A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 24
Capítulo 23




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Primeiro dia do terceiro mês, ano 7302.

 

Cena I – O Ataque à Imperatriz.

05 horas e 41 minutos. Reino Gigante – Ramavel. Montanhas desabitadas, alguns quilômetros a nordeste do Palácio Real.

 

—Garras, você poderia ter-se transformado em um dragão um pouco mais macio, não acha? -Falou Darius, ao que a cascavel-camaleão se inclinava para baixo e se preparava para o pouso.

—Quais acham que são as chances de terem avistado o dragão voando? -Perguntou Manu, cauteloso como de costume. Era o primeiro da fila, seguido por Hilda, Miguel e Darius.

—Não muito grandes, eu acho. -Respondeu Hilda. -Voamos sobre o mar e áreas despovoadas e ver um dragão não é nenhum problema desde que não nos vejam.

—Estou ansioso para o confronto. -Admitiu Miguel.

—Não haverá confronto. -Cortou a cigana, ríspida. -Eu distraio e vocês procuram a escritura da maldição dela, Miguel traduz as runas, descobre o nome verdadeiro e ela perde os poderes extras. -Terminou de explicar ao mesmo tempo que Garras aterrissava sobre a neve.

Antes de pousarem, puderam ver o palácio de Harkuos sobre o Monte Nublado, ali, do chão, só viam os morros e os pinheiros que os cercavam.

—Sem gracinhas. -Concordou Manu, pulando para o chão e estendendo o braço para a sua mascote já em sua forma original de serpente. -Não quer que um de nós fique por perto para protegê-la, Hilda?

—De forma alguma, vocês atrapalhariam.

—A missão está traçada e não vamos mudá-la. -Decretou Darius, sério, recebendo olhares chocados dos demais. -Não me encarem assim, qualquer problema e quem vai pra guilhotina serei eu.

—Então vai ser mesmo o líder? -Perguntou Miguel. -Não sei se aprovo.

—Você não tem de aprovar nada. Sou quem tem mais tempo em missões e fui nomeado para comandar esta também.

Calaram-se ao perceberem que não havia volta.

—Hilda, as armas. -Pediu o elfo.

A cigana, antes de partir, insistiu para que todas as armas fossem levadas por ela por algum motivo explicado apenas como “assim quer o destino”. Agora entregava a cada um as respectivas armas mágicas.

 

Sentaram-se todos no chão, agora sem neve, derretida depois que Miguel rabiscou algumas runas, para comer o que haviam levado.

Repassaram tudo o que fariam também, cada detalhe: Hilda entraria oferecendo as suas habilidades para ajudar Aço Voador, manteria uma conversa animada, talvez relembrando momentos engraçados; enquanto isso, Darius, Manu e Miguel procurariam uma entrada não vigiada por onde pudessem passar. Ao receber o sinal de Garras, a cigana entregaria o sortilégio à imperatriz e fugiria junto ao animal para o local combinado, o mesmo onde estavam agora. Certamente a feiticeira a seguiria até lá, onde uma nova armadilha a esperará: um círculo de runas escondido sob uma camada de neve a manterá presa, para que, então, Hilda se junte aos outros e os ajude a procurar pela escritura da maldição de Aço Voador.

—Miguel, desenhe as runas. -Instruiu Darius, tomado por um ímpeto de liderança. A coroa de louros posta em sua cabeça. -Siga exatamente o modelo que temos e depois cubra tudo com neve.

Afastou-se do irmão e voltou-se ao amigo:

—Manu, combine o sinal com Garras e Hilda. Algo sutil, mas fácil de se reconhecer e impossível de se confundir.

—Hilda, se for possível, evite ao máximo encará-la quando precisar mentir.

 

Às sete horas, estavam prontos. Hilda usava um vestido fino, estampado e luxuoso e enrolava-se em um pesado xale de lã para se proteger do frio, estava com a aparência de uma senhora da nobreza. Os demais se vestiam inteiramente de branco para se mesclarem à neve. Miguel e Darius só estavam descobertos dos olhos para cima, em um traje completo para espionagem; Manu, por sua vez, trazia roupas de inverno mais comuns: jaqueta, calças, cachecol e touca.

—É pra valer, pessoal. Boa sorte a todos. -Disse o elfo. -Hilda, vá na frente, te daremos vinte minutos de vantagem. Deve bastar para chegar à estrada e tomar uma carruagem para o palácio.

—Entendido. -Concordou a cigana. -Fiquem com isto. -Disse, entregando ao ladino a sua coleção de chaves. -Testem nas portas e arcas trancadas. Lembrem-se de que ela é uma feiticeira deveras ardilosa… se as trancas forem forçadas, alguma armadilha mágica pode se ativar.

—Fique tranquila, não faremos nenhuma estupidez. -Garantiu Darius. -Acho que Miguel pode desarmar as armadilhas mágicas, não é irmãozinho?

—Provavelmente.

—Tenham cuidado, nos vemos aqui depois. -Despediu-se a cigana. -Até logo.

 

Passado o tempo combinado, os três Guardiões tomaram o rumo do Palácio Real. Seguiram por fora das estradas, sendo carregados por Garras em sua forma de grifo; voavam baixo para evitar serem avistados.

 

Hilda cruzara aos portões do palácio. Em poucos momentos, a Imperatriz Aço Voador descia as escadas luxuosas esculpidas em mármore azulado. Flutuava a um palmo do chão, trajava um vestido carmesim e exibia um grande sorriso e braços abertos, feliz por rever a velha amiga.

—Hilda Lírio! -Exclamou a imperatriz, recebendo um sorriso como resposta. -Da última vez que te vi você tinha… o que, uns doze anos?

—Quinze. E agora sou Hilda Saorum. -Respondeu a cigana mostrando a aliança. -Você não mudou nada, Aço Voador. -Comentou com um sorriso e um abraço.

—Juventude eterna! -E riu. -O que a traz aqui depois de tantos anos? Sente-se, querida. -Convidou, sentando ela própria no ar enquanto a cigana ocupava uma cadeira surgida ali por mágica.

—Resolvi tomar partido, não posso mais apenas assistir a tudo. -Respondeu. -Vim oferecer meu conhecimento para o bem dos Fiéis e de Ramavel.

—Ah, muito me agrada saber, Hilda! -Comemorou Aço. -É sua primeira vez aqui? Está tremendo!

—Sim, nunca antes havia saído de Feltares. -Concordou mentindo e disfarçando o nervosismo. -Aqui faz muito frio. -E enrolou-se ainda mais no xale.

—Logo você se acostuma.

—Como andam as coisas por aqui? Não lembrava que seu sotaque era tão marcado. -Acrescentou a cigana entre risadas.

—Bem complicadas. Deixemos trabalho para outra hora… -Cortou a imperatriz. -O que fez nesses anos todos?

—Ah, uma vida tranquila e normal: acompanhei a caravana, encontrei o amor e me casei, mas não tive filhos ainda. E agora resolvi deixar esse marasmo para trás e participar da história.

—Alegro-me em saber que tem uma vida feliz e que escolheu o meu lado. -E, parecendo desconfiada: -Quando exatamente chegou ao reino?

—Há três dias. -Respondeu a cigana com a máxima segurança. -Foi por pouco, um dia de atraso e seria barrada. -Acrescentou, fazendo alusão à expulsão dos estrangeiros decretada pela própria Aço Voador.

—Ah, não me diga?! -Espantou-se a feiticeira entre risinhos. -Que golpe de sorte!

—Na verdade eu previ. -Arrematou Hilda, transmitindo competência. -Resolvi esperar para aparecer só hoje porque imaginei que estivesse até o pescoço com pendências a resolver. E só não fui expulsa por subornar alguns guardas. -E riu, ajeitando-se na cadeira. Passo-te os nomes depois, caso queira puni-los.

—Certamente; mas, ora, deixe de eufemismos! -Exclamou Aço, sorridente. -Estou até o pescoço com problemas, e grandes!

—Oh, sinto muito, creio que vim em má hora. -Desculpou-se, ardilosa, a cigana.

—De forma alguma, meu bem, será bom ter você por perto para poder desabafar. Ser imperatriz não é fácil como pensei que seria.

Naquele momento, uma borboleta monarca invadiu o salão e pousou sobre o joelho de Hilda. “O sinal!”, pensou ela.

—Trouxe-lhe uma besteirinha cigana. -Comentou, procurando pelo envelope na bolsa. -Não é nada a nível de imperatriz, vou logo avisando. -Disse, entregando o embrulhinho.

Aço Voador o recebeu e o abriu com a rapidez da curiosidade. Ficou um tanto decepcionada, porém não deixou transparecer. Não era do seu feitio colecionar joias.

—Ah, que bonito! -Exclamou ela, mirando o pingente em frente aos olhos. -Obrigada.

—A pedra é semipreciosa e o cordão é de couro em vez de ouro. Como eu disse: nada extravagante. -Falou Hilda, fingindo vergonha por não poder oferecer nada mais valioso.

—Deixe disso, querida, nem toda a vida fui rica e sei que é com a melhor das intenções. -Sorriu e passou o fio pela cabeça.

—Ficou maravilhoso em você! -Exclamou a cigana, mal se contendo de ansiedade. -Vá se olhar no espelho.

 

A feiticeira sorriu e teleportou-se deixando Hilda sozinha no átrio. Assim que se viu só, a cigana tocou a borboleta e esta mudou para um grifo. Uma vez sobre as costas do animal, os dois dispararam de volta ao acampamento. Ainda houve tempo de se ouvir um grito furioso da feiticeira antes de Garras se lançar contra uma janela, estilhaçar o vidro e decolar para fora do palácio.

Aço estava de volta ao salão, espada em punho, cuspindo fogo de ódio, literalmente; um pequeno incêndio começava a se espalhava pelas tapeçarias. No peito, o pingente de carrapato liberava suas patas e, com elas, grudava-se ao corpo da imperatriz. Aço Voador notou a janela estilhaçada e disparou por ela.

—Traidora! -Gritava, atirando todo tipo de feitiços em Hilda e no grifo.

Por sorte, Garras voava bem, não só desviava dos tiros, mas o fazia com excepcional perícia, sem que fosse preciso reduzir a velocidade.

—Garras, consegue reduzir a velocidade e arrancar logo em seguida? Gostaria de tentar uma coisa. -Perguntou à criatura, recebendo um pio alto e uma espécie de aceno como resposta. -Muito bem, desacelere em três… dois… um!

A cascavel-camaleão assim o fez e, em poucos instantes, a feiticeira estava em seus calcanhares, a lança em riste, pronta para perfurá-los.

Hilda, que até então não havia desviado os olhos para encará-la, inclinou o corpo para trás, deitando-se sobre o dorso de Garras; estava agora encarando o céu, uma mão dentro da bolsa e a outra nas penas do grifo. Com um movimento rápido e inesperado, a cigana retirou a mão de dentro da bolsa e a agitou em direção a seu alvo.

—DISPARE! -Gritou para Garras.

Com a rapidez de um raio, o animal zuniu pelo ar ganhando a velocidade máxima. Hilda, ao voltar à posição normal e olhar para trás, contemplou uma nuvem de fumaça da qual um corpo se desprendia em direção ao chão em queda livre.

Deu-se o seguinte: com movimento, cigana retirou um Inferno Congelado da mochila e o atirou com tudo, a queima-roupa, na feiticeira que a perseguia, atingindo-a no rosto. A explosão certamente não a machucou tanto, a pele de aço a protegera, contudo o choque a nocauteou. Por hora.

 

Enquanto isso, Darius, Miguel e Manu vasculhavam os porões do palácio. Nem sinal da escritura da maldição da imperatriz.

—Acho melhor encontrarmos Hilda. -Falou Miguel, roubando um orbe lilás e guardando-o em uma das algibeiras.

—Eu tenho certeza de que ouvi uma explosão. -Comentou Darius.

—Ninguém mais ouviu, você está paranoico. -Disse Miguel.

—É a coroa, ela aumenta minhas habilidades, pode ter me dado uma audição mais apurada.

—Pode ser, mas vamos logo. -Apressou Manu. -Ela não seria idiota de guardar a escritura perto de si e em um lugar tão previsível como este.

—Podemos nos desencontrar de Hilda, ficou combinado que ela voltaria para cá. -Lembrou Miguel.

—Cícero está monitorando nossas mentes, ele avisará a cigana. Vamos embora. -Decretou o elfo. -O chamariz está pronto?

—Está sim. -Respondeu Miguel ficando invisível.

Manu e Darius subiram muitas escadas, ouviram, desta vez de fato, uma explosão e souberam que os guardas correriam naquela direção. Esconderam-se detrás de uma grossa cortina e esperaram o movimento de passos cessar.

A voz de Miguel surgiu ao ouvido dos dois dizendo: -Esperem por mim, volto já.

Alguns minutos depois outro estouro, ainda maior que o anterior, partindo desda vez dos subterrâneos onde estiveram momentos atrás.

Alarmes soavam por todos os lados enquanto os guardas se desesperavam tentando conter os incêndios.

—Vamos. -Chamou Miguel. -Explodi tudo, não é bom que andemos carregando Infernos Congelados por aí.

Darius seguia com uma flecha pronta no arco, Manu e Miguel, invisíveis, davam-no cobertura. Trombaram com alguns soldados no caminho, mataram todos sem grandes dificuldades. Restavam ainda quatro flechas na aljava do elfo; havia outra cheia no acampamento e era para lá que estavam indo.

 

Aço Voador ia ao encalço de Hilda, tinha roupas chamuscadas e o orgulho, gravemente ferido. Pensando em tudo que acabara de acontecer, chegou à conclusão de que a cigana não estava trabalhando sozinha. Certamente a estava atraindo para uma armadilha; logo, decidiu retornar ao palácio.

A meio caminho de casa, avistou um trio suspeito correndo em direção às montanhas, o mesmo lugar para onde a cigana e o grifo pareciam fugir. Na verdade avistou um elfo bem camuflado, os outros dois eram apenas rastros de pegadas na neve. Desistiu de voltar ao palácio. Pôs-se a segui-los. Ganhou altitude para não ser notada e os acompanhou sem pressa, tal qual um predador que espera o melhor momento para investir contra sua caça.

 

—Hilda, onde está a bruxa?! -Inquiriu Manu, apreensivo.

—Eu a derrubei com um dos Infernos Congelados. Se vocês não a encontraram, deve ter voltado para o palácio enquanto fugiam.

Darius sentiu um formigamento na nuca, um sinal de perigo. Antes que pudesse pensar sobre o que faria, agarrou Manu pelo braço e tocou o anel com a pedra vermelha. Fez-se, então, um grande campo de força o qual rachou inteiro ao receber o impacto de uma bola de fogo do tamanho de um boi.

—Bravo, Hilda, bravo! -Disse Aço Voador, cáustica. -A que mágico devo dar os parabéns por ocultar qualquer traço de traição de sua mente?

—A mim! -Bradou Darius, pondo-se entre as duas.

—Poupe-me, elfo, não há um pingo de magia em sua aura. -Cuspiu ela. Os olhos eram pura luz azul, tomados de mana e raiva. Com um movimento de mão, atirou todos para longe, exceto Garras. A mascote dos Guardiões das Chamas estava em sua versão de dragonesa. Partiu com as unhas em fogo vivo sobre a feiticeira tentando esganá-la.

Aproveitando a confusão, Manu tirou seu anel de energia e deu-o para Hilda.

—Criatura quimérica amaldiçoada! -Rosnou a imperatriz, tomada por nojo ao ser tocada por Garras. -Demônio, solte-me! -Garras a prendia completamente em um abraço que racharia os osso de qualquer humanoide normal, mas não os de alguém de aço.

Por mais que fosse inútil, a dragonesa a atacava com arranhões, mordidas e tentativas de ferroadas. A feiticeira, por sua vez, não conseguia repeli-la e, ainda que sua pele de aço a protegesse da dor, sentia-se extremamente enojada e vulnerável por ser tocada por uma criatura que, pensava ela, era um demônio, um ser amaldiçoado.

Darius pegou a aljava cheia, mesmo sabendo que as setas não penetrariam Aço Voador. Miguel rapidamente marcou o estojo de flechas do irmão com algum selo mágico e voltou a desaparecer sem dar explicações do que se tratava. O elfo tirou uma das flechas e fez mira na feiticeira.

—Garras, pode matar! -Bradou Manu, ainda invisível graças ao anel mágico que recebera especialmente para a missão.

A mascote manobrou a ferrão envenenado da cauda, mirando-o no rosto da imperatriz. Forçou-o várias vezes, porém o aço sobre a pele era forte demais para que fosse perfurado.

Hilda, sem saber o que fazer, pediu que Cícero tomasse o controle de seu corpo, que trocassem os corpos, qualquer coisa que a tirasse dali. O Feiticeiro Âmbar assim o fez. O telepata agora habitava o corpo da cigana, enquanto ela tomava conta do seu na fortaleza.

Garras, não tente ferroá-la. Remova o colar.” —Disse ele, por pensamento, para o animal. Todos o ouviam, exceto a imperatriz. “Manu, acalme-se, eu tenho um plano.”—Tranquilizou o amigo que segurava inutilmente um gládio mais pesado do que suportava. “Miguel e Darius, um de vocês pegue o colar enquanto o outro dispara tudo que tem contra essa víbora de metal”.

“Eu pego, Darius atira.”—Respondeu Miguel, aproximando-se da briga entre Garras e Aço, mantendo-se invisível.

Garras batia a ponta do ferrão envenenado contra os olhos da imperatriz que os fechava por reflexo, ainda que não sentisse dor alguma. Tudo estratégia para impedir que a feiticeira a visse tirar o colar. A dragonesa tentou arrancá-lo com os dentes, mas o fio de prata não cedeu ao peso da mordida. Aço de nada suspeitava, apenas se debatia, crendo que a fera queria morder-lhe o pescoço e profanar-lhe o corpo.

Por um segundo, Garras olhou para Hilda possuída por Cícero e recebeu uma nova instrução: Cícero plantara na cabeça do animal uma cena na qual usaria a ponta da cauda como um gancho para segurar o colar e então puxá-lo para cima, passando-o pela cabeça da imperatriz e jogando-o para a direita, onde Miguel o apanharia. E a cascavel-camaleão assim o fez.

O ninja, visível, apanhou o amuleto e pôs no próprio pescoço, rindo maldosamente do olhar desesperado de Aço Voador antes de voltar às sombras. Garras soltou sua presa, e Darius disparou três flechas seguidas no peito da mulher. As setas estavam encantadas para explodirem ao choque, e os impactos sucessivos lançaram o alvo a três metros de distância.

—Miguel, ative o amuleto, petrifique-a! -Gritou Cícero, com a voz de Hilda, sem se incomodar em ter os planos ouvidos pelo inimigo.

O elfo-duende passou a mão pela joia e ela se iluminou em uma luz verde-amarelada. Seus olhos também tomaram a cor, a pupila se tornou vertical como a dos répteis enquanto ele avançava sobre a feiticeira. Cobras, feitas com a mesma energia da luz, surgiram em sua cabeça, dando a ele o aspecto de uma górgona.

A imperatriz tentou com todas as forças, mas era impossível evitar os olhos do ninja, perigosamente atraentes com aquele brilho. Parte a parte, seu rosto virava pedra e, logo depois, o feitiço avançava para o restante do corpo; contudo, antes de tudo ser rocha, o feitiço retrocedia. Sobre a pedra recém-caída, aço, faiscante de tão reluzente.

Aço Voador não se incomodou em deixar escapar a gargalhada. Levantou-se ainda com a cobertura de pedra rachando. Ria realmente achando graça, não era só um escárnio:

—Achou mesmo que uma de minhas armas pudesse me ferir? -E lançou um raio de gelo sobre Miguel que, apesar da tentativa de esquiva, foi congelado até o pescoço. A mágica do Aura Paralisante cessara.

A feiticeira suava apesar do frio ramaveno. A respiração era asmática e transparecia cansaço; o sortilégio a drenava. A pele negra parecia ressecada e os cabelos selvagens perdiam o volume que a tantos conquistara. As oito patas do carrapato em seu colar maldito enrolavam todo o tronco e se juntavam umas as outras às costas, como se a abraçassem, as quelíceras a mordiam no pescoço; impossível de remover a partir disso.

Sentindo sua força sendo sugada, a imperatriz avançou sobre Hilda com uma das mãos estendida para a frente enquanto a outra brandia uma cimitarra, o Anel Bélico. Darius e Manu, com o anel mágico de volta a seu poder, dispararam flechas e raios contra ela, os quais foram bloqueados quando a cimitarra ganhou forma de escudo circular. O contra-ataque se deu automaticamente: duas bolas de fogo foram cuspidas e os dois Guardiões das Chamas foram ao chão desacordados. Garras, em um surto feroz, pulou na cabeça da feiticeira em peles de serpe, cuspindo ácido antes de disparar em um perigoso mergulho no qual mirava as garras no rosto de sua presa.

—Besta! -Xingou a feiticeira, batendo com o escudo na criatura. Estava coberta por ácido, mas a pele de metal a protegia.

Com todos fora de combate, o caminho até a cigana estava livre. Seus olhos totalmente azuis, carregados de mana, miravam os inteiramente amarelos de Hilda, possuídos por Cícero. Lançou-se a toda velocidade, lança em riste, apontada para o peito de seu alvo.

Cícero manteve o corpo de Hilda parado, sustentou-o assim até o último segundo… Aço Voador chocou-se com uma parede invisível a dois palmos de distância; no chão, sob seus pés flutuantes, um círculo se acendeu derretendo a neve sobre a terra. As runas brilharam azuis e a feiticeira fora presa.

—Soltem-me! -Rugia ela. -Logo todos os soldados ramavenos estarão aqui para matá-los!

—Aqueles que explodimos e exterminamos? -Perguntou Hilda, de braços cruzados, retomando controle de seu corpo. Encarava a imperatriz de baixo para cima pela diferença gritante entre as alturas.

Darius começava a despertar, a coroa estava torta sobre cabeça e as flechas espalhadas pelo chão.

—Solte Miguel do gelo e veja se Manu e Garras estão bem. -Hilda disse ao elfo. E, dirigindo-se à inimiga: -Você está sozinha, como sempre esteve em toda a vida por ser a megera que é!

A feiticeira cuspiu fogo para todos os lados, porém de nada adiantou. Quando a fumaça retrocedeu, continuava presa no círculo sendo empalada pelos olhos verdes e severos da cigana.

—Pare com esse teatro! -Cortou Hilda. -Soprar fogo? O que pensa que é? Um dragão? -Zombou com um sorriso.

—Uma semideusa! E essa armadilha não tem poder para me prender para sempre. -Rosnou, sentindo uma dor no peito em seguida.

—De fato não tem. -Aquiesceu a cigana. -Acontece que a cada segundo você fica mais fraca. -Falou, passando a mão pelo próprio pescoço.

Aço entendeu o recado e tentou novamente se livrar do pingente parasita.

—Oh, não, não… -Repreendeu, entre risos, a cigana. -No atual estágio é inútil tentar removê-lo. A mágica que a prende cuida do resto e a impede de nos machucar e fugir… -Hilda se abaixou e juntou uma boa quantidade de neve nas mãos, formando uma bola. -Porém a recíproca não é VERDADEIRA! -E a arremessou contra o rosto da feiticeira.

Darius olhou para Miguel, descongelado, sorrindo e ele assentiu, confirmando que era mesmo possível. Uma flecha no arco, uma corda tensionada e solta e um estouro nas costas da imperatriz a atirava contra a barreira mágica. Próxima o suficiente para Hilda estapeá-la no rosto que, como sempre, tornou-se aço antes do golpe, o que não diminuía a humilhação.

Enquanto as duas mulheres trocavam ofensas, os homens encontravam Garras. A cascavel-camaleão estava ferida em um dos olhos, nada fatal, mas certamente lhe custaria a vista.

—Cuidem da cobra. -Pediu Miguel. -Eu tenho um presentinho para a Imperatriz de Ramavel. -Finalizou tirando da roupa o orbe lilás que havia roubado do Palácio Real.

O elfo-duende foi até o círculo e gritou, chamando a atenção da gigante para si. Jogou a pequena esfera de vidro no peito dela.

—Acha que sou idiota!? -Gritou ela, descontrolada, agarrando-a. -Não vou quebrar o orbe, eu mesma o contruí este, conheço suas propriedades.

—Hum, eu não conheço, acho que vou quebrá-lo e descobrir. -Caçoou Miguel atirando um sai na esfera com perfeição e estilhaçando-a em cacos.

Ao ser partida, a esfera liberou um feroz tornado seguido por vários raios. Tudo contido no pequeno diâmetro do círculo de runas. Aconteceu com grande rapidez e logo cessou. Os olhos da feiticeira brilhavam fracamente com a luz do mana, forçando-se para não se apagar. O vestido ficou em farrapos, só não estava nua graças ao traje de luta que sempre vestia sob a roupa; o corpo inteiro era aço, inclusive os cabelos desgrenhados pelo tornado. Estava de joelhos a centímetros do chão, uma vez que a maldição a impedia de tocá-lo, com a cabeça baixa e a respiração entrecortada. O metal de sua pele faiscando com a eletricidade recebida.

—Onde está aquele seu exército mesmo? -Sussurrou Hilda, agachada ao lado do rosto da rival caída.

—Pensam que me venceram? -Perguntou ela. -Agora mesmo, um soldado especial está acatando uma ordem de emergência. -Deixei tudo preparado, por sorte.

—Do que está falando, bruxa? -Manu quis saber. Tinha Garras nos ombros e acariciava a mascote ferida.

—Mentiras. -Disse Hilda.

—Diga-me se é ou não amanhã, quando souber das notícias. -E soltou uma grande risada, levantando-se. -Não podem me matar… então, o que vão fazer? Deixar-me aqui, à míngua?

—Não me parece má ideia! -Concordou Darius.

—Garras ainda pode queimá-la. -Sugeriu Manu e, de pronto, a mascote pulou para o chão e transformou-se em dragão.

A visão chocou a Imperatriz dos Gigantes. No fundo ela sabia que nada resiste ao fogo sagrado dos dragões, nem mesmo uma pele de aço. Sabia que não era um dragão legítimo e sim uma réplica, mas, ainda assim, tremeu.

—NÃO! -Gritaram juntos Miguel e Darius.

Manu atendeu e, antes que a feiticeira tivesse tempo para zombar da compaixão que os irmãos pareceram demonstrar, disse: -Ainda pode ser devorada viva, mas antes conte o que seus soldados farão.

—Não os meus, apenas um deles… ah, hipnose é uma coisa tão poderosa! -Confessou, não pela ameaça sofrida e sim para voltar ao topo. -Sabiam que… que horas são? Bom, não importa. Agora mesmo, ou daqui a alguns minutos, um dos seus irá traí-los e matar sua preciosa família real.

—É um blefe descarado. -Interrompeu Hilda. -Nem nosso clã nem nós nos reportamos a rei algum, apenas recebemos apoio.

—O que? -Aço Voador estava confusa, entrava em desespero. -Quem são vocês?

—Nós somos os Guardiões das Chamas e exterminaremos você e sua deusa farsante! -Respondeu Darius, aproximando-se. -A qual família real se refere?

—Não pertencem à Salvaguarda Legítima? Hum, creio que tenha havido um engano. -Admitiu ela. -Vejo uma humana, um elfo e dois híbridos sem qualquer traço anão ou kvarbrakoj… de qualquer forma, o que está feito está feito e eu não me arrependo!

—Fale de uma vez, maldita! -Bradou Darius, mandando outra flecha de impacto direto no peito.

—Agora deve estar acontecendo uma reunião da Salvaguarda Legítima no Castelo Real de Eyrell. Meu enviado não passa de uma pessoa comum da qual ninguém tem notícia de grandes feitos, mas que sempre se interessou por política. A mente dele está programada, sem que ele saiba, junto a minha e, caso eu fosse atacada, ele mataria a família real de seu reino. -Entregou Aço Voador, sem se importar com a flechada recebida. -Com isso têm tudo o que precisam saber: o suspeito é homem, gosta de política, é um elfo e vocês facilitaram o trabalho dele quando resolveram me atacar justo no dia em que haveria uma reunião e toda a família estaria junta no mesmo lugar e na mesma hora. -um sorriso cínico curvou os lábios da imperatriz. -Obrigada! Já podem ir brincar de detetive, crianças, e seguir as pistas que dei.

Darius congelou. Apesar de todas as maldades que fizera aos monarcas de seu reino, gostava deles, principalmente de seu ex-cunhado, Hélio.

—Garras, engula-a! -Mandou Hilda, farta de toda aquela patifaria.

O dragão ergueu o pescoço lentamente e encarou sua presa. Os olhos verdes de pupilas verticais se cruzaram com os azuis de mana sem pupilas ou íris visíveis. Aço voador inclinou o rosto para cima, cerrou os olhos e começou a recitar uma prece a Harkuos.

—Sua deusa não vem. -Disse Hilda. -Ela não existe.

E então o dragão desceu com a boca escancarada e cheia de dentes, pronta para engolir de uma só vez a lendária Aço Voador. O bote estava armado, porém foi impedido. Uma imensa fênix dourada e vermelha surgiu diante dos olhos de Garras, fazendo-a interromper o movimento no ato.

Houve um brilho tão intenso e potente e, no segundo seguinte, todos estavam ajoelhados cobrindo os olhos com as mãos. Ao retroceder da luz, viram, pasmos, a figura de uma mulher, uma humana. A pele era clara e os olhos, azuis; usava um vestido simples de um vermelho mais intenso que o sangue. Seu cabelo longo parecia fogo líquido, magma; tinha uma aparência incandescente e as cores se moviam como se de fato fossem lava escorrendo da raiz para as pontas.

—Vim em defesa de quem sempre me defendeu. -Disse a mulher, finalmente pousando e derretendo a neve ao passear sobre ela, sua voz era doce e delicada, porém firme.

—Quem é você. -Perguntou Miguel.

—Eu sou Harkuos e sou mais real do que vocês imaginam. -Todos os olhares estavam voltados para ela. Aço Voador derramava lágrimas, mas também tinha um sorriso infantil no rosto. -Vocês estão banidos de volta ao lugar onde são bem-vindos. Lembrar-se-ão de tudo o que ocorrera no dia de hoje, inclusive de mim. -E, com um gesto amplo da mão, atirou sobre os Guardiões das Chamas um paredão de fogo. Não restou o menor sinal deles.

—Minha Deusa, querida Harkuos! -Emocionou-se Aço Voador. -Não existe em mim gratidão suficiente para sua magnificência, mas saiba que sou grata a senhora em toda a plenitude que me é tangível! -Falou. Ainda chorava ajoelhada e de cabeça baixa; tinha as mãos unidas com os dedos entrelaçados sobre a cabeça.

—Sei o quanto é grata, minha querida. -Disse a deusa com um sorriso de dentes branquíssimos. -Contudo gratidão não vai livrá-la de sua punição. -Lamentou-se, assumindo um tom mais severo. -Você fez muitas coisas ruins ao longo de todos esses anos de vida. Desagrada-me, interferir e ter de puni-la, porém, depois de salvar-lhe a vida, preciso equilibrar o jogo e ministrar um castigo.

—Eu compreendo, Senhora. -Disse a imperatriz, pranteando ainda mais. -Aceito o destino que julgar justo para mim e assumo a culpa por todas as minhas ações.

—Muito bem… imagino que a melhor maneira de castigá-la seja tirar de você tudo o que usou para machucar seus semelhantes. -Harkuos parou diante de sua seguidora, com um movimento a pôs de pé e com outro removeu a barreira ao seu redor e o colar que a drenava. -Eu removo de você a maldição a qual é condenada! Sua pele não mais se transformará em aço, seus pés tocarão o chão a partir de agora e seu mana será apagado para sempre! A partir deste momento, você não terá mais motivo para ocultar seu nome e volta a ser uma gigante como qualquer outra.

Como ordenou a deusa, a pele inteira se transformou em aço para, logo em seguida, rachar e cair; o corpo baixou lentamente, tocando os dedos e depois todo o pé na terra; os olhos, preenchidos pelo mana de cor azul, voltaram ao normal e agora exibiam íris castanhas.

—Diga-me seu nome, querida. -Pediu Harkuos, gentilmente.

—Aço Voador, Senhora. -Respondeu a ex-feiticeira.

—Refiro-me ao verdadeiro. -Corrigiu a Deusa.

—… Veneza Quendra.

 

***

 

Cena II – Contra-ataque Hipnótico.

08 horas e 37 minutos. Reino Elfo – Eyrell. Castelo Real.

 

Sentavam-se à mesa de frente para o público, além dos reis e rainhas envolvidos na Salvaguarda Legítima, os membros de maior importância para aliança: Nyra Anthe, diplomata; Ônix Ladelu, responsável pelo planejamento; Tamires Zeto, chefe de cura e enfermagem; César Iros, dono de quatro grandes cargos.

Esta era uma reunião aberta e muitos cidadãos decidiram participar. Dava-se no próprio átrio do castelo o qual se encontrava lotado. Os primeiros a chegar encontraram lugares onde se sentar, o restante assistia de pé mesmo. Todos em silêncio.

 

—Então a situação dos anões envenenados está resolvida? -Perguntou a Rainha Elfa, Maya Jardais, a Tamires.

—Não completamente. -Respondeu, meneando com a cabeça. -Eles mesmos descobriram o que os envenenara, sangue de hidra, contudo não há ainda um antídoto plenamente eficaz contra isso. Estamos trabalhando nisso e creio que em breve o belíssimo trabalho de Catarina Ravau e Velma Cann estará concluído e salvará os ruthuranos. As duas trabalham dia e noite tentando aprimorar o elixir.

—Quantos deles pereceram ao sangue de hidra? -Perguntou o Rei Duende, Henrique Jaatar.

—Quarenta e um mortos, a maioria crianças e idosos. Vinte e cinco seguem em estado grave sendo tratados pelo próprio Reino Anão e por nós. -Respondeu a clériga, cabisbaixa. -Infelizmente eu não posso oferecer muito… meu conhecimento sobre cura espiritual é inútil em pessoas de pouca fé.

 

Os assuntos se seguiram, um após o outro. Em dado momento um elfo se levantou na segunda fila de cadeiras e a elite da aliança voltou sua atenção a ele. Parecia que tinha algo a acrescentar ou a perguntar.

—Pode dizer, senhor. -Convidou o Rei Humano, Juan Travelier.

O sujeito continuou calado, esboçou um sorriso e tirou uma flauta de bambu de um bolso interno do colete. Com toda a calma do mundo ele levou o instrumento aos lábios e começou a soprar uma melodia calmante e repetitiva. O som enebriava os sentidos de todos os presentes, inclusive dos monarcas, os quais nem se importaram com a interrupção do homem, apenas aproveitavam a música.

Quando a canção chegou ao fim, o flautista recomeçou a tocá-la. Subitamente, um pequeno espinho se soltou da ponta da flauta e foi-se prender no pescoço da Rainha Maya. Aos poucos, ela adormeceu sem que ninguém notasse. O caso se repetiu, desta vez sendo Rei Zadell a vítima do dardo da flauta. Tal qual a esposa, o Rei Elfo abaixou a cabeça.

Na primeira fila, Tizana, a dona da hospedaria Seta Afiada, onde Nyra pernoitava, sentia-se desconfortável. O som da flauta a trazia calma ao mesmo tempo que evocava lembranças ruins a sua mente.

O flautista, confiante, pôs-se a andar. Caminhava a procura de uma pessoa específica a qual não conseguia encontrar no meio de tanta gente.

Uma mosca zumbia enlouquecida ao redor de Tizana e, aos poucos, o inseto a trouxe de volta à consciência. A híbrida ainda ouvia a música, mas agora sabia exatamente do que se tratava. Fingiu-se de boba, deixou seu lugar e começou a dançar ao som da flauta para não levantar suspeitas do homem.

Foi até a mesa, tomou Nyra pelo braço e a forçou a dançar também. A mosca que a acordara zumbiu bem próxima à orelha da diplomata e a despertou do transe. Tizana notou pela mudança no olhar; imediatamente a abraçou, continuando a dança, e murmurou em seu ouvido:

—Ignore a música, não se espante e me ouça. -Nyra concordou com um movimento de cabeça. Estava assustada, mas controlou o medo. -Este homem acaba de matar o Rei e a Rainha dos Elfos. -E então virou Nyra na direção da mesa. -Você está segura, ao que parece ele procura alguém em especial… tenho uma suspeita e posso salvá-lo, porém você precisa permanecer acordada e evitar que ele saia daqui. Consegue compreender? -Nyra respondeu com outro aceno. -Perfeito, esta mosca zumbindo é Nuvem, a minha gata. Sei que parece loucura, mas depois explico tudo… ela vai se transformar em aranha, entrar nos seus ouvidos e enchê-los de teia para abafar o som da flauta. Não tenha medo, ela não te fará mal.

A mosca pousou em uma das tranças de Nyra e mudou para aranha, deslizando depois até a orelha onde deixou um emaranhado de teia. Repetiu o processo na outra orelha e voltou a rodear Tizana.

As duas se separaram e Nyra continuou a dança sozinha. Tizana também e, aos poucos, foi-se aproximando da porta que havia atrás da mesa dos líderes. Passou por ela e disparou pelos corredores a procura do príncipe. Tinha certeza de que Hélio era o alvo que faltava ser atingido; afinal, com outros reis e rainhas ali, por que o assassino se preocuparia com alguém escondido na plateia? O mandante do crime certamente queria a família real de Eyrell morta… Zadell e Maya se foram, restava Hélio.

Tizana corria por todos os lados, abria portas e invadia cômodos sem se preocupar com os funcionários da coroa que lá haviam e suas vozes de prisão pela invasão. Nuvem ia em seu encalço, transmutada em beija-flor. Alguns guardas as seguiam e o fôlego de Tizana esgotava.

—Nuvem, despiste-os! -Gritou ela ganhando os degraus de uma escadaria em espiral.

Imediatamente o beija-flor pulou sobre os guardas em forma de tigre. Derrubou quatro e bastou rosnar que os outros se afastaram assustados. No instante seguinte, era um sapo-cachorro; um sapo do tamanho de um cavalo cujo coaxar muito se aproximava ao som do latido de um cão grande e feroz. O sapo-cachorro cuspiu uma chuva de muco no teto do corredor de onde começou a escorrer, lentamente bloqueando o caminho e impedindo que fosse seguido. Voltou a forma de beija-flor e partiu voando pela escada espiralada.

Não encontrou Tizana, mas ouviu sua voz vinda do último cômodo do corredor:

 

—Príncipe eu preciso que venha comigo, você corre perigo! -Insistia a elfa-duende.

—Eu não faço nem ideia de quem seja. -Rebateu ele, calmo, porém mirando uma flecha no peito de Tizana.

—Eu já lhe disse: sou Tizana Caesh, dona da Seta Afiada, vim aqui para salvar-lhe a vida!

—Mentiras. -Cortou Hélio. -Saia ou será alvejada! -Disse ele no momento que o beija-flor entrava.

—Certo… -Concordou a híbrida. -Nuvem, tire-nos daqui. -Pediu, fazendo um sutil gesto com a cabeça em direção ao príncipe.

Em um segundo, o pequeno beija-flor mudara para harpia. Agarrou o príncipe com as patas e voou, com ele aos berros, pela janela.

Tizana redigiu um bilhete com pena e pergaminho achados sobre a escrivaninha do príncipe. Apenas o básico: “Rei e rainha estão mortos, só pude salvar o príncipe. O homem com a flauta é o culpado. Sua alteza está segura na hospedaria Seta Afiada.”. Ao fim do papiro deixou seu nome assinado.

Um minuto depois e os guardas subiram correndo e fazendo barulho. Tizana foi pega com o papel ainda em punho. Levantou as mãos em sinal de rendição.

—Leiam, é tudo verdade. -Disse, agitando o pergaminho.

Um dos guardas o pegou e leu em voz alta para os outros. Tinha dúvidas, mas, para se certificar, mandou metade dos homens ao átrio para verificar a mensagem.

—Nyra Anthe pode confirmar tudo. -Disse ela, sendo levada sem resistência.

Ao chegarem à porta, a harpia estava de volta e pronta para atacar.

—Nuvem, tudo bem. -Disse Tizana. -Falo a verdade e serei solta logo. Cuide do príncipe até lá.

 

***

 

Cena III - “Banidos de volta ao lugar onde são bem-vindos”.

08 horas e 51 minutos. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

 

—Estamos de volta? -Perguntou Manu olhando ao redor.

—Estamos… -Concordou Hilda.

—O que? Como vieram parar aqui? -Perguntou Ezerk, dando um salto da mesa. Todo o clã tomava café da manhã quando o quarteto enviado para matar Aço Voador surgira do nada.

—Fomos banidos para cá. -Explicou Darius, atirando longe a coroa de louros.

—Por quem?! -Perguntaram todos.

—Pela própria Harkuos. -Respondeu Miguel.

Houve um enorme momento de silêncio no qual todos trocaram olhares sem conseguir pensar em nada sensato para dizer.

—Então ela é mesmo uma deusa? -Perguntaram as Bruxas Siamesas, quebrando o pesado silêncio.

—Sim. -Responderam Miguel e Darius

—Não. -Diziam Hilda e Manu.

—Sim ou não?! -Zangou-se Urak.

—Ela surgiu do nada. Era uma fênix e, no instante seguinte, era uma mulher feita de fogo! -Exclamou Miguel.

—Não, nada disso! -Discordou Manu. -Enquanto Garras se preparava para engolir a feiticeira, uma luz forte cegou a todos nós e depois acordamos aqui.

—Eu a ouvi dizer “Eu sou Harkuos e sou mais real do que imaginam”. —Disse Hilda. -Ela é real, mas isso não significa que seja uma deusa. Para mim é só uma feiticeira invencível.

—Ser invencível não faz dela uma deusa? -Perguntou Darius.

—Ela não é uma deusa! -Gritou Ezerk, golpeando a mesa e entornando o café. -Estão se esquecendo de seus juramentos? -E olhou, um por um, nos olhos. -Quero saber tudo o que aconteceu.

Um a um, todos contaram sua versão dos fatos do início ao fim. As histórias batiam completamente umas com as outras até chegarem ao momento do aparecimento de Harkuos. Cada Guardião a vira de uma forma diferente, o que gerava confusão.

—Ilusões. -Garantiu Miragem. -Harkuos tentou confundi-los e vocês estão permitindo que ela consiga.

—Miragem tem razão. -Concordou Urak. -Ela quer nos dividir para que não consigamos depô-la e expor sua farsa.

Ninguém disse mais nada. O encontro com a figura em Ramavel foi único. Seja Harkuos o que for, sua imagem mexeu com parte do clã.

—Ao meio-dia, invadiremos a fortaleza de Kaotheu e nos vingaremos do envenenamento do rio Pynan. Vocês quatro estão dispensados e Garras também. Tratem do ferimento dela e descansem. -Decretou Ezerk ao se levantar. -O restante irá, sem exceções.

 

***

 

Cena IV – Sozinho.

11 horas em ponto. Reino Elfo – Eyrell. Castelo Real.

 

O lugar estava quase completamente vazio, só permaneciam ali alguns guardas. No salão da biblioteca estavam Tizana, César, Nyra e Hélio.

Após toda a confusão, resolveram evacuar o castelo. Não haviam noticiado o ocorrido e os eyréllicos de nada sabiam. O flautista fora identificado como Noam Char e condenado à guilhotina. Tizana fora absolvida do crime de invasão e também do sequestro de Príncipe Hélio.

 

—Alteza… -Chamou Nyra, delicada. -Nós temos uma coisa para contar ao senhor.

—Não gosto do seu tom. -Respondeu Hélio, cortante. -Sempre que vêm a mim com excesso de formalidades é mau sinal. Da última vez Kayena tinha morrido. -Disse, amargo.

Os adultos trocaram olhares penalizados. Ninguém sabia conduzir uma conversa como aquela e, depois do comentário do príncipe, tornou-se ainda mais difícil.

César se sentou ao lado do príncipe, pôs um braço sobre seu ombro:

—Você vai precisar ser forte. Tizana, por favor… -Pediu ele.

—Alteza… Hélio, os seus pais sofreram um atentado durante a última reunião da Salvaguarda Legítima. -Começou ela, indo direto ao ponto. Os olhos do príncipe pareciam perdidos e César o abraçou com mais força. -Eu sobrevivi a um atentado parecido na infância; reconheci o truque e corri para te salvar… infelizmente não houve tempo para salvá-los, eu sinto muito. -Fechou a híbrida, contendo as lágrimas.

—Não, eu não acredito… -Agitou-se o príncipe. Sacudia a cabeça em negativa com as mãos sobre o rosto. -Outra vez não!

—Hélio… -Chamou César.

—Deixem-me! -Gritou o príncipe, livrando-se do abraço. -Eu estou sozinho… -Disse. As pernas cederam ao tentar correr e ele caiu de joelhos, chorando como nunca na vida.

Nyra se abaixou de frente para ele e o abraçou. Hélio resmungou e fez menção de se livrar da duende, mas desistiu. Terminou chorando sobre seu ombro, apertando-a com toda a força, ali mesmo, no chão.

 

***

 

Cena V – A Encruzilhada.

Meio-dia. Reino Kvarbrakoj – Kaotheu. Fortaleza Real.

 

A Fortaleza de Kaotheu nada tinha de fortaleza. Tinha a estrutura forte e impossível de demolir, é verdade, mas, exceto isso, era um amontoado de portas escancaradas. Os orgulhosos kvarbrakoj, senhores da guerra de outrora, há muito esqueceram de suas raízes bélicas. Antes, de fato, fora uma fortaleza; guarnecida por todos os lados, repleta de armadilhas e soldados armados até as gengivas para liquidar qualquer intruso. Com o tempo, as outras raças humanoides entenderam que era impossível fazer frente aos kvarbrakoj em uma disputa de força, e nunca mais tentaram invadir Kaotheu; os kaothenos também perderam o interesse nas riquezas dos outros povos e se aposentaram dos combates. Ao passar dos séculos, perderam o zelo e, hoje, o que chamavam de “fortaleza” só conserva o nome vazio sem, nenhuma das propriedades.

 

Os Guardiões das Chamas surgiram nos Jardins de Areia, graças a um feitiço de teletransporte. Entraram como campeões, chutando a porta da frente e liquidando os guardas mal treinados sem muita dificuldade. Contavam com magia e extremo planejamento e não seria a força bruta e aplicada sem técnica alguma que os pararia. Decidiram levar o colar que Miguel roubara de Aço Voador, o Aura Paralisante, mas até o momento não fora preciso usá-lo.

Corpos jaziam no piso de quartzo do hall de entrada, a maioria deles teve os braços decepados; uma clara afronta à espécie cujos braços eram o maior orgulho e símbolo. Sangue escuro manchava as paredes e o chão, cobriam o brasão do reino talhado na pedra do piso.

Os tronos foram tombados dos pedestais e incendiados. Soldados não paravam de chegar aos montes para serem mortos logo em seguida. A maioria tinha a vida sugada por Targus, o necromante do clã.

Targus liberava todo o poder que possuía, espantando até os companheiros de clã. Tinha o rosto pelo menos quinze anos mais jovem após se alimentar de tantas vidas. Um vórtice de almas o rodeava, sussurrando todos ao mesmo tempo coisas incompreensíveis. Os guerreiros kvarbrakoj mortos foram trazidos de volta a vida e andavam como zumbis pela fortaleza a procura do rei e da rainha. O sangue também criou vida e rodopiava pelo salão, subindo pelas paredes e formando no teto uma nuvem escarlate.

Cícero vandalizava todos os símbolos de poder kvarbrakoj. Todas as estátuas tiveram dois de seus quatro braços arrancados. Os brasões e bandeiras, rasgados ou incendiados. Em certo momento, o Feiticeiro Âmbar sentiu a presença da mente do rei. Estava em uma torre oculta, escondido como um cachorro acuado a beira da morte.

—O acesso à torre nos obriga a passar pelas ruínas do Palácio Soterrado. -Disse o telepata. -Néfor não é idiota e eu não sou ingênuo, o caminho está cheio de armadilhas com certeza e ele me permitiu detectá-lo. Quer que morramos no caminho.

O Palácio Soterrado fora o antigo lar dos monarcas kaothenos. Vítima de um imenso cataclismo, o monumento ruiu e afundou completamente. O terremoto levou todos os restos do antigo palácio para dentro de uma fenda gigantesca, sobre a qual foi construída a nova Fortaleza Real.

—Por que não nos teleportamos para lá? -Perguntou Miragem.

—Porque fica em outra dimensão, por assim dizer. -Respondeu Urak. -Eu já li sobre a torre, mas achei que era uma história para crianças.

—O que mais sabe? -Perguntaram Luzabell e Razatte, tentando manter o equilíbrio após patinarem sobre um poça de sangue.

—Depois que afundou, o palácio foi transformado um tipo de labirinto pelas feiticeiras, mas não exatamente… -Disse Urak.

—Explique. -Mandou Ezerk.

—São muitos caminhos, mas todos levam à entrada da Torre Secreta. -Esclareceu. -O que muda é o que se enfrenta atrás de cada porta.

—Onde fica a entrada? -Perguntaram as Bruxas Siamesas.

—Debaixo do altar dos tronos. -Falou Urak, andando até lá. -Segundo o conto, uma passagem deveria surgir quando o brasão fosse pressionado, mas nada aconteceu… -Urak, então, girou o martelo de guerra e pôs a baixo a parede.

Não havia escada ou rampa para descerem, somente um túnel íngreme para o escuro. Ezerk pulou primeiro, seguido depois pelas Bruxas Siamesas, Targus, Cícero e Urak.

 

O túnel terminava em um lago profundo. Se foi uma verdadeira luta para Ezerk e Miragem não se afogarem, para Urak foi uma verdadeira surra. O corpo denso os impedia de nadar, sempre afundavam e teriam morrido ali mesmo se os mágicos do clã não improvisassem uma ponte de gelo até a margem e os atirassem sobre ela.

—Deveria haver uma jangada ali. -Resmungou Urak.

—Provavelmente Néfor e Julee a levaram. -Supuseram as bruxas.

O breu reinava, então improvisaram tochas. A poucos metros da margem, havia dois arcos de pedra marrom alinhados lado a lado; atrás destes, quatro; depois, oito; dezesseis e assim a perder de vista. Ao fundo, as grades retorcidas do portão do Palácio Soterrado e, detrás delas, os escombros da obra.

—Não vejo labirinto. -Falou Cícero.

—Foi o que eu expliquei lá em cima, é metafórico. Está mais para uma encruzilhada enorme. -Falou o general. -No conto, era preciso cruzar seis portais quaisquer, um de cada grupo, e isso revelaria uma nova fileira com o dobro de arcos da anterior. Um desses seria a entrada da torre, outro nos levaria de volta ao salão da fortaleza, os demais seriam novos testes.

—Então teremos uma chance em cento e vinte e oito de acertar de primeira. -Calcularam as Bruxas Siamesas, automaticamente.

—Cícero, consegue rastrear a presença de nossos monarcas fugitivos? -Indagou Ezerk.

—Não, preciso que um deles abra a porta da torre para isso.

—Muito bem, vamos começar então. -Encorajou Targus, parando diante da primeira fileira. -Direita ou esquerda?

—Esquerda. -Arriscou Urak. -Você escolhe o próximo.

Ao atravessarem, foram deslocados para outro lugar. Não existiam mais entulhos do antigo palácio, nem ratos se escondendo da luz. Entraram em um campo aberto, o crepúsculo se anunciando; o arco sumiu em seguida.

—E agora? -Disse Cícero.

—Não abaixem a guarda, não existe passagem segura… -Instruiu o general, martelo em punho. -Esta aqui logo vai revelar o desafio.

—Olhem ali! -Gritou Ezerk, apontando para um morro que ganhava vida.

—Trasgo. -Concluiu o necromante. -Não posso fazer muita coisa contra ele, mas, quando o matarem, levarei a alma dele comigo.

—O bicho é gigantesco, como vamos matá-lo, Targus? -Perguntou Miragem recebendo ombros como resposta.

—Por dentro. -Decidiu Ezerk. -Cícero e Miragem, confundam a mente dele; Bruxas Siamesas e Targus, cubram os dois; Urak e eu vamos entrar e causar um estragos.

O trasgo lembrava muito um gorila. Apoiava-se nos nós dos dedos e tinha os caninos inferiores a mostra, os braços eram maiores e mais fortes que as pernas.

Com a ajuda de Cícero, os dois bárbaros foram postos sobre os ombros do trasgo. Poucos momentos depois, e a criatura aparentava sinais de loucura, perseguindo inimigos que só ela via.

O general e o líder do clã se aproveitaram de um urro da fera para saltarem boca a dentro, Urak levando, com um golpe de seu martelo, alguns dentes do animal na entrada. Uma vez no interior do monstro, não tardaram a derrotá-lo. Um corte de machado na traqueia, algumas marretadas nas paredes internas do estômago e o trasgo jazia quase morto, gemendo de dor.

Targus tomou para si a alma do monstro. Ezerk rasgou a barriga do bicho e passou pelo corte ao lado de Urak, imundos de sangue e secreções.

—Vejam, lá está o arco. -Indicou Targus, apontando para um ponto atrás do corpo.

Cruzaram a passagem e retornaram ao labirinto. Na segunda linha, quatro arcos os aguardavam.

—Vamos pelo segundo a partir da direita. -Escolheu o necromante.

—Espere! -Interpelou Cícero. -Como fomos burros! Posso perguntar a Hilda por onde seguir para evitar os perigos maiores.

—Cuide disso. -Disse Ezerk, sério.

O Feiticeiro Âmbar encheu os olhos com mana e voltou ao estado normal num estalar de dedos.

—Segunda da direita para esquerda. -Falou olhando para Targus, o necromante havia escolhido o caminho certo.

O portal os levou a um grande centro urbano quase inteiramente construído em vidro e metal. O lugar era de tirar o fôlego, era uma cidade gigantesca e avançada com a qual nenhum dos Guardiões estava acostumado. Não havia crianças nem velhos, todos as pessoas tinham entre vinte e quarenta anos. Todos feiticeiros e humanos, nenhum mestiço.

Apesar da diferença gritante entre os nativos e os forasteiros, nenhum alarme ocorreu, nem mesmo ao olharam Razatte e Luzabell com seus estranhos corpos unidos.

—Com licença, senhor. -Disse Cícero a um homem magro e elegante de pele negra e óculos retangulares. -Que lugar é este?

O homem não o respondeu, tampouco o ignorou. Esboçou um sorriso fraco, do tipo que se dá a alguém muito doente, depois tocou a orelha e os lábios e fez sinal negativo com a cabeça.

—Surdo. -Concluíram as Bruxas Siamesas.

—Acho que não, senhoras. -Disse Cícero às bruxas. -O senhor é feiticeiro? -Insistiu o telepata, recebendo um sinal positivo com a cabeça. -Posso ler seus pensamentos e descobrir onde estamos? -Outro aceno positivo.

Cícero não precisou vasculhar por muito tempo para descobrir onde estavam. Já conhecia o lugar através de histórias.

—Estamos em Aspro! -Exclamou e, notando os olhares de dúvida continuou: -Esta cidade é uma lenda viva! Ficava em Feltares, mas foi banida para outra dimensão. Os maiores telepatas do mundo vinham de Aspro até o exílio. -Terminou, triste.

—Por que foram banidos? -Perguntou Targus com sua voz fantasmagórica.

—Diz a lenda que todo nascido em Aspro era feiticeiro, que a cidade era o centro da raça humana, por muito tempo foi a capital de Feltares, e, por isso, era agraciada com essa dádiva e não existia mestiçagem em seus domínios. Os chefes da cidade, certo dia, resolveram depor o então Rei de Feltares tomar o Reino Humano para transformá-lo: os reis passariam a ser escolhidos pelos humanos puros e, com a sua morte, uma nova escolha seria feita de forma que o trono só ficaria com o príncipe caso os humanos o elegessem.

—Fascinante! -Interessaram-se Luzabell e Razatte.

—Uau! -Exclamou Miragem.

—Para isso, todas as mentes de Aspro foram conectadas através de um ritual cujo nome e procedimentos se perderam no tempo. A magia fora deveras traumática, e resultou na morte das crianças e dos idosos! O levante foi descoberto pelo rei da época, contudo a punição veio de outras mãos: a própria Morte ficou furiosa com Aspro pela bagunça causada com o óbito de tantas criaturas antes da hora premeditada. O demônio, então, sumiu com a cidade e todos os habitantes do mapa. Puff! Os asproanos que sobreviveram ao ritual são, agora, condenados a uma vida eterna.

—Isso não é tão ruim. -Disse Targus. -Eu estou vivo há quase trezentos anos.

—A história não para por aí! -Continuou Cícero. -A mente, tão valorizada por eles, é agora a única forma de comunicação. Os cidadãos de Aspro se esqueceram completamente da comunicação verbal, não conseguem nem mesmo pensar em palavras ou elaborar um sistema de sinais corporais que as representem, como fazem os surdos. O máximo que conseguem é nos entender, mas não podem nos responder de forma verbal.

—Ora, então como conversam? -Indagou Ezerk, interessado.

—Eles projetam na mente de seus interlocutores imagens ou ações, como se apresentassem uma peça de teatro!

—Isso não explica o porquê de não existirem crianças ou idosos aqui. -Lembrou Urak. -Os antigos faleceram durante o ritual, mas e as novas gerações?

—Os asproanos foram tornados imortais e isso os levou à esterilidade. -Explicou o Feiticeiro Âmbar. -Estas são as mesmas pessoas que viviam na Aspro Antiga da época do exílio.

Ao fim da explicação de Cícero, o homem se curvou em uma reverência. Na mente de todos, pôs uma imagem de si próprio com uma coroa sobre a cabeça. Em seguida, a figura tirou a coroa e dividiu-a em centenas de outras que foram parar sobre a cabeça de todos os outros cidadãos. Todos eram reis e rainhas em Aspro.

Ao fim da transmissão dos pensamentos do homem, todos entenderam que ele havia sido o mentor do levante que resultou no exílio da cidade.

—O senhor é Daedin? -Perguntou Cícero recebendo um sorriso entusiasmado como resposta. Era triste saber que nem o próprio nome os asproanos lembravam. Daedin era importante e por isso o seu nome estava documentado, mas, e os demais asproanos?

Cícero resolveu igualar a conversa com seu anfitrião. Falavam agora telepaticamente. O Guardião mostrava a Daedin uma imagem do arco que funcionava como portal e, em seguida, de si mesmo atravessando-o com o restante do clã.

Daedin compreendeu, já havia visto o portal. Conduziu-os animadamente, apontava para as pessoas e paras as construções de vidro enquanto disparava na mente dos visitantes informações sobre ambos. Cruzaram algumas avenidas e logo chegaram ao destino.

O arco estava pousado onde terminava os domínios de Aspro, ao fim de uma estradinha de terra que dava para um precipício infinito. Para além do fim da cidade, o que se via era um céu noturno e muito estrelado, o rubro Satélite Raus e, de vez em quanto, um cometa de cauda brilhante, apesar de ser sempre dia em Aspro e haver, inclusive, a Astral sobre eles. A noite só existia do precipício em diante.

Um a um, o clã inteiro cruzou a passagem sem medo de despencar no vazio. Cícero parou ao lado do arco e, antes de ganhá-lo, projetou na mente de Daedin a imagem de que um dia voltaria a Aspro. O homem sorriu e acenou, despedindo-se, felicíssimo por ver alguém diferente depois de sabe-se lá quantos anos isolado do resto de Zaatros. Daedin, bem como os outros asproanos, não podia deixar a cidade. Atravessar o portal era impossível para eles.

 

—O primeiro da direita. -Disse Cícero aos outros assim que pisaram na encruzilhada de portais. Estava ansioso para voltar a Aspro e conhecer novas técnicas de telepatia. O Feiticeiro Âmbar era um dos poucos nascidos mágicos que resolveram focar em uma só área quando a maioria dos feiticeiros pratica qualquer técnica mágica.

Pisavam agora em uma geleira, Ramavel, sem dúvida. Era noite, o vento gelado doía na pele tal qual doeria uma chicotada. Os anões do clã, Miragem e Ezerk, sofriam mais que os outros.

Uma nevasca começou a soterrá-los, então, as Bruxas Siamesas abriram um grande buraco no paredão de gelo e, sem perder tempo, todos mergulharam buscando se proteger. Uma vez lá dentro, as irmãs trataram de fechar a abertura criando uma grossa parede de gelo na entrada e deixando uma pequena abertura para que não sufocassem.

—E agora? -Perguntou Miragem, mau humorada, batendo os dentes de frio.

—Já passamos por duas portas, vamos vencer esta também. -Encorajou Urak.

—Senhoras, o que acham que podemos enfrentar aqui? -Indagou o anão às Bruxas Siamesas.

—Não faço ideia de algo que consiga viver nesse frio. -Responderam elas, juntando as mãos e criando uma bola de fogo cada uma. -Acho que deve ser só uma travessia. O que a cigana diz, Cícero?

Cuidado com o mar. É o caminho, porém um caminho perigoso. Um será salvo em detrimento de outro.—Respondeu ele. -O que isso pode significar?

—Parece que a cigana não sabe tudo, afinal. -Dispararam, venenosas, as bruxas.

—Ao contrário. -Discordou o telepata. -Ela sabe, nós é que não podemos saber. O que me incomoda é ver tudo que ela sabe e não conseguir interpretar… é como se fosse claro, mas eu não soubesse montar.

—Acho que o arco está do outro lado do mar. -Arriscou Miragem.

—Seria uma travessia enorme, acho que está submerso. -Disse Urak, aos calafrios.

—Eu posso procurar a passagem sozinho e volto para buscá-los assim que encontrar. -Ofereceu-se Cícero.

—É um caminho perigoso, está lembrado? -Disse Targus.

—Sem divisões. -Decretou Ezerk.

 

Juntos, os Guardiões deixaram o abrigo e desceram a geleira até a beira da praia congelada. Elaboraram um plano para evitar o frio: campos de força. As Bruxas Siamesas transportavam Miragem em sua bolha; Targus, Ezerk e Cícero, Urak.

Avançaram sobre a água congelada e, a certa distância da terra, racharam o gelo e afundaram as três esferas de energia. Nada foi encontrado a princípio. Perderam mais de uma hora vagando de um lado para outro na água glacial até que, enfim, partindo de uma fossa, um som os chamou à atenção. Pareciam vozes, mas não falavam. Era como se cantarolassem, lembrava um coro seguindo a voz de seu corifeu.

Da fissura, brotaram os donos das vozes: tritões e sereias; lindos todos eles. Vieram um a um, com suas vozes doces e seus rostos simpáticos.

Existem muitas raças diferentes de sereianos, a maioria é pacífica e convive com os humanoides da superfície, outros são tímidos e os evitam, mas há também raças agressivas e ainda canibais. Estes, como os demais humanoides, eram bem diferentes uns dos outros; havia ali sereias e tritões com todos os tipos de cabelos, olhos, estaturas, peles e, é claro, escamas. Todos possuíam muitas joias: brincos, braceletes, colares; alguns usavam roupas de tecidos diáfanos e brilhantes, outros, porém exibiam seus corpos nus sem titubear sob o olhar invasivo dos forasteiros.

Num estalar de dedos, as três cúpulas de energia foram cercadas por um grupo de vinte sereianos, dez machos e dez fêmeas. Não é preciso dizer que eram agressivos.

Contudo o clã ainda não havia percebido. Estavam extáticos com a visão daqueles seres belíssimos de corpos perfeitos dançando diante de si. Os sete Guardiões das Chamas foram seduzidos e transportados sem resistência ao fundo da fossa.

Lá foram guiados, ainda sob efeito de sedução, por uma galeria de túneis submersos que, por fim, desembocavam em uma câmara seca, onde tiveram os campos de força, bem como a hipnose desfeitos, mas não sem antes serem algemados.

Na pedra, diante deles, estava a rainha. Ela não precisava estar na água o tempo inteiro, era a única capaz de transformar a cauda de sereia em pernas humanas, embora esta forma a deixe mais frágil. Trajava apenas tiras de tecido verde-esmeralda que lhe cobriam os seios e a genital. Os cabelos de cachos firmes e avermelhados emolduravam um rosto ao mesmo tempo pacato e feroz, de lábios bem desenhados e nariz reto e fino.

Pôs-se a falar e o clã então percebeu que era dela a voz de maior destaque entra as outras.

—O que procuram em meus domínios? -Indagou ela. Seu sotaque era muito marcado.

—Estamos aqui só de passagem. -Respondeu Ezerk. -Buscamos um portal esculpido em pedra que nos levará de volta para casa.

—Outros me disseram isso. -Rebateu ela e, apontando para o teto alto da caverna submarina: -Alguns deles mentiram e estão ali.

Os olhos dos prisioneiros se voltaram para cima e vislumbraram infinitos cadáveres congelados. Alguns mutilados e outros completamente desfigurados… o cheiro do lugar só se mantinha agradável devido ao gelo que recobria os corpos e os impedia de apodrecer.

—Eu insisto, majestade, não procuramos conflito… não com a senhora, nem com seu povo.

—Faremos um trato então? -Sugeriu ela, caminhando diante deles como se escolhesse qual deveria atacar primeiro.

—Estou aberto a negociar. -Rebateu Ezerk sob o olhar de reprovação de Targus.

—O meu companheiro faleceu há alguns meses… -Disse ela, demorando o olhar sobre Cícero. -Bem, o que proponho é o seguinte: você e o seu amigo de olhos amarelos vão ficar aqui comigo. Você como prisioneiro e ele como amante.

Cícero se inquietou, mas manteve a postura.

—Os demais podem ir. Serão escoltados até o arco e vocês dois ficarão aqui como reféns… se algum deles pensar em me trair, os dois morrem. Depois que forem embora, eu devolverei os dois dentro de um dia.

—Por acaso haveria uma segunda opção, majestade? -Ousou Ezerk.

—Morte a todos, exceto ao rostinho bonito. Algo me diz que ele tem grande potencial para a realeza. -Disse ela, com um sorriso malvado e excitado.

—Bem, já que não há outro meio… -Concordou Ezerk. -Queira ao menos nos dizer seu nome?

—Eu me chamo Halts. -Disse, sentando-se sobre uma pedra e massageando os pés. Em seguida deu a ordem para que os súditos levassem os estrangeiros até o arco e Ezerk para a cela em seu idioma sereiano.

Ficou a sós com Cícero. Mergulhou na água gelada e puxou-o para dentro também, sem soltá-lo das amarras.

—Não está feliz em ter sido o escolhido da rainha? -Perguntou Halts, olhando no fundo de seus olhos cor de âmbar e enroscando a cauda nas pernas do feiticeiro para que não escorregasse e se afogasse.

—Eu estou com medo, admito. -Disse ele.

A rainha riu e afastou os cabelos dele de cima da orelha, aproximou-se e sussurrou com a voz mais atraente que Cícero já ouvira: -O perigoso é sempre mais libidinoso. -E, logo depois, mordeu de leve sua orelha.

Cícero, resistindo, tentou mudar o rumo da conversa: -Como seu rei morreu?

Halts soltou um risinho tímido e contagiante, Cícero acabou acompanhando sua risada.

Ela se aproximou novamente da orelha do feiticeiro, mordiscou-a algumas vezes, enquanto desabotoava o manto dele, e disse: -Eu o matei e comi.

 

—Estava tudo indo bem e agora estamos com dois homens a menos! -Esbravejou Urak. Estavam de volta à encruzilhada de passagens.

—Eles não estão mortos, voltarão amanhã. -Tranquilizaram-no as Bruxas Siamesas. -Por nós, ficaremos aqui e esperaremos até que retornem.

—Apoiado! -Disseram os demais.

—Muito bem, faz tempo que não dormimos. -Concordou o general. -Montar acampamento, pernoitaremos por aqui, eu estou mesmo exausto. Um guarda por turno, Targus começa.

 

***

 

Cena VI – A extinção dos Jardais.

19 horas em ponto. Reino Elfo – Eyrell. Castelo Real.

 

—Alteza, o jantar está servido. -Disse Nyra batendo à porta do quarto de Hélio. -Mas, se preferir, posso pedir para trazerem para que coma aqui…

Hélio não respondeu e Nyra abriu a porta devagar.

—Ainda não jantei, se quiser companhia eu po…

A frase nunca chegou a ser completada. Nyra dera de cara com Hélio morto; o pescoço transpassado por uma seta, o arco curto na mão e os olhos sujos de lágrimas.

 

***

 

Cena VII – O Retorno.

23 horas e 30 minutos. Reino Gigante – Ramavel. Pátio Sagrado.

 

Diante da escultura de Harkuos, Veneza Quendra chorava, clamava e se desculpava pelo que havia feito e pelo que haverá de fazer.

 

—Minha Deusa, me parte o coração ser forçada a desobedecer vossas ordens, porém não posso permitir que invadam o reino sob meu governo e minha proteção. Tenho de proteger os ramavenos.

Andou de volta ao palácio, era incomodo tocar o chão, achava-o imundo e sentia-se suja, ainda que estivesse usando sapatos. Trancou-se no quarto e desceu a escada em caracol, uma passagem secreta, para além dos porões reais. Ali sim havia um verdadeiro arsenal mágico, há muito esquecido pela realeza.

Ainda possuía o Anel Bélico, infelizmente o Aura Petrificante havia sido roubado pelo ninja.

De uma das prateleiras empoeiradas, retirou uma garrava grande contendo algo luminoso dentro. Destapou-a e diante dela escapou uma fada. O pequeno humanoide a rodeou rapidamente e tocou-lhe a testa, desaparecendo em seguida. No mesmo instante Veneza sentiu o mana retornar ao corpo, fraquíssimo se comparado ao que possuíra antes, mas o suficiente para ser maga. Voltar a ser feiticeira jamais seria possível, mas, por sorte ou por instinto, Veneza estudava magia sempre que podia; conhecia muitos feitiços e o pouco mana dado pela fada seria o bastante para eles.

Andou mais um pouco e se deteve ao encontrar um manequim adornado com um bracelete em cada braço, uma tornozeleira em cada perna e uma gargantilha grossa no pescoço. Tratou de pôr o primeiro bracelete no braço direito e acioná-lo; sobre a pele, dos dedos até o ombro, placas de metal surgiram… simulavam seu antigo poder. Vestiu o restante e sua armadura de aço retrátil estava completa.

Andou até uma pequena arca dentro da qual havia contidos muitos anéis. Selecionou cautelosamente um a um os efeitos que desejava: superforça, voo, proteção telepática e fogo para a mão esquerda; gelo, raio, teletransporte e seu velho Anel Bélico para a direita. Só os polegares permaneciam sem anéis.

—Ao fim da guerra eu juro nunca mais tocar em magia, minha Deusa... mas, até lá, minha honra e de meu povo precisam ser protegidas!


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