Samuel escrita por Moonpierre


Capítulo 1
Samuel


Notas iniciais do capítulo

Estava há muito tempo querendo escrever essa história... e finalmente ela saiu (e parou de atormentar) minha mente.
Se quiserem deem uma lida, e me deixem suas opiniões :)
Beijos ♥



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É primavera. O dia está calmo e o doce aroma das flores se espalha pelo ar.

—Samuel! — a ouço gritar ao longe, correndo ao meu encontro, minha pequena criança — está bem? — ela sorri, já perto de mim. 

Faço um "sim" com a cabeça, sorrindo. 

—Você não deveria estar indo para a escola, Eliza? — a questiono.

—Hoje tenho matemática — ela faz uma carinha de tristeza — você sabe que odeio matemática. 

Coloco a mão no ombro dela. 

—Pelo menos terá pera hoje de lanche — tento encorajá-la — você ama peras. 

—É verdade. Só que odeio matemática.

—Você vai poder pegar alguns livros na biblioteca. Isso é legal, não? 

—Essa é a parte mais legal da escola! — ela se anima um pouco — melhor do que somar. Odeio contas. Odeio. 

Dou uma gargalhada.

—É claro que odeia.

Vejo o garoto, um pouco mais velho, andar para perto de nós.

—Eliza! Não fuja novamente de mim! — ele esbraveja — não se esqueça que sou eu que estou tomando conta de você! Por que você sempre vem para esse parque? Está conversando com seu amigo imaginário de novo? 

—Ele não é imaginário! — a menina protesta — pare de chamar Samuel de imaginário. 

—Está tudo bem Eliza — passo a mão no cabelo dela — não me importo de ser chamado de imaginário. 

—Mas você é real — ela sussurra. 

—Sim, eu sou. Só que vá para a escola. Você não pode atrasar seu irmão. Ele tem prova hoje, esqueceu? 

—Ainda bem que ainda não tenho provas — ela sorri. 

Então os vejo se afastar de mim, e um novo dia começa. 

***

Carros correm pela ponte, o calor é infernal agora ao meio dia. O tempo louco do Brasil. Nunca me acostumo a ele. 

Um homem, de terno e gravata, com as duas mãos apoiadas na grade de segurança da ponte, observa a altura. Ele pode pular a qualquer momento. 

Me aproximo dele e me sento no chão.

—O que vai fazer? — indago, não querendo assustá-lo ainda mais. 

—Vou pular — ele diz resoluto, sem rodeios — perdi todo meu dinheiro! Minha empresa faliu! 

—E isso é um bom motivo para pular? — inquiro.

—Você é um mendigo. Não venha dar pitacos nos meus motivos! — ele se enraivece.

—O dinheiro não é a coisa mais importante do mundo. Você tem família, não tem? Esposa e filhas? — continuo sem me importar com a raiva dele. 

—Eu falhei com elas — lágrimas caem dos olhos dele  — vou ter de vender a casa! Não posso nem garantir um futuro a minhas filhas. Sou um fracasso.

—Ora homem, pare de se lamentar! Sei que está é uma situação ruim, mas vai passar. Já pensou em outras alternativas? Com seu grau de ensino elevado você pode conseguir um bom emprego. Não será como patrão, mas ainda assim ganhará muita grana. 

—O que você sabe sobre emprego? Dinheiro?— ele solta, me olhando estupefato — por que não quer que eu pule? Você não tem nada a ver com minha vida, mendigo. 

—É verdade. Não tenho nada a ver com a sua vida. Tampouco tenho experiência com esses assuntos econômicos. Só que você acha certo fazer suas filhas e sua esposa sofrerem com sua morte? Eu não acho. Sei que no fundo, no fundo, você sabe que está fazendo a coisa errada. E deixa eu te avisar: não há volta. Depois que se morre, está morto. 

Ele se afasta da grade da ponte e se senta perto de mim. 

—Tudo bem. É só que me sinto um fracasso, sabe? Eu não tinha muito estudo em administração antes de abrir aquela empresa, e, acho que foi por isso que faliu. A culpa é toda minha. 

—Não se culpe tanto. Pode ter tido muitas razões para não ter dado certo. Já pensou que pode ter dado errado, justamente porque Deus está planejando coisas maiores para você? — digo, pensativo, olhando-o diretamente nos olhos. 

—Não acredito em Deus. Para mim, ele é só mais um mito que as pessoas inventaram com o objetivo de  aumentarem a confiança na vida. 

—Entendo. Só que mesmo assim, às vezes as coisas dão errado. Depois se ajeitam, e talvez, deem mais certo no futuro. Tenha mais confiança homem! Não se lamente pelo que foi perdido. Lute para conquistar o que deseja. 

Ele concorda de um jeito mudo. 

—Qual é seu nome? — me questiona com curiosidade. 

—Meu nome não importa. Me chame de S, caso queira. 

—Muito obrigado, S. Você salvou minha vida. Agora preciso ir para a casa, quero abraçar minhas filhas. 

E ele se vai.

***

Estou na padaria, perto dos policiais, tomando um bom café expresso. 

—A violência em São Paulo está cada dia maior — comunico a eles, depois do noticiário apontar mais um assassinato na TV do estabelecimento. 

—É verdade, meu filho — diz carinhosamente o policial gordinho chamado Luis —  a maldade humana é tão difícil de ser combatida! — ele profere, com derrota. 

—Essas leis do nosso Estado são pífias. Mandamos um bandido, ou um assassino, para a cadeia e eles ficam lá poucos anos. Voltam ainda piores. E o ciclo da violência continua — declara Gustavo, que come rosquinhas com seus colegas de trabalho.

—Pior. As leis são seletivas. Os grandes bandidos brasileiros nunca são presos — Benjamim, o mais velho, toma um gole de seu suco de laranja.

O rádio de Luis toca e ele o atende, dizendo com grande atenção:

—Sim, claro, estamos a caminho.

Suspiro em alívio.

Os atrasei. Era para isso que estava aqui.  Agora devo ir para a loja onde está ocorrendo o assalto noticiado pelo rádio para esses policiais. 

—Tchau Samuel! Muito prazer em conhecê-lo! O dever nos chama! — Luis se despede. 

—Muito obrigado pelo suco, Deus lhe pague! — Benjamin salta do banco alto. 

—Tenha fé que essas leis irão melhorar. Um dia nosso país ficará melhor — Gustavo abre um sorriso — como é bom ter jovens interessados na política, isso é raro. Nunca deixe de ser assim. 

***

O clima é tenso. 

Dois bandidos com as faces ocultadas por máscaras pretas estão apontando suas armas para Nicolas, um cara jovem e temperamental, em sinal de rendição. 

 Coloco minha mão no ombro do jovem, tentando acalmá-lo. 

"Nicolas, você não pode correr para cima deles e desferir vários golpes de kung-fu como planeja. Eles estão com armas", penso, tentando deixá-lo lúcido. 

A vantagem de se estar na forma invisível é não ser notado pelos algozes, contudo, ainda assim ouvido pelas vítimas. 

Percebo na expressão dele a dúvida. Ele parece estar entendendo que não pode competir com armas de fogo.

O som da sirene do carro da policia está logo ali na esquina. 

—Me passe o dinheiro — o ladrão mais alto esbraveja com uma voz grosseira.

—Tudo bem — Nicolas inspira — vou passar. Só me deixe pegá-lo aqui na caixa registradora.

Então ele agarra as notas de 100, de 50 e de 20 reais, e as traz para o balcão.

—Vá mais rápido — fala o outro, impaciente.

—Tudo bem, tudo bem— Nicolas começa a ficar com raiva, e tenta não demonstrá-la. 

Eu o entendo. Realmente. É muito comum ficarmos irritados quando nos roubam algo de direito.

Só que esses ladrões têm muito sangue nas mãos. Não vale a pena Nicolas ser mais uma mancha vermelha em suas fichas corridas de latrocínios. 

Ele se apressa, indo o mais rápido que pode. 

Os policiais invadem o estabelecimento. 

—Parados aí! — comunica Gustavo. 

Todos eles têm suas armas apontadas para os bandidos.

—Abaixem as armas — um bandido se vira e aponta o revolver para Gustavo — ou meu amigo aqui vai atirar nesse vendedor!

O outro bandido nem se moveu um milímetro, a arma ainda na direção de Nicolas.

Os policiais não abaixam as armas. Sabem que se abaixarem irão virar reféns também, o que só pode causar mais problemas. 

Em vez disso, um deles, o policial mais velho, atira na cabeça do bandido que apontava o revólver para Nicolas e ele cai rapidamente. Morto. 

Uma manobra arriscada. 

—Abaixe a sua arma! — Benjamin rosna — ou vai morrer também. 

O bandido está assustado, então coloca a revólver no chão. 

Outro policial, Luis dessa vez, vai ao encontro dele, retira a máscara e coloca a algema em seus pulsos, o prendendo.

—Você tem direito de permanecer calado, tudo que você disser poderá e será usado contra você... — ele começa a repetir a tão famosa frase dos filmes. 

***

Entro na casa aconchegante da senhora Amélia, sem ser visto. 

A filha dela assa biscoitos, e prepara um chocolate quente. Ela me parece um tanto preocupada com a mãe, já idosa. 

Nenhuma delas tem sequer noção da doença que está a arrebatar a vida da doce Amélia. 

Câncer no pulmão. 

Elas nem foram ao médico ainda. Acham que deve ser algum vírus sem importância. 

Observo as fotografias nas paredes, os netos já um pouco crescidos, as comemorações de natal, as festinhas de aniversário...

Essa é uma família unida e feliz, e saber disso me torna um pouco mais alegre. É raro esse tipo de coisa. 

Atravesso o corredor para o quarto da senhora. 

Ela está acamada, tossindo muito.

Sento-me na cama, sobre a colcha de flores bonita. 

Passo a mão no braço de Amélia. 

Ela tosse mais uma vez, coloca a mão na boca, e dessa vez sai sangue. Um dos primeiros sintomas do câncer de pulmão.

—Catherine — ela tenta chamar a atenção da filha com a voz rouca — venha aqui.

A mulher, de aproximadamente quarenta anos, chega ao quarto da mãe, levando uma bandeja com biscoitos:

—O que aconteceu? — indaga, assustada. 

—Tossi sangue. O que pode ser? — a pobre senhora está desesperada.

—Temos de ir ao médico — a mulher fala com um tom de voz sério. 

—Você sabe que odeio hospitais. Não quero ir. 

—Você deve ir. Se fosse eu no seu lugar você me levaria em um hospital! Tenho certeza. 

—Tenho medo do que possa ser...

A filha dá um beijo na bochecha da mãe. 

Sei que tudo vai dar certo depois.

Especialmente porque o diagnóstico será precoce.

***

Ando pelas ruas de paralelepípedos, chegando perto da escola de Eliza. 

Já é hora da saída, e percebo a garotinha se desvencilhar do irmão. Ela não repara em mim, vira a outra esquina. 

Vou atrás dela. 

Ouço buzinas. Gritos. 

Quando me aproximo, a encontro estirada no chão. Sangue por toda parte. 

O motorista está aflito, a culpa o consumindo. Ele liga para a ambulância e quer o mais rápido atendimento. 

A menina cruzou o farol verde, e ele não conseguiu parar a tempo. 

—Eliza! — o irmão mais velho chora desolado — eu estava tomando conta de você.

Duas pessoas se sentindo extremamente culpadas. 

Me aproximo do corpo dela, e percebo sua alma se levantando. 

—Samuel! — ela fica feliz, sem se dar conta do cenário ao redor dela.

—Olá Eliza. Seu irmão está triste... — seguro ela no colo — quer se despedir dele?

—Quero. 

Pouso os pés dela no chão e a vejo indo para perto do irmão. Ela o abraça bem apertado. 

Ele não a viu, porém, sentiu o carinho.

—Temos de ir — digo a ela.

—Para o céu? Perto dessas nuvens fofinhas? — ela vira a cabeça para cima, curiosa. 

—Sim. Para o céu. Vamos, minha pequena. 

Saímos dali. Deixando a multidão de pessoas que se formavam ao redor do corpo, a infelicidade do irmão que soluçava, o motorista que se amargava em culpa. Todo esse sofrimento. 

Nos afastamos de tudo aquilo.

E fomos para um lugar melhor. 

Vocês podem indagar: por que não a salvou? E eu lhes direi: quando chega a hora da morte, não podemos impedir. Ela simplesmente chega. Mesmo assim, a situação me deixa abalado. Os bons parecem sempre morrer jovens. 

Eliza me via porque ela era uma criança com coração puro. Crianças, normalmente, avistam anjos. 

Mesmo eu sabendo que há tantos seres humanos ruins, vis e desprezíveis, há ainda aqueles que me fazem nutrir algum carinho pela humanidade. 

Um dia todo mundo terá um bom coração, pelo menos é isso que dizem os meus superiores. 

As pessoas me fascinam. Acho que ainda tenho esperanças no que elas podem se tornar. 

Esse é um pequeno trecho da minha história.

Sou o anjo Samuel. 

 


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