A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 25
Capítulo 24




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Segundo dia do terceiro mês, ano 7302.

 

Cena I – Rumo a Ruthure!

06 horas em ponto. Reino Gigante – Ramavel. Divisa com Ruthure.

 

Veneza Quendra ou Aço Voador, chame como preferir, estava a postos à frente de seu exército, pronta para se lançar contra os anões.

—Irmãos, certamente a Salvaguarda Legítima já os comunicou sobre nosso ataque. Peço desculpas pela falta de planejamento e pela urgência, porém não há outra forma. -A imperatriz flutuava sobre a areia da praia, vislumbrando a terra vulcânica para além do mar, Ruthure. -O pelotão “A” irá comigo ao Palácio Real para subjugar a realeza; enquanto isso, o pelotão “B” devastará a capital e tomará alguns nobres como reféns.

—E quando a nós, majestade? -Perguntou um clérigo e, a julgar pelas vestes, era certamente o mais graduado do reino.

—Você e seus homens se dividirão em “C1” e “C2”. -Explicou ela. -“C1” estará encarregado de fazer cair a temperatura, se possível a zero ou menos! Conto com os mágicos para isso. -Veneza sorria entusiasmada, certa de que a vitória era sua apesar de não ter mais os poderes de semideusa. -O pelotão “C2” cobrirá o “C1” e se encarregará também de espalhar runas de poder do tipo glacial em pontos estratégicos para aumentar a intensidade dos feitiços de “C1”.

—É hora de partir… POR RAMAVEL! -Gritou Aço Voador

—E PELA IMPERATRIZ! -Responderam os soldados.

 

***

 

Cena II – O Velório.

07 horas em ponto. Reino Elfo – Eyrell. Praça dos Charmes.

 

O céu estava nublado, só se via luz da Astral aqui e acolá quando transpassava alguma nuvem menos espessa. Ventava pouco e as folhas redemoinhavam ao toque do ar e se prendiam no cabelo e chapéus dos elfos. A multidão circundava o homem idoso e bastante emocionado ao falar de seus finados monarcas.

 

—… É com imenso pesar que nos despedimos de nossa amada Família Real de Eyrell. -Disse o orador, finalizando seu discurso.

A cerimônia foi aberta a todos que desejassem contemplá-la. Os caixões seguiram de lá para a floresta, como era de costume. Entre os elfos, era comum enterrar seus mortos aos pés de uma árvore, próximo onde outros membros da família haviam sido sepultados, mantendo-se, destarte, a família sempre unida. Mesmo depois da morte. Com isso, acreditavam aumentar as chances de fazê-los reencarnar juntos.

Os eyréllicos não sabiam como o reino seria administrado dali em diante… não existiam sucessores diretos, Hélio fora o último Jardais.

 

***

 

Cena III – O Trono a quem merece.

07 horas e 15 minutos. Reino Elfo – Eyrell. Palácio Real.

 

Os portões do palácio estavam trancados, lá dentro, confinados, havia chefes de todos os cargos de poder no reino: religioso, militar, acadêmico, mágico... Discutiam, quase aos pontapés, sobre o futuro do governo de Eyrell.

 

—Ora, mas que ideia estúpida é esta, Brian? -Zangou-se César Iros, chefe da Guarda e de alguns cargos dentro da Salvaguarda Legítima. -Deixar que escolham qual de nós deve governar como suplente? É um absurdo!

—Nada mais justo, agora que a coroa está sem herdeiros. -Rebateu Brian, mestre em magia nomeado Supremo Feiticeiro de Eyrell pela Rainha Maya. -O que sugere então? Governar você mesmo?

—Claro! Quem melhor do que eu para assumir o trono? Eu conheço de cabo a rabo os direitos e deveres dos cidadãos de Eyrell e tenho anos e anos de experiência em combate.

—Estamos nisso há horas! -Interrompeu Míriam Siren, a Alta Sacerdotisa de Eyrell. -Sou a favor de uma votação interna para nomear o novo chefe de estado.

—Eu também sou, contudo Iros não se contenta em ter a guarda e mais sabe-se lá quantos títulos na Salvaguarda Legítima, quer ainda o domínio do reino.

—Acho prudente que seja eu a escolhida. -Começou Débora Vatre, uma senhora muito idosa, professora aposentada e atual reitora da Universidade de Eyrell. -Governar um reino vai além de somar títulos reais, vitórias em combate e quaisquer outros tipos de prêmios… Governar requer sabedoria! -Alfinetou.

—Ah, certamente. Nomeamos a senhora hoje e, no dia seguinte, brigaremos de novo. -Zombou Brian.

—O que está insinuando? -Perguntou Débora.

—Que a senhora está com o pé na cova! -Explodiu Brian, provocando risadas.

Naquele momento, instalou-se uma grande quizumba na mesa. Um acusava o outro dos mais cabeludos tipos de crimes e falcatruas, desde desviar dinheiro até assassinar rivais, sempre aos gritos. César esmurrava a mesa enquanto berrava contra Débora, que apenas o olhava com desdém; Míriam apontava o dedo para Brian e expunha seus podres aos quatro ventos enquanto ele a xingava de coisas cada vez mais baixas. Um tentava deslegitimar o outro no berro e a balbúrdia só aumentava.

A patifaria continuou por mais alguns minutos até que algo os chamou à atenção. A chama das velas se apagaram, o ambiente esfriou cinco graus de repente e os objetos tremelicavam e se moviam sem que ninguém os tocasse. Fez-se silêncio, todos atentos, buscando descobrir o que causava aquilo.

 

—Eu ficarei com o trono! -Bradou uma voz ao mesmo tempo fraca e firme, como um grito que se ouve ecoando ao longe. Parecia vir do salão dos tronos.

Assustados, os líderes élficos olharam ao redor procurando quem falava. Resolveram abandonar a reunião por hora e sair do palácio em respeito aos mortos. Se há uma coisa que assusta a todos, são os fantasmas.

Ganharam os corredores e finalmente desembocaram no átrio onde se localizavam os tronos, esboçaram uma mesura na direção deles e seguiram para a saída quando ouviram a voz outra vez:

—Saiam e digam que a coroa de Eyrell já encontrou uma nova cabeça para ostentá-la.

Gelados de medo, os chefes voltaram-se ao trono, de onde partia a voz, a tempo de verem o corpo ganhar uma forma bem conhecida por eles. Sobre o trono sentada elegantemente, de pernas cruzadas, cabeça erguida e olhar fulminante, estava o fantasma de Kayena Jardais. Flutuando sobre a cabeça do espectro, a coroa, outrora usada por sua mãe.

—Que seja pública a notícia de que o Reino dos Elfos continua sob os cuidados da Família Jardais, ainda que nossos inimigos nos tenham assassinado!

 

***

 

Cena IV – De Volta à Encruzilhada.

08 horas e 48 minutos. Reino Kvarbrakoj – Kaotheu. Ruínas do Antigo Palácio.

 

Os Guardiões das Chamas ainda dormiam quando Cícero surgiu sozinho do arco que os havia levado à geleira rente ao mar. Ele procurava manter a calma, embora fosse visível seu desespero ao acordar um a um para contar-lhes o que havia passado.

 

—Pessoal, é muito sério o que tenho a contar. -Começou o feiticeiro. -Espero não ter agido mal, acho que agi, mas estava seguindo ordens…

—Diga de uma vez, estamos todos nervosos! -Pressionou Urak.

—Demorei a perceber, mas aqueles sereianos não eram animais, eram humanoides inteligentes… diferentes dos sereianos selvagens que havíamos conhecido até então. Creio que sejam uma raça ainda não catalogada, nunca antes soube de história semelhante. A rainha era, inclusive, bilíngue! Conhecia o idioma de seu povo e o nosso.

—De fato. -Concordaram as Siamesas, estalando os dedos. -Não atentamos para isso.

—A telepatia não funciona bem em animais uma vez que eles têm a mente completamente distinta da nossa. -Continuou Cícero, com um tique nervoso em uma das sobrancelhas. -Porém, quando notei que eram humanoides inteligentes, tratei de dominá-los. Primeiro a Rainha Halts. Fiz com que ela me levasse para ver Ezerk, transmiti todas as descobertas a ele e fui ordenado a enganá-la. -Neste ponto, as lágrimas se tornaram indomáveis e rolavam enquanto Cícero tentava enxugá-las. -Eu fiz Halts ver Ezerk ao olhar para mim e me ver ao olhar para ele… desse modo, eu fiquei na masmorra enquanto ele era levado para os aposentos da rainha. -Soluços. -Halts iria soltá-lo e eu seria mantido em cativeiro para satisfazê-la até que ela, enfim, se cansasse e me matasse.

—E por que está chorando? -Perguntou Miragem.

—Ela me disse que devorou o ex-marido. E, se ainda não houver devorado Ezerk pensando que fosse eu, irá matá-lo por tê-la enganado. -Disse o telepata escondendo o rosto entre as mãos. -O feitiço se desfez quando cruzei o arco… -Cuidado com o mar. É o caminho, porém um caminho perigoso. Um será salvo em detrimento de outro. —Cícero retomou os versos ditos por Hilda. -Ezerk está morto!

 

***

Cena V – A Primeira Batalha.

08 horas e 53 minutos. Reino Anão – Ruthure. Palácio Real.

 

—Olhem só, pessoal, quem voltou para levar outro sacode! -Caçoou Darius, levantando-se do trono do Rei Rujavo e abrindo os braços para receber a Imperatriz de Ramavel e cerca de vinte e cinco que a seguiam. -Precisa como sempre, minha querida. -Disse ele a Hilda.

—Onde estão o rei e a rainha? -Perguntou Aço, mirando sua lança em Darius.

—Longe. -Respondeu Miguel.

—Bem longe. -Acrescentou o elfo, pondo uma flecha no arco.

—Matem todos e incendeiem o palácio. -Ordenou a gigante a seus homens.

—Garras, mate todos. -Contra-atacou Manu.

A cascavel-camaleão abocanhou uns, mutilou outros e pisoteou o restante com suas mais variadas formas.

—Pensou que a Salvaguarda não vazaria as informações como antes, só porque a espiã foi morta? -Ria Darius. -É, nisso você acertou… -Disse, coçando a barba por fazer e forçando uma expressão pensativa. -Mas nós temos uma adivinha!

—Acha mesmo que não sabemos que está sem poderes? -Perguntou Hilda, estalando os saltos ao caminhar, evitando o sangue, em direção à imperatriz. -Eu não estava mais lá, mas sei que Harkuos tomou seus poderes e os que exibe agora são fruto das bugigangas mágicas que está usando.

—Traidora. -Sussurrou Aço Voador, sem alterar o semblante. -Todos morrerão rápido, mas você será torturada até quase morrer, para então ser curada e torturada novamente e será assim todos os dias até o último suspiro de Zaatros!

—Acusa-me de traição, mas foi você quem exterminou a própria coroa para, então, nomear-se imperatriz. Chocada? -E riu alto, vendo a gigante transparecer emoções. -Eu previ tudo antes de acontecer… e, não me olhe assim. Eu não tenho medo de você, mostre o que tem, Veneza!

Ao som do nome que tanto repudiou e tentou esquecer, Aço Voador investiu contra a cigana com o punho revestido por fogo. O golpe atingiu Hilda no peito, porém ela nada sentiu e o dano se voltou contra a atacante. A gigante caiu, furiosa; e, diante do peito de Hilda, brilhava em lilás a Runa Reverso.

—Fracassada! -Xingou Hilda. -Que tipo de feiticeira centenária é você?! Caindo em um truque básico de um conhecedor de magia que nem mago de fato é?!

—Nossa, magoou… -Miguel disse a Darius em voz baixa.

—Que ofensiva mais mal planejada. -Continuou Hilda. -Já te derrotamos antes, quando se julgava invencível… não acredito que se iludiu achando que desta vez conseguiria outro resultado. Seus homens estão caídos, está em desvantagem, Veneza.

—Não por muito tempo! -E lançou uma forte nevasca sobre o palácio, desaparecendo em seguida.

 

***

Cena VI – Fantasmas, Demônios e Feras.

09 horas e 10 minutos. Reino Kvarbrakoj – Kaotheu. Encruzilhada.

 

—Hilda acaba de me dizer que Ruthure está sob ataque ramaveno. -Comunicou Cícero, agora mais calmo apesar da notícia recebida. -Por enquanto o exército anão tem contido as investidas, mas Aço Voador continua desaparecida e uma nevasca se aproxima. Magia barata para minguar as forças ruthuranas.

—Alguma notícia do rei? -Perguntou Miragem, aflita.

—Ele está protegido. -Respondeu o telepata. -Bem, Hilda pede para que terminemos logo essa caçada e voltemos para ajudá-la.

—Não podemos ir logo? -Indagou Miragem. -De que vai servir isso tudo?

—Honra. O rei que tanto nos auxiliou foi traído, o reino no qual moramos sofreu um ataque covarde e sorrateiro. -Começou o General Urak. -Estamos a quatro desafios de encontrar os culpados, desguarnecidos, diga-se de passagem, e exterminá-los pelo ultraje.

Miragem desviou o olhar. Não desejava soar covarde, queria somente voltar ao seu reino, defendê-lo e encontrar seu marido.

—Recomponha-se, Miragem! -Cobrou Urak. -Lembre-se que você é outra pessoa quando está usando a máscara. Não permita que os medos da Rainha Conaro impregnem seu personagem. Agora você não é Conaro, é Miragem!

A anã refletiu rapidamente e, sob a máscara, a fisionomia amedrontada desapareceu. -Qual arco desta vez?

—O terceiro a partir da direita. -Indicou o Feiticeiro Âmbar. -Targus, é recomendável que entre primeiro com sua egrégora bem controlada.

O necromante fechou os olhos e canalizou seu mana. Quando os abriu, um brilho cor de sangue os preenchia. Incontáveis fantasmas se desprendiam do chão, redemoinhavam disformes e errantes pelas ruínas e convergiam para criar um enorme aglomerado de almas. Na massa fantasmagórica era possível vislumbrar alguns rostos; gritos se ouviam o tempo inteiro. A egrégora lembrava fumaça, só que com uma luminosidade fraca e prateada, por vezes avermelhada ou negra. A espiral de espíritos envolvia o mago, tocava-o e transpassava-o. Com passos calmos, o necromante cruzou o portal, deixando seu característico rastro de relva morta atrás de si.

—Deem a ele um minuto de distância. -Recomendou Cícero. -Neste arco eu não irei com vocês.

—Como assim!? -Zangou-se Urak.

—Deixe-me terminar. -Pediu o feiticeiro. -Esse desafio é algo cujo poder leva vantagem sobre a mente, eu sou um telepata, ou seja, não é prudente.

—Para atingir a Torre Secreta, é preciso cruzar sete arcos, você não terá acesso se pular um deles. -Explicou Urak.

—Hilda irá no meu lugar. -Esclareceu. -Aliás, as habilidades dela serão muito mais proveitosas do que as minhas lá dentro. Vamos trocar de mentes.

 

—Está feito, Cícero está em Ruthure em posse do meu corpo. -Disse Hilda, após alguns segundos de silêncio enquanto esperavam a transferência. -E eu estou aqui, com o dele. Creio que podemos entrar agora. -Lembrando de algo importante, virou-se e disse ao grupo: -Não olhem diretamente nem falem com ninguém lá dentro, entenderam?

—Nem com Targus? -Perguntaram as Bruxas Siamesas.

—Com ninguém, sem exceções, nem uns com os outros. Deixem isso comigo. -Disse Hilda através do corpo de Cícero.

Os cinco Guardiões restantes atravessaram a passagem em silêncio. O lugar no qual desembocaram possuía pouca, quase nenhuma, iluminação; o chão era gelado tal qual o ar que respiravam. Não havia paisagem para contemplar, era como estar em um deserto plano durante a noite, mas sem a areia e a luz das estrelas ou do Raus. Existiam vozes sem corpos por todo o lado, umas choravam, outras xingavam ou ainda gritavam agoniadas.

Encontraram Targus transformado a muitos metros de distância. Ele não tinha mais um corpo de carne, era apenas espírito. E parecia furioso.

—Você me enganou! -Rosnou ele para Hilda.

—Infelizmente foi necessário, não temos tempo a perder e agora você tem um lugar para governar. -Rebateu Hilda.

—Vocês não sairão daqui! -Decretou o necromante. -Não permitirei.

—O senhor não pode me impedir. -Retorquiu a cigana com a máxima segurança. -O preço para atravessar o limbo foi pago com sua vida. Isso garante aos próximos transeuntes uma passagem segura para onde quer que desejem ir.

—Isso pode ser anulado. -Blefou o recém-desencarnado.

—Não, o senhor e eu sabemos que não. -Cortou Hilda, olhando-o com uma mescla de desdém e dó. -Targus, convenhamos, sua hora havia passado há muitos anos. Pelo menos, você pode servir à Morte e ter certo poder sobre tudo isso que há aqui com o que sabe sobre necromancia. Até a próxima. -E saiu andando na frente do grupo.

O necromante os acompanhou durante todo o trajeto, praguejando e xingando cada um deles.

Quando ganharam o arco, o velho desapareceu de seus calcanhares. Estava preso para sempre na existência entre as vidas, onde as almas esperam para reencarnar, embora este fosse um privilégio tirado dele a partir de hoje. A alma dele nunca mais voltaria a Zaatros.

 

—Não sei se concordamos com sacrifícios. -Alfinetaram Razatte e Luzabell, barrando o caminho da cigana.

—Concordando ou não, fui convocada para o clã justamente para guiá-los pelo melhor caminho. -Devolveu Hilda, cortante. -Eu não sacrificaria um aliado por nada, se o fiz, podem apostar uma de suas cabeças que era a melhor opção para os demais. Despachei Targus e seus seguidores desencarnados, as almas estão livres para continuarem seus ciclos de reencarnações e ele preso, porém absolvido dos crimes espirituais. Já posso sentir meu carma mais leve.

—Não é bem assim que funciona, Hilda. -Tomou a palavra Urak. -Deveria ter consultado um superior.

—Ezerk não está mais aqui. -Rebateu.

—Eu estou! -Impôs-se Urak.

—Por vezes pareceu que eu me enganei ou que estou traindo vocês sempre que alguém morre, mas saibam que, se têm dúvidas agora, em breve terão certezas. Serão certezas equivocadas, porém sei qual é o meu fim nessa jornada e estou disposta a lidar com ele. -Concluiu. -Há uma chance ínfima de eu sair viva no fim disso tudo e, ainda assim, minha prioridade são vocês. Eu fiz um juramento, general!

—Qual o próximo portal? -Perguntou Miragem, tentando quebrar a discussão.

—A vigésima segunda partindo da esquerda. -Informou Hilda. -Permanecerei com vocês por mais uma travessia, Cícero voltará depois disso.

 

O clã foi transportado a um local que muito lembrava um coliseu. Encontravam-se no pátio do lugar sob uma fraca luz arroxeada. Atentando melhor, notaram que não parecia tanto um coliseu; o que pensavam ser arquibancadas era meramente um muro e circundava toda a área. Havia seis formas gigantescas sobre plataformas flutuantes acima da muralha.

—Os Seis Demônios. -Disseram baixo as Bruxas Siamesas.

—O que?! -Espantou-se Urak. -Têm certeza?

—Sim, elfos têm a visão mais apurada que as outras raças. -Esclareceram. -São os demônios.

O general aceitou calado, dirigindo um olhar assassino à Hilda.

—Bem vindos! -Saudou-os, maldosamente, a Fome quando a luz aumentou.

Fome era um dos demônios mais repugnantes, se não o mais repugnante. Sua aparência lembrava a de um porco rosado e sem pelos, com grandes presas semicirculares saindo da bocarra cheia de dentes. Era o maior de todos, gordo e de aspecto gelatinoso, tinha a pele oleosa, revestida de sebo. A barriga era imensa e ele trazia na mão um osso comprido, talvez um úmero ou um fêmur, o qual roía compulsivamente.

—Acabam de interromper uma grande discussão, IMBECIS! -Bradou Ódio, soltando fogo pelas narinas.

Ódio não possui uma aparência definitiva, ela varia de acordo com seu humor volátil. No momento, a cabeça era uma mistura de touro e cachorro, dentes de fora, olhos cor de ferro fundido; corpo humanoide e extremamente musculoso, de rosto másculo e barbudo; pele muito vermelha da qual se desprendia fumaça; chifres encaracolados cujas pontas ladeavam as bochechas de ossos salientes.

—Ah, não seja tão severo, Ódio. -Pediu Traição, com uma voz muito afetada tentando seduzi-lo. -Tenho certeza absoluta de que eles têm um motivo que nos interessa para estarem aqui.

Dentre todos os demônios, Traição era um dos mais camaleônicos. Ora fêmea, ora macho, ela era sempre a mais atraente dos seis, desconsiderando-se sua real forma: rostos inocentes, cabelos chanel de cor acaju, voz provocante, hipnótica, embora sibilante como a de uma cobra. Tem uma só cabeça, mas duas faces, uma oposta a outra, ambas sorridentes e simpáticas; corpo misto, humanoide e reptiliano, que não termina em pernas e sim em uma cauda musculosa; escamas com padrões de serpente, ferrão envenenado na cauda, braços sempre às costas ocultando o punhal.

—Se não tiverem, posso cuidar deles… -Alegrou-se Morte.

A Morte é dona de apenas duas formas. Um cadáver masculino e seco, pele sobre ossos; nariz quebrado que sangra o tempo inteiro; esqueleto fraco que se parte e volta a se ligar conforme o demônio se move; odor de carniça. Tudo recoberto pelo característico capuz preto e adornado pela foice de lâmina gelada. A segunda é o reflexo de pessoas destinadas a morrer assassinadas. Ao olharem pra Morte, veem a si mesmos com a aparência do momento da morte. Urak via seu corpo pendurado à forca, Miragem também...

—Estão tremendo! -Deliciou-se Medo.

A voz de Medo era feminina, porém, sendo ela a mais metamórfica, isso nem sempre permanecia assim. Com um novo rosto a cada segundo, é difícil dizer qual deles é o real. Desde que o clã chegou ao local, Medo já havia sido sombra, cobras, insetos, monstros, fantasmas e até outros demônios. Se alguém teme a morte, Medo pode assumir a aparência do demônio que a encarna, por exemplo.

—Estão todos condenados… -Sibilou Maldição.

Outro demônio de aparência repugnante, porém fixa. Maldição, conhecida também por Doença ou ainda por Peste, tinha um corpo humanoide, pele murcha de um amarelo venenoso, tóxico. Asas de barata rasgavam as costas, nariz comprido, quelíceras ladeando a boca de onde escorria sem parar uma secreção escura e malcheirosa; não possuía cabelo, mas uma fileira de pequenos espinhos partindo de cima de cada sobrancelha e terminando na nuca, atrás dos furos que ocupam o lugar das orelhas. Corpo de lacraia da cintura para baixo. Nenhum dente na boca; olhos avermelhados e remelentos; moscas ao redor; braços magros e de aparência frágil.

—Eu peço desculpas em nome de todos por interromper-lhes o conclave. -Disse Hilda, tomando a dianteira do grupo. -Estamos em uma missão de retaliação e superamos quatro testes para estar aqui.

—Em missão de vingança, você quer dizer. -Rosnou Ódio para ela, expelindo mais fogo pelo nariz de touro.

—Justamente. Fomos ofendidos e traídos por Néfor e Julee, ambos os covardes se esconderam de nós e, por retaliação, tomamos a Fortaleza Real de Kaotheu. -Hilda não era ingênua. Deixava escapar palavras-chave que poderiam despertar o interesse dos demônios por sua causa. -A doença se espalhou por Ruthure. Pessoas morreram e outras estão a beira da morte. Matamos muitos, é verdade, mas apenas para mostrar que ainda estamos no jogo. -Ela havia conseguido a atenção de alguns dos sobrenaturais. -A guerra está para estourar de forma sorrateira, provavelmente serão batalhas de exércitos pequenos de homens da elite bélica e mágica. Não há mais comida em alguns pontos, só restos… as pessoas estão apavoradas em todo o mundo.

—Onde pretende chegar? -Perguntou Medo, tinha a forma de enxame de abelhas.

—Quero livre acesso à saída. -Confessou a cigana. -Pedir ajuda dos senhores seria trapaça.

—Não faz mal trapacear. -Sorriu Traição. -Como é mesmo aquele ditado dos mortais, querido? -Perguntou a Ódio.

—Tudo é válido no amor e na guerra. -Respondeu ele, com uma expressão malvada no rosto.

—O que vocês acham, irmãos? -Roncou Fome. -Estou inclinado a ajudá-los, pode ser que possibilitem uma revolução nas energias de Zaatros e nos fortaleçam.

—Estou inclinada a colaborar! -Animou-se Traição, esfregando as mãos com satisfação.

—Mas eu quero uma recompensa, algum tipo de retorno. -Exigiu Fome, cuja ganância é um forte atributo.

—Apoiado. -Disse Maldição, sendo seguida por todos os outros.

—O que tem a nos oferecer, humana. -Indagou Medo.

—Hilda, tem mesmo certeza de que isso é uma boa ideia? -Perguntaram as gêmeas no ouvido da cigana. Ela apenas acenou com a cabeça e voltou-se aos demônios:

—À Traição, eu ofereço a energia de Targus, traído por mim. Dou-lhe a essência do rancor que ele nutre e o material do carma gerado por mim quando menti.

—Acho pouco, mas não sou gananciosa. -Respondeu o demônio. -Aceito com a condição de ter direito as energias dos rancores e do seu carma de agora em diante.

—Concordo. -No mesmo instante, Traição estava diante de Hilda com a mão estendia. A humana a apertou. O trato estava selado.

—Eu te fornecerei o poder de vislumbrar por trás das palavras. Você verá a real intenção de todos para contigo e para com a causa que defende e, com isso, estará protegida de mentiras e traições enquanto durar a guerra. -Disse o demônio, voltando ao seu lugar. De alguma forma, viam por trás do corpo de Cícero, viam que era Hilda a controlá-lo.

—Para Morte, devolvo as almas que foram tiradas do ciclo das reencarnações pelo necromante Targus Oel, bem como a servidão dele no limbo por toda a eternidade.

—Como pretende conseguir isso? -Rebateu Morte.

—Já foi arranjado. Pode checar se preferir.

—Hum, de fato. Mas não é suficiente. -Disse o demônio.

—Eu ofereço também a alma de Aço Voador e de sua avó, embora ainda não as possua... o senhor terá de esperar. -Falou Hilda, torcendo para ser aceita.

Morte surgiu diante da cigana e, como Traição, ofereceu-lhe a mão para selar o acordo.

—Concedo aos que estão aqui contigo uma vida extra, contudo, veja bem, uma para todos e não uma para cada; para enquanto durar a guerra. -Disse Morte. -Caso alguém pereça, voltará a viver ao próximo pôr do sol… para tanto, o corpo deve receber devidamente todos os rituais póstumos antes que o sol se ponha, efetivando, assim, a magia que retrocederá a morte.

—A Ódio darei a energia da agressão a qual submeteremos nossos inimigos. -Prometeu Hilda. De hoje até o fim de nossos dias, cada gota de sangue, osso quebrado, injúria cometida e rancor acumulado será em vosso nome.

Apertaram as mãos. As do demônio era muito quentes e machucaram Hilda. Na verdade, machucaram o corpo de Cícero que era usado por Hilda.

—Ofereço meu auxílio ao kvarbrakoj. -Disse rindo maldosamente e olhando para Urak. -A cada vez que se voltar contra outro humanoide, você se tornará mais forte. A cada vez que vir um aliado sendo vencido, será tomado por um frenesi assassino, seu sangue e sua carne ferverão, sua força será dez vezes maior, tornar-se-á um exército de um único homem e, quando estiver nesse estado, o metal de sua arma ficará incandescente para que esmague com ódio e fogo seus inimigos.

—Para Medo, deixo meu maior medo. -Disse, simplesmente, a cigana.

O demônio desceu, era pura escuridão, e estendeu à Hilda uma mão sombria. A humana a apertou e, quando o aperto cessou, a aliança não estava mais em seu dedo, mas sobre as mãos em concha de Medo.

—Aceito a oferta como custo pela travessia, mas não concedo favor nenhum. -Disse o demônio

—Fome, ao senhor entrego a carne e os ossos de todos os inimigos mortos por nós de hoje em diante. -Falou Hilda.

—É pouco. -Devolveu Fome.

—Não há mais o que oferecer, senhor.

—Então não haverá auxílio de minha parte. -Decretou o porco sobrenatural. -Fico com o que foi ofertado, mas nego ajuda e passagem.

—Você não pode negar passagem. -Intrometeu-se Traição. -Devo lembrá-lo que havia aceitado o acordo antes.

—Estou saindo do acordo. -Retorquiu ele.

—Isso me concederá poder sobre você durante um milênio! -Sorriu Traição. Só eu posso romper pactos a meu bel prazer. Acha que meu poder é bagunça? -Uma gargalhada. -Está mesmo fora?

Ouviu-se um grunhido raivoso e Fome falou: -Mantenho o que foi acordado. Fico com o oferecido e, embora negue ajuda, têm livre passagem. -Fome não desceu para apertar as mãos.

—À Maldição, oferecerei a escritura da Maldição Quendra destruída. -Propôs a cigana.

—E por que acha que eu me interessaria por uma jura desfeita? -Ironizou o demônio. -Elas me alimentam enquanto seguem em atividade.

—Sim, mas é bem verdade que, para isso, é preciso que os afetados tenham consciência e sofram. -Todo o clã encarava Hilda embasbacado. Ela não só evitava as armadilhas que eram oferecidas como liderava as negociações, pondo, por vezes, os demônios em cheque. -A Maldição Quendra somente existe, e eu bem sei que não fornece a você praticamente poder algum.

—… Continue. -Pediu Maldição.

—Quando quebrarmos a sina, a senhora receberá os cacos de diamante carregados com séculos de penas e sofrimentos acumulados. -Falou Hilda. -Creio que lhe sejam de alguma utilidade.

—Pois bem. Eu aceito a oferta, mas, como Fome e Medo, nego auxílio. -Murmurou o demônio.

—A passagem de volta está aqui. -Disseram, em uníssono, os seis demônios materializando o arco diante de Hilda.

 

—Ouçam atentamente o que vou lhes dizer: não confiem nesses presentes. -Falou Hilda encarando um a um com severidade. -Use-os somente em último caso. Cícero e eu vamos desfazer a troca, o poder que eu ganhei de Traição ficará com ele, pois era dele o corpo que encarou o demônio.

—Hilda! -Chamou Urak antes que ela trocasse de lugar com o telepata. -Não deixe Darius fazer nenhuma besteira.

A cigana esboçou um sorriso e, no segundo seguinte, era Cícero quem estava na encruzilhada.

—Terceira porta contando da direita. -Informou Cícero.

—Há quanto tempo será que estamos neste calabouço? -Perguntou Miragem.

—Há pouco mais de um dia. -Responderam as Bruxas Siamesas.

—Vamos acabar logo com isso! -Disse Cícero tomando a dianteira.

Outra situação inusitada aconteceu: no momento que o Feiticeiro Âmbar cruzou o arco, a passagem se fechou, nenhum dos outros pôde atravessar. O arco não os levava a lugar algum que não fosse o outro lado.

O telepata estava sozinho em sala gigantesca. Tentou contato com os outros e conseguiu. Significava que estavam na mesma dimensão.

Eu estou bem. Vou tentar atravessar sozinho e encontrá-los”. —Ele falou dentro da cabeça de todos.

 

O lugar parecia uma masmorra, tão grande que dava a impressão de ser infinita. A iluminação das poucas lamparinas presas ao teto não era o bastante e Cícero produziu uma esfera de luz amarela para ver melhor. Arrependeu-se imediatamente…

Ao arremessar a luz para cima, o Feiticeiro Âmbar viu o que não queria ver:

Uma quimera!” —Gritou ele na mente dos companheiros.

O monstro, despertado de alto sono pelo brusco aumento de luminosidade, rosnava para o telepata.

Um corpo imenso de leão, cabeça ora de leão ora de cabra e uma serpente como cauda. Esta era a forma do animal.

Cícero não portava armas, só um punhal de emergência. A telepatia não tem efeito sobre animais, portando a luta seria difícil. Se ao menos tivesse trazido um Inferno Congelado…

A fera investiu com tudo, suas garras se chocaram contra a proteção que o feiticeiro criara, partindo-a como se fosse vidro. Cícero apelou para um combate mais cauteloso, evitando contado com o monstro. Optou por tentar o voo, técnica esta que não é bem dominada por ele, porém, para um feiticeiro, a imaginação faz o poder.

Ele estava fora do alcance da criatura, esta tentava golpeá-lo saltando. Percebendo o padrão das ofensivas, Cícero se moveu para debaixo de uma das lamparinas e, quando a quimera pulou, ele rapidamente puxou o objeto e atirou-o contra a boca de leão que rosnava com todos os dentes à mostra. O querosene tocou a chama e queimou o bicho, inutilizando os olhos, chamuscando a juba e derrotando a cara de leão. Menos um, restavam a cobra e a cabra. É bem verdade que ele poderia ter evocado uma bola de fogo, contudo a maior parte dos monstros, na qual a quimera se insere, possui certa resistência à magia.

A cabeça de cabra assumiu o comando do corpo, a serpente chicoteava o ar a esmo. A cabra não atacou Cícero enquanto este voava e ele não podia fazer muito do alto, porque o monstro, quando não se esquivava dos feitiços, bloqueava-os com os chifres.

O feiticeiro criou duplicatas suas para confundir a besta e voltou ao chão. Quimera avançou sobre a primeira, transpassou-a e deu com a cabeça na parede. As cópias do telepata gargalharam ao mesmo tempo vendo o bicho cambalear e escolher um novo alvo. Outra vez escolheu o clone e chocou-se contra a parede. E, de novo, mais cinco vezes. Foi então que o verdadeiro desceu do teto, caiu sobre o lombo do monstro e degolou-lhe o pescoço de cabra. Por pouco não foi pego pela mordida da víbora.

Cega e careca, a cara de leão voltou a assumir o controle do corpo. Cícero não teve tempo de evitar o bote e a criatura saltou sobre ele, derrubando-o. O telepata pensou que fosse morrer ali, lembrou-se, então, de uma luta contra um mero mago da qual saíra perdedor. Naquele combate, Kaegro, o híbrido gigante-humano e mestre em magia, vendo-se sem saída, o prendeu em uma chave de pescoço e transformou o próprio corpo em um raio. Acordou um mês depois, deitado sobre uma maca do Centro de Cura da região onde morava.

—Corporis Radium! -Bradou ele, recordando-se das últimas palavras que ouvira antes de entrar em coma. O feitiço o transformou em pura eletricidade.

Quimera, não resistiu ao golpe. O raio dourado a fritara quase por completo e apenas a cobra ainda se debatia. Cícero se levantou, tirou o punhal da cintura e o fincou no crânio da serpente, vencendo seu desafio. O portal apareceu atrás de si, mas, enquanto andava em sua direção, sentiu queimar as costas. Ao examinar mais atentamente, notou o sangue que corria do ferimento. O abraço que quimera o dera antes de morrer o havia mutilado a pele profundamente. Com dificuldade cruzou o arco e voltou à encruzilhada.

 

O feiticeiro foi amparado pelos amigos assim que surgiu na encruzilhada. Luzabell e Razatte o deitaram no chão e examinaram o ferimento. As unhas da quimera abriram cinco sulcos largos em Cícero, fizeram-no perder bastante sangue. O corte foi rapidamente fechado por magia, embora o sangue perdido ainda fosse um problema.

—Beba isto. -Disseram as bruxas, entregando-lhe um frasco grande contendo um líquido roxo e borbulhante. -Vai te ajudar na recuperação.

—Hilda acaba de dizer para entrarem no mesmo arco de mãos dadas. -Falou ele depois de beber metade do elixir. -Dessa forma vão enfrentar juntos o desafio.

—Pelo que você disse, tenho uma ideia de onde fica aquele lugar. -Disse Miragem. Todos a olharam e ela continuou: -Chamam de Antro e fica em Ruthure. Ninguém conseguiu explicar o porquê até hoje, mas todas as criaturas de Zaatros vivem ali.

—Como assim? -Perguntou Urak.

—É complicado, mas, de alguma maneira, Antro guarda uma criatura de cada espécie animal de Zaatros. -Tentou esclarecer a anã. -É como um banco de dados, há lendas que contam que espécies extintas podem voltar à vida a qualquer momento… basta que a força que rege o Antro permita.

—Lendas não provam muita coisa. -Rebateu o general.

—Existem estudos afirmando que animais dados como extintos em uma época voltaram a viver alguns séculos depois. -Defendeu-se Miragem.

—Estudos… em Ruthure? -Perguntaram, céticas, as Bruxas Siamesas.

—É verdade que a maioria dos anões não gastam muito tempo da vida estudando, mas isso não se aplica a todos. -Retorquiu a anã, orgulhosa. -O Rei é um estudioso, bem como o líder deste clã o fora. -Finalizou ríspida.

—Iremos nós três. -Interrompeu o general. -Cícero, fique aqui e descanse.

—Quatro. -Corrigiram as feiticeiras gêmeas.

—A mim, vocês sempre contaram como uma pessoa só, mas, se preferem assim… Iremos nós quatro. -Disse Urak revirando os olhos.

Cícero não discordou, estava exausto, e o que sobrara do clã deu as mãos e atravessou a passagem.

Chegaram ao Antro cautelosos. Um sibilar enchia o ar com um sabor de suspense e os corações com a agonia da expectativa de sofrer um ataque às escuras a qualquer momento. As Bruxas Siamesas trataram de iluminar o calabouço. Como antes, na vez de Cícero, foi um erro, embora tenha sido pior desda vez.

Ao iluminarem a masmorra, tornaram o trabalho da criatura que ali estava mais fácil. A presença da górgona ali ratificava a história de Miragem: há séculos não havia mais criaturas como aquelas. Anatomia de mulher da cintura para cima e de cobra para baixo, a fera rastejava nua, agitando as cobras que lhe adornavam a cabeça no lugar dos cabelos; e grandes e atraentes olhos amarelos que petrificam todos que os fitam.

Imediatamente suspenderam o feitiço, deixando a escuridão ganhar o lugar outra vez. A besta tentou capturar Urak com seu olhar, falhou quando as sombras quebraram seu contato visual. Mudou de tática pulando sobre o kvarbrakoj, enrolou-o com a cauda enquanto o esganava. A força constritora da górgona era impressionante, conseguia causar dor até mesmo a um kvarbrakoj cujo corpo é muito mais resistente do que o dos outros humanoides.

Luzabell e Razatte o livraram do aperto, disparando um raio congelante na górgona que recuou rapidamente; em seguida, Miragem entrou em ação: ergueu uma ilusão simples, porém bem adequada à situação. Projetou na mente da criatura a imagem da masmorra iluminada e de Urak diante dela; então, enquanto a górgona tentava transformar a ilusão em pedra, o general real lhe esmagou o crânio com um só golpe do martelo de guerra, conquistando o arco de volta à encruzilhada.

 

—Quanto tempo até que ele fique bom? -Perguntou Urak às Bruxas Siamesas se referindo a Cícero assim que voltaram às ruínas.

—Não mais do que cinco horas.

—Tudo bem. -Assentiu o kvarbrakoj. -Guardiões das Chamas, descansar!

 

***

 

Cena VII – A Torre Secreta.

16 horas e 23 minutos. Reino Kvarbrakoj – Kaotheu. Encruzilhada.

 

O telepata estava em sua melhor forma, nem parecia que havia sido ferido horas atrás. Todos estavam descansados e prontos para encarar a sétima fileira de arcos dos quais, segundo Hilda, o correto era o décimo quarto a partir da esquerda.

Ao cruzar a passagem, o clã foi levado a um salão circular gigantesco. O lugar era mau iluminado e construído em pedras pardas, havia ratos pelos cantos e teias de aranha nas paredes. Em um dos cantos, uma escada em espiral subia a perder de vista. Era o caminho.

Parecia que estavam subindo por muito tempo; horas, segundo Luzabell e Razatte, que sofriam para galgar os degraus com seus corpos ligados.

—É tudo ilusão. -Disse Miragem. -Tudo aqui é feito para desmotivar qualquer invasão: os ratos, a falta de luz, a escadaria…

Seguiram por muito mais tempo, até que, enfim, venceram todos os degraus. O fim da escadaria deu em um pátio coberto, não muito grande, de teto abobadado e paredes em alto-relevo, esculpidas com cenas da história kvarbrakoj. De frente para a escada, havia uma porta de madeira simples.

Urak sinalizou aos outros para que ficassem atrás dele e se preparou para arrombar a porta: segurou com firmeza o martelo nas duas mãos superiores e descarregou a pancada. A porta caiu de uma só vez… e o general também.

Todo o clã se aglomerou ao redor de seu líder. Urak tinha um rombo de fora a fora chamuscado, do tamanho de um coco na altura do estômago. A armadura de nada serviu para protegê-lo da armadilha contra arrombamento presente na porta da Torre Secreta. Ele se engasgava no próprio sangue enquanto tentava falar. Seu estado era péssimo, não havia chance de sobrevivência com um ferimento grave como aquele.

—Eu protejo ele! -Gritou Cícero, inflamado de fúria. -Matem esses malditos antes que fujam outra vez!

O Feiticeiro Âmbar se esforçou em fechar o buraco no corpo do general, mas cura demanda tempo e técnica… Cícero não os tinha. Resolveu, então, proporcionar ao amigo os últimos momentos mais felizes de sua vida. Deitou a cabeça de Urak sobre suas pernas cruzadas e tocou-lhe a testa com as mãos, fê-lo reviver todas as boas memórias: a maioridade, quanto deixou a família para ganhar o mundo; o primeiro beijo com Tamires, o noivado, o casamento, o dia no qual descobriu que seria pai, o nascimento da filha que tanto amou; a amizade que tinha com o cunhado, eram tão unidos que se entendiam sem que fossem trocadas palavras, o kvarbrakoj e o elfo.

Cícero resolveu ir além: projetar memórias falsas na mente de seu general que o conduzissem a uma passagem feliz ao limbo. Bastou apagar a morte de Kira que o general abriu o maior e mais sincero sorriso que o feiticeiro já havia contemplado em toda a vida. Na versão nova, Kira não só havia derrotado o dragão como havia também escapado da caverna a tempo. Voltara a falar, a emitir o som das risadas, arrancadas aos montes por Darius. A memória do funeral fora substituída por uma festa de aniversário belíssima, Kira agradeceu por ter uma missão tão importante no clã, por ser respeitada e tratada como igual por todos apesar de ser tão jovem; abraçou o pai e sorriram juntos, depois o tio, que cochichou algo para ela, fazendo-a perder o controle e rir até faltar o ar.

Nada disso era real, mas para Urak agora era. As lágrimas vinham, lentamente, uma após a outra. Sem pressa. O sorriso dentro do rosto. E a vida se fora do corpo…

 

Miragem e as Bruxas Siamesas venciam sem dificuldade, a manipulação da realidade daquela tornava simples o serviço das elfas gêmeas. Espadas nunca foram muito úteis contra magia.

—Ainda que nos vençam, vocês já perderam! -Rei Néfor riu, enxugando o sangue que escorria do nariz quebrado.

—Perderam muitos membros e a guerra não será vencida com soldados pequenos. -Emendou a Rainha Julee. -As peças importantes do jogo caíram quase todas: Targus, Ezerk, Kira e Urak…

Um míssil de luz disparado por Razatte no peito da rainha a fez perder o ar por alguns segundos.

—A única peça realmente forte ainda de pé são essas aberrações gêmeas. -Finalizou Julee.

A rainha tirou a própria coroa e, num movimento rápido, arremessou-a no pescoço de Razatte. A coroa era um chakram disfarçado e teria decepado a bruxa se ela e sua irmã não estivessem atentas. As Bruxas Siamesas pararam o círculo laminado em pleno ar e, sem tocá-lo, atiraram-no em Néfor. Um dos braços do rei seria decepado, porém ele arriscou uma evasiva sem muito sucesso. O chakram/coroa o atingiu em um ponto pouco acima do pulso e a mão inferior esquerda caiu sobre o tapete da sala.

A luta seguia com clara vantagem para os Guardiões das Chamas, até que Cícero entrou na briga, possesso, e terminou definitivamente o combate. O telepata irradiava mana, era como se não existisse mais carne, todo ele era mana em seu estado mais puro. Tal condição é rara e só acomete os feiticeiros; toda a sala se encheu com sua luz âmbar. Ele avançou flutuando furioso em direção ao rei que, chocado com o fenômeno, nada fez. A mão de Cícero atravessou a cabeça do monarca, como se fosse intangível; era possível vê-la lá dentro a segurar o cérebro de Néfor. Com um aperto, Cícero destruiu a mente do rei. A mente, não o cérebro.

Quando retirou a mão, uma essência gelatinosa e azulada sujava seus dedos. Néfor continuava vivo, mas agora era um vegetal. Permaneceu na mesma posição com o rosto inexpressivo e sangrando pelo punho amputado. O mesmo sucedeu a Julee. Ao passar a mão por dentro da cabeça da rainha, Cícero a condenou a uma existência vegetativa.

Miragem tentou tocar o telepata, mas recuou logo. Ele era pura magia e emanava o calor de sua raiva pela morte do amigo. Lentamente, Cícero piscou os olhos e foi amansando a magia. O corpo voltou a ser de carne e, por fim, os olhos voltaram a ser cor de âmbar, livres do mana que os preenchia.

—Como ele está? -Perguntaram as bruxas.

—Morto… -Respondeu ele, cabisbaixo. -Vamos tirá-lo daqui e... e voltar a Ruthure.

—O que faremos com esses dois? -Indagou Miragem, referindo-se aos monarcas.

—Deixe que definhem aqui e morram de fome ou loucura. -Rosnou o feiticeiro. -Quem vai comandar agora? Como vamos explicar tantas baixas a Rei Rujavo?

—Você vai! -Decretou Miragem. -E o Rei dos Anões sabe que não dá para vencer sem sofrer perdas também. Fique calmo.

—Não quero ser o líder. -Falou Cícero. - Se como condutor matei muitos, como líder condenarei todos à morte.

—À morte… -Disseram as Bruxas Siamesas pensativas.

—Sim, à morte! -Zangou-se ele.

—Não é isso! -Animaram-se as duas e depois Miragem. -Temos um presente da Morte, podemos trazer Urak de volta, mas precisamos correr.

Cícero não pensava com clareza, tentou processar a conversa e finalmente entendeu.

—De volta a Ruthure! -Bradou ele, energético, vendo uma saída para um dos problemas.

 

***

 

Cena VIII – De Volta.

17 horas e 04 minutos. Rei Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

 

Tudo o que se passara em Kaotheu havia sido contado aos que ficaram no Reino Anão. Darius não disse nada, ouviu a tudo em silêncio e depois subiu para o terceiro andar sozinho e profundamente deprimido.

Ruthure estava transformado. Nevava um pouco e ventava muito, os anões estavam acuados em casa para se proteger do frio, as plantas e os animais morriam. E algo dizia a Hilda que um novo ataque da Imperatriz de Ramavel não tardaria.

 

Todos, com exceção de Darius, conduziram o corpo de Urak até a fonte termal onde Kira fora enterrada. O tempo inteiro preocupados com a investida que poderiam sofrer ali. Por fim conseguiram sepultar e enterrar o general sem contratempos. Esperaram, então, que a Morte cumprisse sua promessa.

Não tardou para a Astral se pôr no horizonte e, logo em seguida, a terra começou a se moldar sozinha. Construiu o corpo de um kvarbrakoj sentado em posição fetal. O barro foi deixando de ser barro e adquirindo aspecto de pele. Em poucos instantes Urak estava de volta a vida, encolhido e nu no chão.

 

Ao voltarem à fortaleza, foram recebidos por um elfo que ria e chorava ao mesmo tempo. Estava muito feliz pela volta do melhor amigo, abraçaram-se por muito tempo até que a felicidade se foi novamente:

—Onde está Kira? -Perguntou, com um sorriso, o general. -Estou com tanta saudade!

Houve um silêncio desconfortável no qual todos se miravam desconcertados e sem saber como explicar tudo.

—Irmão, precisamos conversar… -Foi Darius quem tomou a iniciativa. -Sente-se um pouco.

 

Foi de partir o coração. Urak se negava a acreditar, mesmo sabendo que era verdade o que Darius dizia. Aos poucos a memória real tomava o lugar das falsas e faziam o kvarbrakoj sofrer pela segunda vez por tudo que havia passado de ruim. O elfo chorava junto com ele, Cícero continha o pranto.

—Por que me fizeram isso? -Perguntou Urak entre soluços. -Minha filha!

—Eu não sabia que voltaria a viver. -Explicou Cícero, tão deprimido quando seu general. -Queria que revivesse os melhores momentos da vida… manipulei sua mente para isso e resolvi também demolir as memórias ruins e construir novas no lugar… desculpe-me.

Urak apenas assentiu, levantou-se e caminhou em direção à saída. O choque emocional fora tamanho que, enquanto andava, o general cambaleou e caiu desacordado à soleira da porta. Os Guardiões das Chamas o ajudaram, puseram-no em seu quarto e deixaram que dormisse e sonhasse com uma realidade mais feliz do que esta na qual está preso.


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