito bem o que significa tentar dialogar com um governador que responde às nossas exigências com bombas de gás lacrimogêneo e cavalos descontrolados, mas ninguém desistiria da luta sem perseverar até o último segundo para mostrar aos nossos estudantes e pais que somos nós a revolução e unidos somos mais fortes que quaisquer governos. Além do mais, se num projeto a longo prazo a educação é negligenciada, pode-se saber que a população não será beneficiada.

Acompanhei todo o desdobrar da paralisação pelas redes sociais, uma vez que a mídia tradicional e corporativa não deu qualquer ênfase ao fato seríssimo, apenas emitindo pequenas notas do governador que fugiu para os Estados Unidos quando a atuação da polícia contra os manifestantes foi questionada. 

Eu podia estar em casa esperando a minha filha nascer, todavia nem por isso abandonei meus amigos na luta. Chorei e comemorei com eles, enviei toda a minha positividade, nunca me acovardei e nunca irei, mesmo com motivos de sobra para mudar de profissão e para não mais temer "pacotes de maldades" de quem finge ser "pelo povo" de quatro em quatro anos porque no entremeio está saqueando os cofres do Estado, sustentando amantes e sucateando os recursos com a desculpa de enxugar a máquina pública e reduzir gastos. Honestamente não acredito em mudanças profundas nos próximos anos, temo um grande retrocesso em todos os sentidos, que minha menina viva em um ambiente permeado pela mais profunda intolerância.

Alguns docentes como a Marinete se recusaram a participar da mobilização, assim como muitos colegas da escola, então lá as aulas continuaram normalmente, ainda que com desfalques.

Na segunda-feira de Carnaval tive uma crise nervosa e fui hospitalizada às pressas, fiquei em observação, mas liberada porque ainda não tinha dilatação para iniciar o trabalho de parto, todavia após o desastroso reencontro com Herbert, dei-me conta de que as cólicas menstruais eram meras cócegas se comparadas com toda a dor que comecei a sentir naquela tarde. O taxista que abriu a porta do passageiro para eu entrasse não cobrou a bandeirada e me encaminhou para a maternidade.

Sentia como se um trator estivesse passando por cima da minha barriga e não houvesse modos de escapar. A dilatação ainda estava muito reduzida, eu precisaria esperar mais algumas horas para fazer toda a força que traria minha menininha ao mundo finalmente.

Ivan sabia tomar conta dos filhos e não se importaria em vigiar os três porquinhos (assim chamo os meus sobrinhos) na ausência de Lia, pois eu também ficava de babá dos pequenos quando o casal decidia dar uma escapadinha.

Lia segurava na minha mão no quarto dizendo sempre que tudo iria dar certo, que estaria comigo até o fim. Eu, por minha vez, suando feito um atleta correndo sob um sol escaldante.

― Falta pouco, Cuca. Fica tranquila que quando você vir já vai estar com a sua filhinha nos braços... — incentivou Lia.

― Não tô aguentando mais  ― choraminguei. ― É como se estivessem socando a minha barriga...

Lia passava a mão sobre o meu cabelo cuja raiz estava molhada em função do suor. Eu estava encharcada, chorosa, rendida.

― Isso já vai passar, já vai passar. ― repetiu ela como um mantra debaixo da língua, apertando as minhas mãos já sem nenhum anel nos dedos, alisando com carinho a minha pele. Naquele instante eu era a verdadeira caçula.

Eu já havia vestido aquela camisola hospitalar sexy (só que não). Lia me ajudou em todo o processo, dentro do banheiro ao lado.

― Cuca, você está sob os cuidados de uma mãe profissional. ― Ela pontuou fazendo sinal de aspas com os dedos. ― Eu passei por essa experiência por três vezes e pense que quando eu fui dar à luz à Nathy, não tinha a mínima ideia se sairia viva da mesa de parto e olha só, a Nathália já é praticamente uma mocinha.

Nunca me importei com o fato de que a Lia se casou antes de mim porque nunca estipulamos nenhum regulamento, apenas usaríamos nossos garrotes de ursas no caso de sermos atacadas.

Ivan Passos entrou na vida dela para acrescentar, justamente no fim daquela fase “rebelde sem causa”. Ele, no entanto, demonstrou não ser uma dessas paixões passageiras. Foi conquistando minha irmã com muita originalidade, devagar, assentando cada passo, fazendo com que Lia se entregasse, se sentisse verdadeiramente importante. Nutro pela pessoa dele consideração de irmã, uma gratidão tão grande que não cabe nem num abraço.

Eu jamais permitiria que meu papagaio depenado e sem tribo se atirasse nos braços do primeiro canalha que aparecesse jurando amor eterno que se desfaz junto com o ramalhete murcho de rosas vermelhas e clichês. Nada contra as rosas vermelhas, elas são lindas, mas para início de relacionamento eu sugeriria brancas e amarelas, são mais sóbrias.

Ivan gosta de orquídeas, Lia de cravos.

A pequena Nathália nasceu alguns meses depois que Ivan e Lia se casaram. Eu fui uma das testemunhas deles no processo civil junto com mais amigos em comum e depois nós fomos para um rodízio de pizzas onde comemos até ficarmos fartos. No dia seguinte, um sábado, os pombinhos de malas prontas foram acampar e três semanas depois a caçula me telefonou do trabalho aos prantos.

― Não me diga que já vão se divorciar? ― Nem sequer disse alô. Intimidade é isso mesmo. Poucas pessoas no mundo me proporcionam essa abertura tão incrível. A maioria faz com que eu abuse dos formalismos.

― Cuca, você se lembra de quando eu te enchia dizendo que você iria ficar pra titia? ― sondou ela cuidadosamente.

― Eu me lembro sim. ― Na época de adolescente eu quase batia na Lia quando ela me zoava dizendo que se continuasse daquele jeito (solteira) ficaria para titia. Hoje nós duas rimos tanto disso, pois ser tia é uma experiência maravilhosa e agora ela iria saber como era.

― Pois então... Eu acho que aconteceu!

― Eu... Vou ser tia? ― Quem começou a pular do outro lado da linha fui eu.

― Eu disse ao Ivan que não estava me sentindo bem, pensei que fosse o cansaço desse trabalho, mas quando comprei o teste de farmácia e fiz, apareceram às três tirinhas, Cuca.

― Meus parabéns, Lia. ― Meus olhos estavam cheios de lágrimas. E eram de alegria!

Com a ajuda dos sogros (e minha também), Ivan e Lia compraram a casa onde moramos desde que a Nathália deixou de ser a única criança da família. Minha sobrinha ficou um pouco aborrecida no começo porque queria ter ganhado uma irmãzinha.

Jacques veio ao mundo e foi muito bem recebido, porém sentiu ciúmes na vez de Benício, o que passou quando ambos se conheceram.

Nathália, ao saber que teria seu próprio quarto, pediu a minha opinião para saber de que cor seria a parede.

― Você não quer tudo cor de rosa? ― Ela cruzou os braços. ― Porque eu não quero.

― Então que tal pensarmos em outra cor? Uma cor que você goste.

― Azul é cor de menino. ― lamentou a pequena.

― Quem disse isso?

― Lá na escola.

― Rosa não é cor de menina e azul não é cor de menino. As cores são de todo mundo.

Nathália pintou o quarto com as cores do céu e mais do que nunca estava contente com a ideia de ter uma prima.

Meus olhos abriram-se bem devagar, depois se fecharam. Não sei ao certo quantas horas já haviam se passado, se estava escuro lá fora (ou claro novamente), se já era outro dia.

Eu já estava deitada em outro lugar, na mesa de parto, quer dizer. Todo aquele clarão na minha direção me obrigava a fechar os olhos ou caso contrário nunca mais enxergaria nada. Eu estava gritando o mais alto que a garganta conseguia, a dor era insuportável, eu não tinha mais forças para seguir adiante.

A respiração estava ofegante, eu exausta demais até para chorar. Uma mulher com roupa cirúrgica verde limpou a minha testa suada com uma toalha úmida, aconselhando-me a empurrar o mais rápido que podia porque não faltava muito para a criança nascer.

― Isso, Cuca. Força! Força, amiga! Não vai demorar tanto assim. ― incentivava a enfermeira em um tom de voz condescendente.

Eu estava próxima de completar três anos de idade quando a Lia nasceu. Para mim foi ótimo ter outra menininha na casa para interagir. No começo, é claro, não foi assim. Fiquei enciumada, passei a fazer xixi na cama de propósito, virava a cumbuca com sopa de feijões na cabeça, deixava meus brinquedos todos espalhados pela sala e não respondia quando os adultos me chamavam. A Cuca amável transformou-se na pior pestinha de todos os tempos, isso tudo até meus pais decidirem adotar a terapia reversa, que deu muitíssimo certo. Nada me envergonhava mais do que ter a desaprovação de Emir e Romilda.

Lia cresceu um pouquinho mais e estar no posto de irmã mais velha refrescou a minha importância, era gratificante saber que aquela menininha de cabelos encaracolados era a minha irmãzinha, aquela que eu segurava nas mãos enlaçando nossos dedos fininhos quando fazíamos às pazes, quando ela tinha pesadelos e pedia para dormir comigo. Era bom poder ensiná-la tudo que eu aprendia na escola, ainda que fosse pequenininha demais para assimilar. Eu gostava de inventar respostas para as perguntas feitas e refeitas.

Eu sabia que Lia Magalhães Passos não perderia esse momento da minha vida por nada.

Quando a Nathália nasceu, saí da pós-graduação voando para a maternidade e fiz questão de estar ao lado dela mesmo que não pudesse arrancar toda aquela dor que se irradiava de dentro para fora, uma das maiores dores que uma mulher pode sentir, talvez a mais importante. Porque é.

Gostei de ser tia, de ter tido a honra de ser escolhida para cortar bem direitinho o cordão umbilical do bebê, de ter ajudado a dar o primeiro banho nele, de celebrar a chegada de mais uma vida, o aumento da nossa família que começou pequena e foi crescendo como um coração de mãe que se prepara para bater longe de seu corpo.

Eu ia entendendo isso à medida que minha filha crescia dentro de mim.

― Vai, irmã... Já dá para ver a cabecinha... Vai, vai... ― Lia apertava a minha mão bem forte para me encorajar.

Meu último grito de dor cortou a sala de parto, sendo um pouco mais longo que os outros.

Missão cumprida.

― Valeu irmã! ― Lia me felicitou, emocionada, com as trêmulas mãos vindas de encontro às minhas, mais fracas do que eu podia pensar. ― Acabou! ― Ela cortou o cordão umbilical e trouxe o bebê até os meus braços, ajudando-me a segurar aquele pedacinho meu.

― Já nasceu?

― Não só nasceu como quer te dar um alô.

Lia estava se dirigindo a mim como costumava fazer com os filhos pequenos, numa entonação amável, atenciosa e até didática, aquela mesma dicção que fazia os seus bebês não terem medo de nada, não enquanto ela estivesse por perto.

― Ei mamãe, acorda, sua dorminhoca! Eu tô aqui! Eu quero mamar!

Meus olhos estavam abertos, mas pesados. Meu cérebro emitia uma ordem, o corpo obedecia à outra. Era óbvio que eu estava no meu limite, desejando dormir por doze horas ou mais e acordar sem dor alguma.

Vendo aquele bebê embalado por um manto verde escuro foi o suficiente para que eu rompesse em lágrimas.

― Pode chorar irmã. Chora mesmo, que é bom... ― Lia me ajudou a acomodar a menininha para mamar em um dos meus seios. ― O pior já passou. Ela tá aqui! Eu tô aqui também!

― Ela é minha mesmo?

― Para sempre. ― confirmou Lia, afagando a minha cabeça.

― Mal posso acreditar.

― Você nos deu um susto, Cuca, mas o pior já passou. Doeu, mas ela está aqui, aqui do nosso lado. ― Lia me recomendou com a cautela de mãe coruja que agora se estende também a sua sobrinha. ― Agora vocês duas precisam descansar, mas não se preocupe porque vocês vão ter muito tempo para se amarem em breve, Cuca linda do meu coração. Agora descansa.

Ela beijou a minha testa.


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