A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 20
Capítulo 19




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Octogésimo quinto dia do segundo mês, ano 7302.

 

Cena I – Principiantes.

14 horas e 12 minutos. Reino Humano – Feltares. Praça das Runas.

 

Com o clã das Dragonesas diluído, Meline não tinha muito com o que se ocupar. Praticava magia sempre que podia, contudo os resultados eram mínimos. Técnicas acima do nível dois apresentavam grandes complicações para a maga.

Ela, como todos os dias desde a liberação da magia para não-feiticeiras, fora à Praça das Runas.

Meline caminhou entre os adornos de pedra, procurando uma runa em especial. A Runa Natureza lembrava bem fielmente a forma de uma maçã, estava gravada em uma das árvores de pedra, acima de um buraco que havia no tronco oco. Ali, no furo, ela deixou uma flor roxa salpicada de pintinhas brancas. Ela mesma a criara.

A maga era observada por um rapaz havia alguns minutos, sem notá-lo. Fazia cinco dias que isso vinha acontecendo. Então ele finalmente resolveu ir até Meline:

—Olá! Você estuda magia?

Meline se virou, desconfiada, e disse:

—Sim… quem é você?

—Ah, que falta de modos. Eu me chamo Franco e também sou um iniciante em magia.

—Franco? Como o príncipe? Bem, eu sou Meline, prazer em conhecê-lo.

—Como o príncipe? -Repetiu ele abafando o riso. -Ninguém me reconhece mais sem a coroa. Eu mudei tanto assim? Sou eu o príncipe.

A maga estreitou os olhos, encarou o rapaz por alguns segundos e depois os arregalou, surpresa.

—Pela Deusa! Perdão, alteza, não o reconheci. Deseja alguma coisa de mim?

Franco sorriu outra vez. Quando o fazia, quase todos os dentes vinham à tona. Era dono de um sorriso muito cativante.

—Deve ser o cabelo. -Comentou ele. Havia mudado o corte havia dois dias. Substituíra os cabelos longos por um novo corte: baixo nas laterais e mais comprido em cima, desarrumado. -Bem, não exatamente… eu sou um iniciante em magia, como já disse, e gostaria de ter alguém no mesmo nível com quem praticar.

—Mas eu não conheço muitos feitiços de combate. Por que, entre tantas pessoas, escolheu a mim? E por que vossa alteza acha que sou iniciante? -Perguntou ela, de nariz em pé.

—Não precisa me chamar de alteza, isso é tão chato. Parece que sou um velho! Olhe, eu tenho vindo aqui todos os dias e você também. -Começou o príncipe. -E, pelo que notei, você me parece uma principiante também.

—Tudo bem, e qual área vossa alte… você escolheu seguir? -Meline sentia certo desconforto ao falar com alguém da realeza, mesmo que Franco a tratasse de igual para igual.

—Gelo. -Respondeu, mostrando o Anel Geada. -E você, Natureza, certo?

—Certo. -Meline, sem ter uma arma mágica, soltou o crisântemo encantado dos cabelos e o mostrou a Franco.

—Que bonito! Posso tocar?

—Pode tentar… ele se chama Cris, é um pouco arisco, tenha cuidado.

Meline pôs a flor nas mãos em concha do príncipe e ele acariciou suas pétalas brancas e macias.

—Como pode ser arisco se é tão delicado? Falou como se ele fosse um cachorro bravo. -Disse ele rindo.

Lentamente Cris liberou as quatro vinhas e as enrolou, prendendo os braços do rapaz.

—Olhe! Acho que é um abraço! -Exclamou ele.

—Eu não sei não… -Falou Meline, preocupada. -Cris, venha.

O crisântemo não deu ouvidos. Enrolou completamente os braços de Franco e começava a pressioná-los com força demais.

—Meline, acho que não é um abraço! -Disse, se sacudindo na tentativa se livrar da flor.

—Fique calmo! -Pediu Meline, em pânico. -Se ele não liberar os espinhos vai ficar tudo bem.

—ESPINHOS?! -Franco gritou. Os olhos estavam arregalados e ele tentava decidir se o mais prudente seria esperar os cipós afrouxarem ou arrancá-los dos braços a dentadas.

A essa altura, a pressão começava a deixar marcas na pele do príncipe.

—Não morda! -Advertiu a maga quando Franco tentou levar uma das vinhas à boca. Ela pôs as mãos sobre a flor, pressionando pontos específicos. -Quando eu fico irritada ou nervosa, perco o controle sobre Cris. E falar com um príncipe deixa todos da plebe nervosos… é uma relação muito delicada. -Então as ramas afrouxaram e a flor soltou o rapaz.

—Como educou uma planta para agir como animal? -Perguntou ele, passando as mãos pelos braços doloridos.

—Eu não sei bem, foi um acidente. Um dia Cris estava num vasinho, no outro encantado para prender meu cabelo, e depois estrangulando inimigos. -Disse Meline com muito orgulho apesar de não ter noção do que fez para chegar ao resultado final.

—Assim tão depressa?!

—Não, não. É só um resumo.

—Você gostaria de duelar comigo durante uma das minhas aulas? -Convidou Franco.

Meline queria dizer sim de cara, afinal, era um príncipe pedindo! Não que fosse interesseira, nem pensava nessas coisas de namoricos ainda, porém, a proximidade com essa outra face da moeda lhe é tentadora. Ter acesso a toda a informação dos livros do palácio...

—Talvez… -Limitou-se Meline a dizer depois de um breve silêncio.

—Entendo. Permissão dos pais.

—Da minha irmã mais velha, no caso. Sou órfã.

—Ah, perdoe-me… se eu soubesse…

—Não tem problema. -Cortou a maga. -Você não tinha como saber. -Terminou com um sorriso fraco. -Foi um prazer conhecê-lo, alteza. -Falou ela fazendo uma mesura ao se levantar. -Preciso ir.

—Igualmente! Encontramo-nos amanhã aqui?

—Amanhã não posso. Daqui a dois dias, mesmo horário? -Indagou ela.

—Mesmo horário! -Confirmou o príncipe.

 

***

Cena II – Traição.

15 horas e 04 minutos. Reino Elfo – Feltares.

 

Àquela altura, Tamires já sabia da tragédia. A perda da filha devastou a clériga de tal forma que não existiam mais lágrimas para serem choradas, embora os soluços continuassem. Na garganta, permanecia uma secura, a cabeça doía, os membros tremiam e as olheiras se encovavam. Quando soube, gritou e chorou muito, atraindo a atenção dos vizinhos. Negou todas as visitas. Quando batiam à porta, ignorava como se também estivesse morta, então o inconveniente curioso se cansava e ia embora.

Quem transmitiu a notícia foi Darius. Urak estava na mesma situação que a esposa, não havia ânimo para viver. Não havia ânimo nem mesmo para existir.

Não que Darius estivesse melhor, mas alguém precisava dar o aviso. Razatte e Luzabell teleportaram o ladino para dentro da casa da irmã. O elfo corria o risco de haver alguém mais além de Tamires lá e ser denunciado e, ainda assim, fez questão de dar a má notícia cara a cara, na medida que os desmaios da mãe da criança e o choro dele permitiam…

A “visita” aconteceu pela manhã. Agora, estirada sobre a cama, Tamires só fazia sofrer. Acabou vomitando o nada que existia no estômago, vazio desde o jantar da noite anterior. Pedia vorazmente por piedade não sabia exatamente a quem... fossem aos Deus Ancestrais ou a Harkuos, para ela, naquele momento cruel, ninguém parecia dar ouvidos. Mero equívoco induzido pela situação.

Tamires, a humana mestiça, filha de pai elfo e mãe humana… um teste seria descarregado sobre ela. Uma verdadeira prova de fidelidade:

Do piso de madeira clara e muito bem encerada, escapou um chiado. Tratava-se, na verdade, de um sibilo de cobras. A mulher tampouco se importou. “Que me devorem”, pensou, “Ao menos estarei livre deste sofrimento”.

O primeiro réptil abriu caminho aos demais, afastando uma tábua mais frouxa perto do pé da cama. Em alguns segundos, o piso de todo o quarto estava repleto de serpentes, a maioria delas com escamas vibrantes em cores quentes. Se o que aconteceu até então não pode ser classificado como sobrenatural, o que veio em seguida, sem dúvida, pode. As cobras rastejaram em uma só direção, embolando-se umas nas outras ao som incessante dos próprios sibilos e, daquela amalgama, um novo corpo ia tomando forma. Só então Tamires tirou o rosto exausto do travesseiro para dar atenção à estranha movimentação dos animais em seu quarto.

—Não é bem-vinda aqui. -Disse ela, com a voz fraca carregada de uma vontade forte. -Não foi chamada aqui, saia!

A criatura completou a transformação naquele momento: um corpo gordo, uma cobra musculosa de escamas alaranjadas terminando, em uma das extremidades, na cauda que portava um ferrão e, na outra, em uma forma feminina. Era um ser medonho. Possuidor dois rostos em uma só cabeça, um no lugar natural e o outro onde deveria existir a nuca. Eram cobertos por máscaras brancas e inexpressivas. No pescoço, muitos colares de ouro, nos seios, a única roupa a cobri-los eram tiras de pano. Os braços estavas às costas, pareciam esconder algo que o monstro segurava. O corpo humanoide terminava na linha da cintura, onde começava o ofídio.

A besta soltou um risinho irônico, carregado do mesmo chiado, antes de falar:

—Não oralizou o convite, porém pensou. -E, rastejando pelo cômodo, pegava as fotos e as examinava como se fossem suas. -Que me devorem. Ao menos estarei livre deste sofrimento. Foi exatamente o que pensou.

Tamires, vencida, manteve-se quieta.

—Entretanto, devo dar-lhe os parabéns! -Sibilou a mulher-cobra de duas caras. -Conhece as leis e tentou me banir. Sem dúvida estudou bem sobre as divindades e não só sobre Harkuos.

—Você não é uma divindade, demônio! -Esbravejou Tamires ainda sentada sobre o colchão.

—Não, não sou uma deusa. Embora eu, assim como meus irmãos, seja sim uma divindade. Renegada, mas sou. -O ser prendeu o objeto que escondia em algum ponto na parte de trás do cinturão que vestia, removeu as duas máscaras ao mesmo tempo e deixou escapar, com efeito, uma gargalhada arrastada e chiante. O rosto (ou rostos) era de uma moça jovem e bonita, de traços delicados, nariz fino. Cabelos curtos na altura dos ombros, acajus. -Venho oferecer ajuda. Suponho que saiba quem eu seja, já que conhece o processo de banimento, não?

—Traição…

—Ah, esse nome soa muito… como posso dizer? Pejorativo! -Passava a língua bifurcada pelos lábios a todo momento. -Prefiro, Trapaça.

Seguiu-se então um longo silêncio no qual ambas sustentaram o olhar; o único som vinha do arrastar do demônio sobre a madeira. Estudavam-se, tramavam como desmantelar a outra. Aquela mudez marcava a vontade compartilhada das duas: fulminar a outra com os olhos até que não restasse nem o pó. Tamires séria, Trapaça sorridente.

—Bem, já que não fez a gentileza de perguntar o que tenho a oferecer, tomarei a liberdade de contar mesmo assim. -Parou. Levou novamente as mãos às costas e agarrou o objeto desconhecido com os dedos de unhas compridas. -Venho fazer uma troca. O segredo para pôr fim a guerra antes que se inicie, pelo teu maior segredo, o mais oculto. -Novamente a gargalhada, desta vez histérica e exagerada. -Conte-me aquele… o que apodrece teu coração, sangra tua mente e tortura tua alma!

—Não possuo isto e, mesmo que possuísse, não faria acordos com demônios.

—Quanto egoísmo! Mas eu gosto… hum, sinto um pouco de mentira aí também. -Trapaça rastejou para mais perto. -Quanto egoísmo, trocando a vida de milhares por um interesse particular.

—Você é a manifestação corporal da traição, um dos seis demônios de Zaatros. Espera mesmo que alguém tão esclarecida quanto eu sucumba as suas armadilhas por estar enfraquecida por uma perda? Trair-me-á no primeiro segundo que puder. Apunhalar-me-á por trás com essa adaga que esconde atrás das costas. Não desperdice meu tempo e não perca o seu. Saia!

O monstro mudou novamente de forma. A parte humanoide, antes feminina, era agora masculina. A imagem de um homem musculoso e bonito, com olhar invasivo e provocante. Ainda com duas caras.

—Talvez esta face lhe seja mais entorpecente do que a anterior… -Falou em uma nova voz, máscula, baixa e tentadora. -Deixe-me tentar convencê-la outra vez.

—FORA! -Gritou. No pescoço, uma veia martelava furiosamente. -Já tentou me persuadir de várias formas e eu resisti a todas. Você, Traição, está efetivamente banida deste lugar pelas leis sacras que regem não só a mim, mas a você também. Está expulso desta casa, demônio.

A fisionomia de mulher voltou. As duas faces agitaram a língua bifurcada enquanto a cauda sacudia o esporão e, desfazendo-se em centenas de serpentes e escapulindo pela tábua solta, foi-se embora.

 

Sentia-se melhor depois de resistir, mas também sentia culpa. Se tivesse proibido Kira de ir com o pai, nada disso teria acontecido…

 

Mal sabia ela, mas, se Kira não fosse, Tamires teria dois lutos em vez de um para carregar: o marido e o irmão.

 

***

 

Cena III – Duplo Presságio.

15 horas e 09 minutos. Reino Kvarbrakoj – Kaotheu.

 

O mestre dos ciganos entrava apressado no palácio. O mesmo que havia falhado antes ao deixar passar o presságio de traição. Sua pele, muito bronzeada, era engeada como um maracujá velho. Os tribais dos quatro braços nem se distinguiam no meio de tantas rugas e manchas de idade.

Rei Néfor não estava no salão do trono, então reportou-se à rainha:

—Majestade, Rainha Julee, foi detectado um duplo presságio!

Maya escovava os longos cabelos ruivos confortavelmente esparramada em seu trono. Olhou-o por breves instantes e tornou a pentear-se dizendo:

—E então?

—Há uma grande perturbação na magia. A estátua da Feiticeira Louca ressurgiu esta manhã. -Falou devagar, mas transparecia preocupação. -Nossos mágicos identificaram a inquietação sobre o mar, partindo de Ramavel em direção a Ruthure. Os Gigantes iniciaram os ataques!

—Hum, e do que se trata? -Perguntou a rainha, agora interessada no velho cigano.

—Nada concreto foi achado, lamento, minha rainha.

—E quanto ou segundo presságio?

—A escultura da Serpente Marinha está completamente visível do lado noroeste dos Jardins de Areia. Este ano, a temporada das chuvas chegará mais cedo.

Bastou o homem terminar a sentença para que um raio fosse ouvido ao longe.

—Informarei Rei Néfor. Algo mais?

—Não, majestade.

—Pode se retirar. Mantenha segredo sobre as previsões, não quero pânico.

—Sábia escolha. Com vossa licença… -E deixou o salão.

 

—Piano! -Gritou a rainha.

Uma ave fina e comprida de cauda longa entrou voando por uma das janelas do alto. As penas eram douradas, assim como o bico curto e pontiagudo.

Maya, então, estendeu o braço inferior esquerdo como poleiro para o pássaro. Piano aterrissou ali e bicou-lhe a pele, abrindo um pequeno corte. Esfregou o bico dourado no sangue, o qual se coloriu completamente com um vermelho luminoso.

—Leve esta mensagem ao Rei Néfor. Vá!

Um bater de asas e um pio agudo depois e a ave desaparecia outra vez pela janela.

 

***

Cena IV – Dispersando a Nuvem.

16 horas e 38 minutos. Reino Elfo – Eyrell. Sede da Salvaguarda Legítima.

 

O informe da espiã estava correto. -Falou César a todos os presentes. -Na madrugada de ontem, nossa infiltrada em Ramavel nos alertou sobre um possível ataque mágico aos anões que estava para ser votado pelos gigantes.

—Hoje pela manhã, tornamos a fazer contato com a agente e ela nos confirmou a aprovação. -Acrescentou Ônix. -Uma tempestade artificial criada magicamente foi lançada em direção a Ruthure e deve atingir o reino dentro de dois dias, segundo os especialistas.

—A questão é a seguinte: -Disse César, tomando novamente a palavra. -Devemos vazar a informação para que os ruthuranos se protejam ou permitir o ataque na tentativa de resguardar a identidade da espiã?

—Por favor, quem for pró vazamento do informe erga a mão e apresentem um motivo. -Pediu Ônix.

Rainha Maya, Rei Henrique e sete outros participantes sem grandes cargos fora dali aprovaram. Maya ficou com o discurso:

—A espiã assumiu no ato da nomeação total responsabilidade por sua segurança e está mais do que qualificada para se proteger e, caso não consiga, tem o direito de renunciar e voltar ao seu reino de origem. Agora, pessoas morrerão se a tempestade atingir Ruthure desprevenido. A informação deve vazar para que tenham, ao menos, tempo de soarem um alarme de evacuação.

—Obrigado, Rainha Maya. -Agradeceu César. -Contra o vazamento, por favor ergam as mãos e deem um motivo.

Os reis Juan e Zadell e a Rainha Tenniza e outros participantes optaram pelo sigilo.

—Não duvido da aptidão da agente, contudo ela é uma contra todo um reino. Será linchada no Pátio Sagrado de Harkuos como herege, traidora e sabe-se lá mais o que. -Falou Juan. -Devemos interferir e parar a nuvem nós mesmos sem divulgar o informe da espiã.

Muito bem, agradeço ao Rei Juan pelas palavras. -Ônix contabilizava os votos enquanto César tomava nota dos motivos. -Abstenção, apresentar motivo por favor.

Nyra se levantou para discursar. Os olhos de Rei Henrique a acompanhavam, só ele sabia quem ela era de verdade.

—Preferi me abster de votar por não conhecer qual é o objetivo da nuvem. -Começou a duende. -Creio que informar Ruthure refletirá em um ataque ramaveno a nossas posições. Convivi com Rei Danan durante a última reunião da União Real e posso garantir que ele não tem nenhum problema em subjugar as pessoas… -Nyra parou de falar, tentava organizar os pensamentos antes de dizê-los. -Em contrapartida, nos calar agora implicará violar o acordo desta aliança, será saber da aproximação de uma ofensiva e ignorá-la. Mudo meu voto de abstenção, voto pelo vazamento da informação.

Os demais envolvidos que ainda não tinham votado foram divididos: a maioria preferiu continuar sem votar e um pequeno grupo mudou a escolha para o vazamento.

—Muito bem. Vitória para a razão de Rainha Maya. -Falou Ônix com certa energia. Torcia secretamente para que a informação fosse entregue. -Vazaremos nossa descoberta sobre a nuvem de tempestade agora mesmo.

 

***

 

Cena V – Vazamento.

17 horas em ponto. Reino Anão – Ruthure. Palácio Real.

 

Então os covardes ramavenos pretendem nos soterrar em neve e granizo para poderem invadir e devastar Ruthure, não é? -Riu-se Rei Rujavo. Falava sozinho, debruçado sobre uma mesa, com o planisfério de Zaatros aberto sobre ela. Havia recebido a mensagem por contato telepático. -Infelizmente para eles e felizmente para nós, a Salvaguarda Legítima possui um infiltrado e graças a ele agora sabemos de tudo! -E pôs o dedo indicador sobre o desenho de Ramavel. O papel liberou um fino filete fumaça e então enegreceu, tornou-se cinzas e Rei Rujavo as soprou.

 

***

 

Cena VI – Suspeitas.

17 horas e 05 minutos. Reino Gigante – Ramavel. Sala do Trono, Palácio Real.

 

—Alguém entre nós é um informante, Rei Danan. -Disse Aço Voador. Carregava nos olhos uma expressão de pura raiva. Apesar de ter a habilidade gigante de ocultar as emoções, a feiticeira preferiu mostrá-las.

—Eu soube. -Respondeu Danan. Ao contrário da feiticeira, ele mantinha o semblante neutro, embora explodisse por dentro. -Fora alguém presente no jantar. Tem alguma ideia de quem seja?

—Posso estar errada, porém desconfio da humana. Dóris Tartaza, a filha adotiva do casal Efinm. Chegou a Ramavel há poucos dias.

—A Salvaguarda Legítima é uma aliança da qual os feltaranos fazem parte, ela é realmente uma potencial traidora. -Danan passou a mão pelo queixo com ar de quem maquinava algo. -Pode se retirar. Diga ao Príncipe Ledrone que quero lhe falar umas coisas.

—Sim, majestade.

—Fique de olhos abertos a possíveis deslizes, não só de Dóris, mas também dos outros presentes no banquete. O traidor não dará indícios se for um gigante, contudo Dóris Tartaza não possui esse poder de mascarar emoções. Faça-a se apavorar e o corpo a trairá. Seja sutil…

—Sutil, meu rei, é algo que não nasci para ser. -Retorquiu ela. -Agora, estrategista… bem, em meus poucos séculos de vida aprendi a dominar todas as áreas da magia; umas mais, outras menos, não importa.

—Onde quer chegar? -Indagou Danan, transparecendo interesse.

—Peça ao príncipe que a seduza. Isto vai dar brecha para eu fazer algo que quero há muitos anos; algo que interessará ao senhor também, diga-se de passagem e, deste modo, reforçaremos a confiança dos ramavenos em mim e na minha proteção a este reino.

—O que planejas? -Quis saber o rei. Muito desconfiado.

—O futuro não pode ser contado assim ou se altera o resultado que se busca atingir. Confie em mim, ao fim da semana vossa majestade será um rei, no mínimo, três vezes mais famoso!

 

***

 

Cena VII – Pseudo-Aurora.

18 horas e 09 minutos. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

 

—Malditos covardes! -Queixava-se Ezerk. -Nem ao menos uma declaração formal de guerra. Miragem!

—Senhor…

—Está pronta para fazer o que pedi?

—Estou. Siga-me.

Os dois anões caminharam para fora do prédio. No pátio, havia um dragão vermelho enorme. Tratava-se de Garras em sua mais nova forma.

—Faça. -Mandou Ezerk.

Miragem apenas voltou os olhos para a criatura e a transformou em outra através de seu ilusionismo. O dragão vermelho, o semideus, era agora um dragão azul, um deus. As escamas reluziam em um azul metálico bastante espelhado e os chifres, antes cor de osso, estavam prateados, assim como os dentes.

—Uau! -Exclamaram Ezerk e Manu, que montava o dragão.

—Não poderão montá-lo, ele agora é uma divindade. Ao menos em fingimento. -Alertou Miragem.

—Ela. -Corrigiu Manu. -Garras é fêmea.

—Jura? Nunca reparei. -E desfez a ilusão. -Então quando ela estiver como dragão azul chamem-na de Aurora. Foi o nome que Harkuos deu ao dragão alado fêmea e, mesmo que abominemos essa farsante, devemos levar em conta que os Fiéis conhecem a criatura divina por esse nome.

—Perfeito. Ter um dragão azul ao nosso lavo deve equilibrar o jogo. -Disse Ezerk esfregando as mãos uma na outra como fazem os maquiavélicos.

—Quando a exibirmos, podemos frisar que libertamos Aurora do cativeiro no qual era mantida por Harkuos e receberemos apoio de todos os lados. Até alguns os gigantes devem cair no truque!

—É exatamente este o meu trunfo! -Sorriu o líder. E, ficando subitamente melancólico: -Mas em respeito à Kira, deixemos passar a cerimônia de despedida antes de recomeçar a agir.

 

***

Cena VIII – Sem Chuva no Deserto.

21 horas e 42 minutos. Reino Kvarbrakoj – Kaotheu. Jardins de Areia.

 

—Feiticeiras, eu as convoquei aqui para testar uma hipótese. -Começou Rainha Julee. Curiosamente, em Kaotheu, não existem muitos feiticeiros nem magos homens. Não que a magia seja restrita às mulheres entre os kvarbrakoj, mas os homens demonstram um grande desinteresse por ela. Normalmente os mágicos do sexo masculino se limitam à fabricação de armas mágicas para vendê-las posteriormente. -O Cigano Chefe me contou que há um preságio que aponta uma antecipação na estação das chuvas para o deserto kaotheno.

As feiticeiras estavam de pé, em semicírculo de frente ao rei e à rainha. Estava frio, como é comum nas noites desérticas e, embora todos ali vestissem roupas de tecidos finíssimos, não sentiam nenhum desconforto ao vento gelado.

—O velho cigano comunicou a minha rainha a existência de dois presságios simultâneos: o primeiro sobre um distúrbio mágico enorme em Ramavel que, de tão intenso, pôde ser sentido aqui em Kaotheu. O outro sugere que este ano as chuvas chegarão mais cedo aqui. -Falou Rei Néfor.

—Nesta tarde, tivemos acesso privilegiado a uma informação a qual dizia que Ramavel lançou sobre Ruthure uma nevasca. A nova aliança entre Eyrell, Oroada e Feltares descobriu de alguma forma os planos de Danan e seus gigantes. -Completou Julee, afastando uma mecha de seu cabelo ruivo da boca enquanto o vento chicoteava a todos. -Logo, podemos ter certeza de que a tal nuvem também passará por aqui. A missão das senhoras é bloqueá-la a qualquer custo. -Exigiu Julee. -Entendido?

—Sim, senhora, majestade! -Disseram as feiticeiras em uníssono, curvando-se em uma reverência e agitando as pulseiras que usavam.

 

***

 

Cena IX – Pesar e Despeito.

Octogésimo sexto dia do segundo mês, ano 7302.

Meia-noite e 15 minutos. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

 

Novamente havia um elfo sentado sobre a mureta de proteção do terceiro andar. Agitando as pernas e observando a terra metros abaixo. Darius tentava não pensar na sobrinha/afilhada. Então uma voz o chamou:

—Darius… -Era Miguel. -Volte a dormir.

O ladino bufou baixo e o ignorou. Continuou de costas, sem nem ao menos encará-lo.

—Você está há horas sem comer. Vai parar de dormir também?

—E o que você tem com isso? -Rebateu, amargo.

—Nada… é você quem sabe. -O elfo-duende desapareceu.

 

Menos de um minuto depois, Manu, com Garras na forma de beija-flor, subiu as escadas em caracol:

—Sabia que o encontraria aqui. -Disse ele, com um sorriso fraco, sentando-se na amurada, ao lado de Darius.

—Gosto de sentir o vento daqui… e de ver o Raus e as estrelas. -A vista era mesmo bonita. O Satélite Raus estava em sua fase cheia. Brilhava bastante avermelhado no céu, rodeado por pontos também brilhantes.

—Percebi que você vem aqui quando há algo errado… sinto muita falta de Kira também. Convivi pouco com ela, mas era muito querida por mim.

O elfo expirou o ar com tristeza, apoiou a testa nas mãos e disse:

—Eu devia consolar Urak, mas, quando chego perto, pioro mil vezes. Não posso ajudá-lo nesse estado.

—Eu entendo.

—E também não consigo olhar para Hilda sem odiá-la! -Falou ele, cortante. -Ela sabia o que aconteceria.

—Sim, e, embora pareça maldade dela, não foi. Primeiro porque Kira sabia dos riscos ao entrar para o clã, poderia ser qualquer um no lugar dela. -Ao olhar furioso que o elfo dirigiu ao seu dono, Garras mudou para forma de coelho e saltou sobre as pernas dele. Funcionou, Darius a acariciava e isso o deixava mais calmo. -Segundo porque, no futuro onde abortaríamos a missão, nós seriamos perseguidos pelo dragão e ele mataria um a um. E você seria o último da lista… viveria para ver a ruína de todos nós.

Darius não acreditava. Ficou amuado, pensando em uma saída para aquilo e então:

—Isso é o que ela diz, com certeza é mentira.

—É o que Cícero me mostrou da mente dela. -Retorquiu Manu.

O silêncio caiu sobre os dois por muitos minutos até que Manu resolveu quebrar o gelo:

—Para mim, a culpa é de Miguel. A tapeçaria estava pronta, o destino do clã traçado nela e nós interferimos pondo-o para dentro da missão. As linhas do tempo devem ter entrado em colapso, colidido, ou sei lá o que.

—Por que essa perseguição a ele? -Perguntou Darius, irritado. -Eu fui quem ele mais agrediu e , ainda assim, consegui perdoá-lo. Por que você não pode?

—Não confio em alguém que trocaria a cabeça do irmão por um monte de ouro! -Contra-atacou Manu, igualmente aborrecido. -Você não faz ideia do que Cícero e eu passamos com medo de que fosse morto.

—Cícero também o perdoou. -Acrescentou o elfo.

—Não sou uma ameaça. -Defendeu-se Miguel, desfazendo a invisibilidade. -Já disse que foi efeito da Maldição Quendra e essa propriedade de fazer os irmãos se digladiarem pode ser anulada.

—Escondido! Ouvin… -Começou Manu.

—Darius anulou na infância a que existia entre Tamires e ele. -Interrompeu o ninja, elevando a voz para superar Manu. -Eu anulei durante minha captura a que existiu entre mim e Darius.

—É verdade, Manu. -Confirmou Darius. -Ainda não somos grandes amigos, mas aquele ódio assassino se foi.

—Você sabe o que eu acho de tudo isso! -Manu pulou para o chão e caminhou apressado para a escada, fervendo. -Espero que entenda o que está fazendo comigo, Darius! -Ralhou ele. Darius não compreendeu exatamente do que falava. -Vamos, Garras. -Chamou e desceu.

Miguel sentou-se ao lado do irmão. Ali ficaram calados até que o ninja se cansasse e fosse embora, deixando o ladino sozinho, lembrando de como Kira era feliz e de como se tornou uma heroína quando matou o dragão.

Da escada, ele disse: -Quando quiser conversar, estarei aqui para ouvi-lo, irmão. -E se foi.


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