Contramão escrita por Lua Reyna


Capítulo 5
Capítulo 4 - N


Notas iniciais do capítulo

Eu tinha combinado comigo mesma que só postaria capítulo novo quinta, mas sou uma pessoa muito ansiosa.



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Depois de toda a confusão com a Summer e seu pai na noite passada, eu mal parei para pensar se iria, ou não, aceitar o convite de “N”. Na verdade, ao menos mencionei as mensagens para Noah. Esse assunto sempre o deixava irritado, e eu não queria que ele se estressasse com isso novamente.

— O que aconteceu com o seu livro? — perguntou Noah enquanto tomávamos o café da manhã em uma maravilhosa – e sem trabalho – manhã de domingo. — Nunca mais te ouvi falar sobre ele.

— Estou dando um tempo. — Era mentira, mas se eu contasse para Noah sobre o que eu estava escrevendo ele iria me matar.

— E aquela história toda de publicação e tudo mais?

— Sem pressa, jovem padawan. — respondi, fazendo referência a Star Wars. — Uma hora vai acontecer.

— Você está estranha. — comentou ele, enquanto se distraía jogando Nintendo Ds. — Aconteceu alguma coisa ontem? Tirando a Summer pelada, claro.

— Muito engraçado, Noah. Você é hilário.

— Sabe o que eu acho? Que ela gosta de ti.

— O que? — disse, rindo. — Não pode existir uma pessoa no mundo mais hétero que ela.

— Mas é impossível não se apaixonar por você! Olha que moça educada e bondosa você é. — respondeu ele, ironizando. — Se quer saber, eu estou apaixonado por você. Não queria que soubesse dessa forma, Noelle. Mas você é o grande amor da minha vida.

— Eu viraria hétero por você, Noah. Mas infelizmente meu coração pertence a outra pessoa. 

— Que ser sortudo seria esta, capaz de conquistar o coração da dona mais bela de toda a cidade?

— Esse é o segredo. — disse, enquanto me levantava da mesa. — Mas se quer mesmo provar o seu amor, tem uma pia bem ali cheia de louça pra lavar.

Ele revirou os olhos, enquanto eu me trancava no quarto para voltar a escrever o livro em que estava trabalhando secretamente.

Felizmente, toda aquela confusão havia me dado uma inspiração imensa para desenvolver o capítulo. As palavras iam saindo como se já estivessem escritas a muito tempo, e eu só estivesse registrando-as.

Escrever aquela história causava uma sensação de alívio, e ao mesmo tempo nostalgia. Contar para mais pessoas o que realmente havia acontecido era uma coisa que eu vinha pensando em fazer a muito tempo, mas não fazia muito tempo que eu tinha resolvido deixar meus outros projetos de lado e focar apenas nesse.

Ao mesmo tempo, era difícil colocar em palavras tudo o que tinha acontecido. Eram tantas sensações e sentimentos que tinha uma chance imensa de ficar algo genérico se não escrito direito, por isso eu geralmente deixava para fazer os capítulos em momentos de pura inspiração.

Naquele dia eu realmente havia conseguido fazer um bom trabalho, modéstia parte. Era como seu tivesse tirado um peso das costas depois de terminar aquele capítulo.

— Noelle! Estou indo trabalhar. — gritou Noah, pouco antes de eu escutar o barulho da porta batendo.  

Encarei o relógio de parede que ficava pendurado no meu quarto, eram 20:34. Eu precisava decidir se iria ou não ao encontro de “N”.

Pensei em fazer uma lista de prós e contras, pedir conselhos em alguma rede social ou algo do tipo. Mas eu sabia que aquela decisão teria que ser única e exclusivamente minha. Era a minha vida.

Haviam se passados tantos anos... Eu realmente ainda aguardava rancor de N?

— Tudo bem. — disse para mim mesma, enquanto pegava um casaco no armário. — Uma conversa. Depois disso eu não preciso voltar lá.

Sabe quando você toma um choque sem perceber e fica com vontade de chorar mesmo sem ter doido? Era exatamente como eu estava me sentindo naquele momento. Não estava doendo reencontrar N, mas havia sido tão de repente que eu passei o caminho inteiro com vontade de chorar.

O ônibus estava cheio naquele horário, então as pessoas não estavam prestando muita atenção em mim. Por isso me dei ao luxo de fechar os olhos, encostar a cabeça na janela e imaginar o que iria acontecer quando eu chegasse.

— Caramba, Noelle! Quanto tempo! — gritou uma menina me despertando do meu transe temporário.

Demorei alguns segundos para reconhecer quem era e quando o fiz, o meu único pensamento foi: Puta merda!

— Brooke! — respondi, tentando parecer animada em revê-la. — O que faz em Newquay? Pensei que tinha se mudado.

— Eu tinha, voltei fazem poucos dias. — respondeu ela, com um sorriso de orelha a orelha. — Como está o Noah?

Brooke era uma menina muito bonita. Alta, magra e possuía um sorriso simplesmente incrível. Sua pele era negra e seus cabelos eram estilo Brack Power. Além disso tinha um corpo tão perfeito que chagava a dar inveja. Ela trabalhava como modelo, principalmente em campanhas que davam visibilidade a pessoas transexuais. Mas ela tinha um grande um problema: Ela era o problema.

Noah e Brooke passaram dois longos e melosos anos namorando, até que certa vez, eu, Noah, Patrick e ela fomos em uma festa e bebemos muito. Então no dia seguinte Noah a encontrou nua no seu quarto... Isso seria uma coisa maravilhosa, se Patrick não estivesse no mesmo estado.

Não a culpo, mesmo. Patrick sempre foi afim dela e naquela época eles brigavam que nem cão e gato, então já era de se imaginar que algo do tipo iria acontecer. Mas Noah é cabeça dura e eles brigaram feio, então terminaram e Brooke foi seguir sua carreira de modelo em algum lugar bem longe de Newquay.

Eu sabia que sua volta para a cidade iria deixar Noah completamente pirado, principalmente pelo fato de ele ainda não ter esquecido ela. Não que ele admita isso, é claro. Além do que, com certeza isso iria geral mais brigas entre ele e Patrick.

— Noah está bem. — respondi, enquanto sofria antecipadamente pelas brigas que eu teria de separar. — E você? Como foi a experiência em...

— São Paulo. — completou ela. — Foi muito bom! O Brasil é incrível, mas infelizmente tive que voltar. Vou ficar uns tempos em casa.

Ficamos conversando pelo resto da viagem. Brooke, ao que parecia, tinha muito a falar sobre sua experiência no Brasil e sobre sua fantástica carreira. Eu apenas pensava na confusão em que eu estaria metida daqui a alguns dias, quando Noah e Patrick descobrissem que ela estava de volta à cidade.

— É o meu ponto. — avisei, levantando-me para descer do ônibus. — Foi bom te reencontrar, mande um beijo para a sua mãe.

Observei o ônibus até que ele sumiu de vista, tentando tomar coragem para percorrer o caminho que percorria todos os dias quando voltava da escola quando era mais nova. Passei pela lanchonete em que saia com meus amigos, pela ponte que íamos observar o rio, até pela escola. Depois segui caminho até a igreja e virei na rua em que N morava. Em que eu morava.

A sensação de estar lá depois de sete anos era estranha, principalmente por saber que tudo tinha mudado. A lanchonete havia fechado, e agora era apenas um estabelecimento vazio. A ponte não estava mais cheia de adolescentes como era quando vínhamos aqui, a escola havia se tornado uma creche e a igreja parecia incrivelmente acabada se comparada com quando eu era menor.

O tempo parecia ter passado sem eu ao menos perceber, e tudo mudou. Por um segundo desejei voltar a ter quinze anos e não ter a mínima noção do que o futuro iria me trazer. Desejei não ter me envolvido com as pessoas erradas e não ter feito as escolhas erradas. Desejei, ao menos, ter entrado na faculdade e ter conseguido me formar como sempre foram os meus planos.

Mas então me lembrei das escolhas erradas que eu tinha feito, e pensei que elas não poderiam ter sido mais certas.

Toquei a campainha assim que cheguei no local, desejando imensamente sair correndo e voltar para casa como se nada daquilo houvesse acontecido. Meu coração estava acelerado e minhas mãos estavam tremendo.

Foi o momento em que eu percebi que a palavra “casa” para mim tinha um outro significado. Apesar de eu ter vivido naquele lugar, a única imagem que rodeava a minha cabeça era o meu minúsculo apartamento caindo aos pedaços e o meu melhor amigo.

Uma senhora apareceu na porta, então veio andando lentamente ao meu encontro. Ela não havia mudado nada.

Tia Natalie possuía a pele clara, e até um tanto pálida. Sua aparência estava cansada, como se não dormisse a dias. Os cabelos grisalhos estavam presos em um coque alto e um tanto bagunçado, e ela trajava um roupão e pantufas.

— Noelle. — disse ela assim que me viu. —  Podemos entrar?

A segui até a sala de jantar, repassando memórias na cabeça e coisas que haviam acontecido dentro daquela casa. Eu me sentei no sofá, enquanto ela estava na poltrona.

Observei o quanto a casa continuava exatamente igual. O mesmo papel de parede florido, o carpete surrado e os porta-retratos coloridos espalhados por todas as paredes. Eu esperava que ela tirasse minhas fotos dos quadros e as substituísse por outras, mas, ao que parecia, todas elas permaneciam intactas.

Notei uma foto que ficava em cima da mesa, perto dos enfeites. Havia sido tirava no meu primeiro dia de aula do ensino médio, e eu estava com um sorriso de orelha a orelha.

— É a minha preferida. — comentou ela, quando percebeu que eu encarava a foto. — Você estava tão nervosa...

— Que coincidência, hoje eu também estou bastante nervosa. — disse baixinho, torcendo para que ela não escutasse.

— O que disse? — perguntou, me encarando. Então soltou um sorriso bobo e um suspiro. — Ah, não importa.

— Por que me chamou aqui? — questionei. — Vamos direto ao assunto.

— É um assunto um tanto... complicado.

— Tenho tempo. — Era mentira. Precisava chegar em casa antes que Noah voltasse do pub.

— Eu estou doente, Noelle. — disse ela, com os olhos marejados e a voz rouca. Ela parecia forçar cada palavra, como se tentasse ao máximo esconder de mim o que estava prestes a dizer. — Eu sei que o que fiz foi horrível, mas você é a única pessoa que eu tenho. Não poderia morrer sem ter o seu perdão.

Naquele momento, todas as lembranças do tempo em que passei naquela casa voltaram à tona. Mas não as coisas ruins, e sim as boas. O tempo em que ela cuidava de mim como se cuidasse da sua própria filha, quando passava remédio nos meus machucados e passava noites em claro quando eu ficava doente.

— Morrer? — perguntei, pasma. — Tia Natalie, do que está falando?

— Os médicos disseram que eu tenho poucas chances de sobreviver. — disse ela, enquanto lagrimas escorriam pelo rosto. — Eu te chamei aqui pra dizer que...

— Eu te perdoo — interrompi-a sem pensar. Não podia mais aguentar vê-la naquele estado. Ela parecia... fraca.

— Noelle, eu quero que me escute. Passamos por muitas coisas desde os primeiros anos em que você veio para cá. Eu sei que não foi fácil para nenhuma de nós, principalmente quando nossas diferenças se mostraram tão grandes. Eu não queria aceitar o fato de você ser... diferente, mas eu nunca quis te magoar.

— Tia Natalie, eu não... — tentei interrompe-la. Dizer que, apesar de doer relembrar, eu não guardava rancores do que ela havia feito. Mas ela continuou a falar.

— Eu menti quando disse que você não era minha filha, e menti quando disse que você estava doente.

Doía lembrar das palavras dela. Doía saber que ser quem eu sou havia me tirado o pouco que havia sobrado da minha família. Por um lado, eu ainda sentia raiva de tudo o que ela tinha me feito passar. Por outro, eram seus últimos dias de vida. Tê-la por perto era importante para mim, por mais estranho que parecesse.

 Eu não queria acreditar que aquilo estava acontecendo. Eu não queria ter que dizer adeus novamente pra mulher que cuidou de mim depois de toda aquela tragédia ter acontecido. Eu não queria aceitar que havíamos perdido tanto tempo até eu finalmente tomar a iniciativa de responder aquela mensagem.

Tia Natalie era uma pessoa difícil de se conviver. Apesar de sempre querer o meu bem, ela costumava ser um tanto exagerada e controladora. Tudo para ela tinha que beirar a perfeição, e na minha época de adolescência isso era extremamente irritante. Brigávamos bastante por esse motivo, e por ela ser muito ligada a religião.

No início isso não havia chegado a ser um problema, mas com o tempo, o fanatismo religioso da minha tia havia me privado de inúmeras coisas. Eu sabia que ela era uma pessoa boa. Eu sabia que se ela se esforçasse um pouquinho mais ela entenderia o meu lado, mas chegamos a um ponto em que não havia escapatória, eu não podia continuar naquela casa.

Até que tivemos a nossa última briga. Até que ela me expulsou oficialmente.

Não era obrigação dela cuidar de mim mais.

No dia em que eu sai por aquela porta com meia dúzia de roupas em uma mochila e algumas notas que eu havia economizado caso algo acontecesse, eu havia dito adeus para ela, e por mais doloroso que havia sido reencontrá-la, eu não queria passar por esse adeus novamente.

Julia,

As imagens que passavam na minha cabeça naquele dia eram as do dia em que ela me adotou, quando eu me recusei a chama-la de mãe e ainda assim ela me tratou como se fosse sua filha.

 Tudo o que eu queria no momento era ouvir a sua voz dizendo que tudo ficaria bem, mas como isso não era possível eu apenas chorei, abracei minha tia e adormeci junto com seu corpo frágil enquanto a ouvia sussurrar que me amava. Eu precisava daquele momento.


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Notas finais do capítulo

Não sei vocês, mas eu tenho uma relação de amor e ódio com a Tia Natalie hsuahsuashu



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