Espírito de Revolução escrita por GilCAnjos


Capítulo 34
O Major-General


Notas iniciais do capítulo

Bom dia, boa tarde e boa noite! Vamos ao novo capítulo! :)



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 — Você realmente conseguiu, seu doido de pedra! — saudou Clipper Wilkinson no dia seguinte, me abraçando logo em seguida.

 — Apenas por causa da sua mira — respondi.

 — Você é modesto demais. Sumiu a noite inteira, pensei que tinha morrido!

Sorri. Após matar Pitcairn no dia anterior, repetir o milagre que eu realizara para chegar até Moulton’s Hill não era uma opção, então tive de me contentar com me esconder entre as árvores na base do morro até o fim da batalha. De qualquer maneira os casacos-vermelhos teriam de deixar a colina: se vencessem, avançariam até Breed’s e Bunker Hill; se perdessem, provavelmente recuariam para Boston pelo mar. Minha esperança era de que a batalha fosse tão rápida quanto Lexington fora, e não se estendesse para o dia seguinte. Por sorte, essa esperança se concretizou.

Já havia anoitecido quando despertei, embora eu não saiba dizer se de fato dormi ou se apenas desmaiei na floresta. Caminhei pela agora abandonada costa da península, em direção à cidade de Charlestown. A julgar pelos casacos-vermelhos que vi patrulhando os arredores da cidade, eu já sabia quem vencera a disputa. Agora os britânicos dominavam ambas as penínsulas de Boston e Charlestown, mas as forças coloniais continuavam firmes em seu cerco a Boston, e foi em uma das tavernas próximas ao acampamento americano que encontrei o pretendente a Assassino.

 — O trabalho está feito — anunciei — Pitcairn está morto.

 — Eu soube. Tive esperança de que fosse sua obra. Uma história dizia que o rifle de um ex-escravo o atingiu, outra dizia que ele foi traído e empalado por um dos seus próprios soldados.

 — A segunda é verdade, não sei de onde a primeira pode ter vindo. Tive de me disfarçar para chegar até o Alvo.

 — Ah, bom, quase pensei que alguém tivesse roubado sua caça. — Ele gargalhou.

 — Charlestown foi perdida. O que acontecerá agora?

Ele ponderou por um instante, tomando um gole de sua caneca de cerveja.

 — Mantemos o cerco, o máximo que conseguirmos. Muito mais do que isso, não tenho certeza. Quando o comandante-em-chefe chegar, creio que tudo ficará mais claro.

 — Fala de George Washington?

 — O próprio. — Ele fez uma pausa. — Quer um pouco de cerveja? Eu nem costumo beber, mas depois daquela batalha...

Clipper fez uma careta e eu olhei em volta. Vários dos homens na taverna eram soldados com o uniforme azul do Exército Continental. Alguns estavam deprimidos, mas a maioria parecia tentar se alegrar com a bebida.

 — Os soldados não parecem tão abatidos quanto eu imaginei — comentei — Pensei que vocês tivessem perdido a batalha.

Clipper terminou o trago de seu caneco e retomou:

 — Isso tudo foi ontem, já tivemos tempo o bastante para o luto. Perdemos homens e terreno, sim. Mais de uma centena de mortos e outras três de feridos. A maior perda foi o Joseph Warren, que presidia o Congresso Provincial enquanto Hancock continua na Filadélfia. Mas o lado bom é que pra cada um dos nossos, os casacos-vermelhos perderam dois. E 19 oficiais foram mortos, incluindo Pitcairn. Essa batalha foi tão amarga para eles quanto para nós.

 — Isso não deveria diminuir a nossa tristeza — retruquei — Uma vida é uma vida, e vocês perderam uma centena.

 — Acredite, Connor, ninguém aqui está deixando o luto de lado só porque pra eles foi pior. Mas essa batalha trouxe algo a mais para o exército. Alguns poucos milhares de milicianos, pessoas comuns e guerreiros novatos defendendo suas terras, contra um número pouco maior de soldados muito mais bem-treinados, sob a bandeira do maior império do mundo. E mesmo assim demos uma batalha acirrada para eles. Mostramos que, apesar de tudo, também temos disciplina. Isso nos dá... nos dá...

 — Esperança? — Tentei adivinhar.

 — Isso. Esperança. Talvez tenhamos uma chance de vencer afinal de contas.

Um dia depois, mais uma pintura foi removida no porão da Fazenda Davenport. Após contar sobre Clipper Wilkinson e relatar todos os detalhes da batalha ao Mentor, continuamos a discutir enquanto almoçávamos um frango assado com batatas que Prudence havia cozinhado.

 — Não costumo dar preferência a recrutas com um partido... — Achilles iniciava. — Mas creio que o lado das colônias seria de fato o mais justo para nós. Esse seu amigo atirador pode ser útil, quero conhece-lo algum dia. — Ao que assenti, ele prosseguiu: — Mas sua abordagem foi estúpida mesmo. Parece que não aprendeu nada. Mas ao menos você concluiu a missão.

Franzi a testa, zangado. Não interessava o meu sucesso, ele sempre tinha comentários desagradáveis a fazer.

 — Matei o Alvo. Não está satisfeito, meu velho?

 — Ah, claro que estou. — Ele disse enquanto mastigava. — Estou te parabenizando, Connor! Mas e você? Está satisfeito?

Olhei para baixo.

 — Em suas palavras finais, Pitcairn alegou que buscava a paz. Ele disse que nunca pretendeu começar a guerra. Se isso for verdade, o plano dos Templários pode ser completamente diferente do que achamos.

 — Ora, mas é claro que ele iria querer lavar as mãos antes de morrer — respondeu com sarcasmo — Seria tão difícil de acreditar que ele disse isso justamente para te enganar?

 — Não seria, mas... O Congresso Continental oficializou as milícias rebeldes, transformando-as em um exército. E no seu topo, abaixo apenas de George Washington, Charles Lee é um dos quatro oficiais apontados para a patente de major-general. Lee está em uma ótima posição para realizar os planos templários, sejam eles a guerra ou a paz. Precisamos ir atrás dele antes que essa guerra se desenvolva e eles tomem a dianteira.

Achilles engasgou de leve em sua comida.

 — Isso é de fato impressionante. Mas não estamos em posição de ir atrás de Lee no momento. Você precisa agir onde mais precisam de você, Connor. Se você houvesse ido atrás de Charles Lee e seu pai antes, você não estaria em Lexington para alertar os reforços de que a batalha começara. Se não fosse por isso, o que teria acontecido àqueles soldados?

 — Eles não eram soldados ainda — comentei — Apenas homens e mulheres forçados a defender seus lares.

 — E não é por isso que você luta? Para defender seu povo? Sua causa é a causa dos colonos. Ao ajudar uma, você ajudará a outra.

 — Palavras encorajadoras para quem nunca perdeu uma chance de me chamar de idiota.

 — Não se engane, você continua sendo ingênuo. Mas não consigo evitar sentir algum orgulho pelo seu sucesso.

 — E por que eu deveria te dar algum crédito por ele?

O velho pôs o garfo de lado e ergueu as sobrancelhas.

 — Ora, então não dê! Mas antes, devolva o manto. E as lâminas, e dardos, e todos os anos de treinamento e conhecimento que lhe conferi. Devolva-os e suas palavras podem ter algum mérito.

Bufei.

 — Ou você pode admitir que estava errado! Que eu sou mais habilidoso do que você pensava.

 — Ah, garoto, por favor. Você matou dois homens, um deles mais vendedor do que soldado. Vai precisar de bem mais do que isso para me impressionar.

Aquele era o fim da picada. Levantei-me da mesa.

 — É isso mesmo, meu velho? Ou talvez devêssemos ir lá fora? Ficaria feliz em demonstrar a facilidade com que eu te...

Meu protesto foi interrompido por uma batida na porta. Achilles fez um sinal para eu atendê-la, e caminhei com passos pesados até a fachada. Quando abri a porta, encontrei um rosto familiar com um chapéu tricorne, poucos metros à frente de seu cavalo.

 — Connor! Como é bom revê-lo!

 — Igualmente, Sr. Revere. — Deixei a raiva de lado para mostrar educação ao visitante, cumprimentando-o. — Entre, por favor.

O ferreiro que se mostrara crucial na véspera das batalhas em Lexington e Concord deu um passo à frente. Achilles se ergueu da cadeira e lentamente se arrastou até ele.

 — Você deve ser Paul Revere. — Ele disse. — Achilles.

 — É um prazer enfim conhecê-lo, Mestre Davenport.

Os dois se cumprimentaram e Achilles sugeriu que ele se juntasse ao almoço. Paul disse que já comera, mas aceitou uma batata. Sentados à mesa, perguntei-lhe o que o trazia até a Fazenda.

 — Ah, eu vim lhe trazer um convite. Nosso bom amigo Samuel Adams gostaria da sua presença no Congresso Continental. — Ele disse, tirando uma carta do bolso de seu casaco.

Franzi a testa, pegando a carta. A carta não dava detalhes, apenas continha a assinatura de Adams após um breve convite.

 — Ele sabe que não sou nenhum político. Francamente, eu não seria uma escolha adequada para delegado.

 — Ah, não, Connor, não é nada disso. — Ele riu. — Adams tem alguns assuntos mais pessoais nos quais gostaria de sua ajuda. Infelizmente, ele não me deu detalhes, e sinto muito por ser tão vago. As últimas semanas têm sido uma correria tão grande, mandando mensagens de Philly a Boston, e de Boston a Philly.

 — A Filadélfia é um tanto longe. — Achilles comentou.

 — Connor pode usar esta carta para pegar carona numa das carruagens que partem do nosso acampamento. Voltarei para o exército logo mais, posso te acompanhá-lo se quiser.

 — Eu... não sei. Deixe-me falar um pouco com Achilles.

Ao que Revere assentiu, o Mentor e eu o deixamos sozinho na sala de jantar, e confidenciamos no escritório.

 — Você deveria ir. — Achilles logo começou. Aquilo me surpreendeu.

 — Como? Nós nem sequer sabemos do que isso se trata.

 — E honestamente, isso também não interessa, Connor. Você apenas chegou aonde chegou por causa da amizade de Adams. Foi pela proteção dele que você chegou à Destruição do Chá, a Lexington e a Charlestown, e se não fosse isso Pitcairn provavelmente ainda estaria vivo, e Johnson teria sido uma pedra ainda maior em seu sapato.

 — Mas temos negócios aqui em Massachusetts. Church ainda está à solta.

 — E se eu não me engano, Sam Adams era uma parte crucial do seu plano para chegar até ele, não? Admita, você precisa garantir o favor do homem. Ele começou a te ajudar porque estava em dívida comigo, mas hoje somos nós que estamos em dívida com ele. Viaje até a Filadélfia, faça o que quer que ele te peça, e se isso te trouxer para mais perto de Benjamin Church, ótimo. Entendido?

Movi a cabeça em aprovação. O Mentor começou a voltar à sala de jantar, mas logo se interrompeu.

 — Ou, se isso não te agradar... Charles Lee também provavelmente está na Filadélfia. Ignore minhas ordens, mande Adams aos infernos e vá atrás do general. A escolha é sua.

 — Eu sei o que fazer — repliquei, ainda irritado com que o Mentor havia dito mais cedo.

 — Bom! Não deixemos Revere sozinho. A Filadélfia te espera!

A cidade da Filadélfia era muito diferente das cidades que eu conhecera em Massachusetts e Nova York. As ruas de Boston tinham de contornar as diversas colinas sob as quais a cidade fora construída, e se adaptar ao espaço limitado da península acidentada. Até mesmo Albany, que em comparação parecia mais uma aldeia, tinha ruas irregulares em sua urbanização fluvial. Mas a Filadélfia fora construída em uma planície às margens do rio Delaware, com uma planta completamente quadrada. Suas ruas eram todas retas, sem nunca fazer uma curva ou desvio, e num relevo completamente uniforme. O mapa da Filadélfia era tão organizado que as ruas paralelas ao rio eram referidas por seus números, com a Primeira Rua sendo a mais próxima da água, e a Oitava Rua a mais distante.

Chegamos à maior cidade da Pensilvânia em pouco menos de duas semanas. Tal como Revere dissera, viajei num comboio que trouxera suprimentos ao exército, e fizemos apenas uma breve parada na cidade de Nova York.

O principal local de encontro do Congresso, a Pennsylvania State House, se encontrava bem ao centro da cidade, na rua Chestnut, entre a Quinta e a Sexta Ruas. Tanto o prédio principal quanto as suas alas laterais tinham dois pisos cada, mas o prédio ao meio tinha salões tão grandes que ele se destacava grandemente. Em seu topo, acima do segundo piso, se encontrava uma torre com sino.

Encontrei-me com Paul Revere, que havia viajado para sul antes de mim, na fachada do prédio e o acompanhei pelo amplo e iluminado saguão de entrada. Um corredor mais estreito se estendia à nossa frente, e uma escadaria em U se iniciava logo à nossa direita.

 — O Congresso está em sessão agora — explicou Revere — Dê mais alguns minutos, e eu chamarei Adams para você.

Sorri, em assentimento. Concedi um breve olhar a uma empregada que varria os degraus da escada, e se pôs de lado para dois homens subirem. Voltei-me novamente para Paul conforme adentrávamos o corredor.

 — Os membros do Congresso são pregadores tão ferrenhos da liberdade... Ainda acho curioso que, apesar disso, são escravos que fazem a limpeza do prédio.

 — Bem, não tenho certeza se são escravos ou apenas faxineiros. Mas sim, aqui na Pensilvânia o número de escravos é um pouco maior do que lá em casa, embora nem de longe tão grande quanto nas colônias do sul. É de fato uma pena.

 — Você não acha que o Congresso deveria lutar para mudar isso?

Ele deu de ombros, confiante.

 — Não só acho como sei que a escravidão vai mudar. Mas isso leva tempo, Connor. O fim da escravidão vai ter de vir gradualmente.

— Mas você acredita que todos no Congresso têm real vontade de mudar isso? Que eu saiba, vários de seus membros mais ilustres têm escravos. Thomas Jefferson, até o próprio comandante Washington.

 — E muitos mais. Mas no momento temos uma guerra para nos concentrar. Enquanto ela durar, a abolição terá de avançar em pequenas ações.

Chegamos à porta do salão do congresso. À frente de uma porta próxima um homem fazia carinho em um cão peludo aos seus braços.

 — Sendo assim eles poderiam começar libertando seus próprios escravos. Isso já seria uma pequena ação.

 — Um ótimo ponto, Connor. Benjamin Franklin se juntou às sessões alguns meses atrás, e soube que ele libertou todos os seus escravos há alguns anos. Rezemos para que mais homens do Congresso sigam seu exemplo.

 — E para que não sigam o exemplo do comandante-em-chefe, talvez.

Revere bufou, amigável.

 — Ora, Washington pode ter seus escravos, mas ele tem a cabeça no lugar certo. É um bom homem, um oficial habilidoso e, acima de tudo, humilde. Não consigo pensar em ninguém melhor para desempenhar a sua função.

Uma outra voz, de sotaque inglês, interrompeu:

 — Mesmo? Consigo pensar em vários candidatos mais adequados.

Quem falava era o homem com o cachorro. Ele tinha um rosto anguloso, com traços rígidos, e um protuberante nariz aquilino. Os cabelos eram puxados para trás da testa, mas o homem tinha volumosas costeletas. Sua aparência poderia ser intimidadora se não fosse o lulu-da-pomerânia lambendo-lhe o queixo. Mesmo depois de tantos anos, não precisei de um segundo olhar para reconhecer o homem. Paul Revere abriu a ele um sorriso sarcástico.

 — E assumo que com “vários candidatos” você esteja falando de si mesmo, não, general?

Ele se divertiu com a frase.

 — Culpado da acusação. Não sou um homem de falsa modéstia, Sr. Revere.

 — Claro. — Hesitando, Paul apresentou: — General, este é Connor, um amigo nosso de Massachusetts. Connor, este aqui é o major-general...

 — Charles Lee — interrompi, com uma voz morna.

Lee dirigiu-me um olhar de curiosidade genuína.

 — Nos conhecemos?

Torci para que Paul dissesse alguma coisa para que eu não precisasse responder, mas como ele não o fez, prossegui:

 — Eu... não esperava que você fosse se lembrar.

 — Certo... — Charles sorriu, e logo em seguida ergueu o braço. — Espere, espere, não me conte. Seu rosto não me é tão estranho, prometo que me lembrarei.

 — De qualquer forma... — Paul Revere retomou. — Não duvido de sua capacidade, mas o histórico militar de Washington também não é de se menosprezar.

 — Só se for em quantidade de derrotas. Rendeu o Forte Necessity logo na sua primeira batalha. Estava lá naquela desastrosa derrota de Edward Braddock em Monongahela.

 — Mas que eu saiba, você estava em Monongahela — adicionou Revere.

 — Como auxiliar do general Braddock, de fato, enquanto Washington estava no comando da retaguarda. Se os papéis estivessem invertidos, estou certo de que o destino da expedição seria outro. Depois daquilo Ticonderoga foi minha única derrota. Liderei tropas no forte Niágara e em Montreal, todas vitórias britânicas, de nada. Mas continuando, enquanto isso Washington perdeu um terço dos seus homens em sua campanha na fronteira da Virgínia. E, quando não recebeu a promoção que pensava merecer, marchou para Nova York em segredo numa tentativa falha de fazer-se útil quando a guerra já estava acabando, e nem me faça mencionar aquele desastre com os índios no lago George. Se aposentou do exército, se é que não foi na verdade demitido, e agora volta do meio do nada, esperando que nós acreditemos que ele não está enferrujado. Como chegou a essa posição não consigo conceber.

 — Foram mais de dez anos de paz, Charles, todos nós estamos enferrujados.

 — Eu não, oras bolas. Depois de acabar com os franceses por aqui, continuei lutando na Europa. Recebi menção honrosa em meu serviço contra os espanhóis em Portugal. E depois disso servi ao rei da Polônia, em diplomacia e em campanha contra o Império Otomano. — Ele levantou a mão direita, mostrando seus três dedos. — E só Deus sabe tudo pelo que passei nessa época. E quando largo aquele exército em nome de uma causa em que realmente acredito, o que recebo? Me torno o terceiro em comando, atrás de Washington e Artemas Ward. Como é que o seu Congresso continua cego ao valor que John Burgoyne e o Rei Stanislaw facilmente viram em mim?

O cachorro deu um latido contente enquanto seu dono o afagava atrás da nuca.

 — Ward e Washington também têm valor, general. Nosso exército é feito principalmente de homens do norte. Os soldados no cerco de Boston precisam ver Massachusetts representada por Artemas, assim como temos de representar as colônias do sul, caso queiramos sua aliança, e ter um comandante virginiano cumpre bem esse papel. Enquanto que você, bem, você é um inglês, Charles! São os seus compatriotas que estamos combatendo, você entende a ironia?

 — Você vê como uma ironia, eu vejo como uma porta aberta. Botar um inglês no comando mandaria uma mensagem de paz, de que podemos buscar uma ruptura com o rei, mas não necessariamente com a Grã-Bretanha. Afinal, se perdermos a guerra, teremos de continuar convivendo com eles, e uma mão forte será necessária para aliviar as tensões.

 — Mesmo assim, não estamos nadando em recursos. Washington, ao contrário de você, não exigiu salário.

Lee olhou em volta, indicando o prédio inteiro com as mãos.

 — Você sabe que todos nós somos tecnicamente traidores da Coroa, não sabe? Mas ao contrário de vocês, eu tenho coisas concretas a arriscar com essa traição. Eu poderia estar aproveitando minha patente e salário, e me aposentar numa casa boa na Grã-Bretanha, mas abri mão disso para aderir à causa de vocês. Creio que o mínimo que poderiam fazer era me indenizar.

 — Jesus! — bradou Revere — Se você realmente acredita na causa, servir deveria ser o suficiente. Você é major-general, diabos! Não poderia apenas se contentar com isso?

Charles suspirou.

 — Ah, eu me esqueço. Me esqueço de que estou falando com Paul Revere. O mesmo Paul Revere que requisitou uma patente no Exército, e foi veementemente negado. — Ele deu um sorriso arrogante. — Você é um carteirozinho glorificado. Tente se contentar com isso.

Com o rosto vermelho, Paul não teve tempo de responder antes de ser interrompido pela abertura das portas atrás de nós. Enquanto alguns homens deixavam o salão, ele pediu uma licença cortês para chamar Sam Adams.

 — Um pobre coitado — retomou Charles Lee — Ele se deu bem em Lexington, mas a História há de lembrá-lo pelo cão de um truque só que ele é. — Em seguida, em tom agradável, adicionou ao próprio cão: — Ao contrário de você, não é, garoto?

Me permiti sorrir vendo o cachorro rir. Aquela era uma chance única. Eu estava sozinho, com um dos meus maiores alvos. Matá-lo ali estava fora de questão, pois eu nem trouxera minhas lâminas, mas eu não perderia a oportunidade de conhecê-lo.

 — E como você espera que a História se lembre de você, general?

Lee ergueu as sobrancelhas.

 — Uma ótima pergunta. — Ele ponderou. — Quando a poeira abaixar, com sorte teremos um novo país aqui na América. Um país que precisará de alguém para manter a ordem e pôr o povo nas rédeas. Eu gostaria bastante que essa pessoa fosse eu.

 — Mas toda essa... revolução não está sendo feita para jogar fora as rédeas da Coroa? Por que pôr rédeas novas?

 — Isso não precisa ser algo ruim. Propósito. Estabilidade. É disso que precisaremos. A rebelião começou com homens que buscavam apenas lucro pessoal, mas um país não se gere do mesmo modo que um negócio. Samuel Adams e seus amigos gostariam de transformar as colônias numa terra onde corruptos e aristocratas podem comprar influência à vontade. Uma revolução que se faz com caos gera um país caótico. Precisamos de governantes que entendam a necessidade do povo, e que sejam fortes o suficiente para impor uma liderança. Garantir que a nação será fiel ao governo e apenas ao governo, sem espaço para discordâncias e para a perseguição de desejos pessoais.

Uma fachada convincente para quem secretamente trama manter a Coroa no poder junto com o resto da Ordem”, pensei.

 — E isso tudo será atingido se o país cair em suas mãos? — perguntei, em vez disso.

 — E de outros homens capazes.

De outros Templários, você quer dizer.

 — Mas as liberdades pessoais não fazem parte dos princípios fundadores? A revolução se iniciou porque o povo queria respeito, um respeito que a Coroa ignorava com suas leis abusivas que colocavam o rei acima do povo. Não se pode governar sem uma segunda voz. Se não houver espaço para protestos, que garantia você tem de que esse sistema será de fato melhor que a Coroa?

O major-general soltou um risinho hipócrita.

 — Bem, com certeza haverão vozes contrastantes e corruptas, como sempre há. Àqueles que quiserem protestar, e também a você se for o caso, sintam-se livres para abandonar a América. Veremos quão felizmente a Grã-Bretanha lhes dará refúgio.

Os mais sábios entre vocês reconhecem como será o futuro. Reconhecem seus superiores. Eles curvam-se aos nossos pés e imploram por misericórdia”, ecoaram as palavras que Charles Lee dissera quinze anos antes, a um pequeno iroquês indefeso.

Nesse momento, dois homens se aproximaram de nós.

 — Falando no diabo... — Lee disse entre dentes, no volume mais baixo possível.

 — Connor! Como é bom te ver! — Samuel Adams me saudou, com um abraço. Virou-se ao Templário: — General Lee.

Charles fingiu cortesia, e disse com um sorriso:

 — Como foi a sessão, cavalheiros?

 — Um tédio. Apenas aprovar medidas para recrutamento de homens. Criar um exército realmente é complicado.

Entre risinhos, Adams me apresentou seu colega, John Hancock, que cumprimentei com um aperto de mãos. Os dois me guiaram para acompanhá-los subindo ao piso superior. Despedi-me de Charles Lee, mas antes de ir ele me segurou pelo braço.

 — Acho que eu lembro de onde conheço você, garoto — comentou. Engoli em seco, tentando não transparecer preocupação. —Conheci seu povo na época da guerra, acompanhando meu velho amigo William Johnson, que Deus o tenha. A minha esposa também é uma iroquesa. E você... era uma das crianças na aldeia dela. Você vivia perto do Forte Oswego, não?

Com cautela, fingi um sorriso e menti ao Templário.

 — Pensei que nunca iria lembrar.

Ele riu, largando o meu braço e levando a mão ao cachorro.

 — Foi um prazer conhecê-lo, Connor. Espero que nos vejamos de novo.

 — Nós nos veremos, general.

Apenas enquanto subíamos a escadaria, percebi a diferença no visual de Samuel Adams.

 — Que coisa é essa na sua cabeça?

Ele se mostrou um pouco confuso, mas abriu um pequeno sorriso.

 — Ah, você não tinha visto minha peruca ainda? O Congresso é uma ocasião bastante formal, Connor, tenho que me vestir com mais elegância do que como eu me vestia em Boston.

 — Nem me fale — comentou Hancock ao seu lado — Fomos nós que tivemos de fazer a vaquinha para comprar roupas novas e uma peruca.

 — Eu entendo as roupas... — retomei — Mas você nunca teve falta de cabelo. Uma peruca branca só te faz parecer mais velho.

 — Ah, não é uma questão de cabelo, rapaz. A questão é que é necessário muito trabalho para manter uma peruca limpa e em boas condições. Fazê-lo mostra o quanto a pessoa é asseada, e é útil para conferir status.

Soltei um muxoxo.

 — Ainda assim, não parece nada prático.

 — Ah, amigo, se tudo fosse uma questão de praticidade, receio que no verão andaríamos todos nus.

Hancock e eu demos risos educados enquanto chegávamos ao piso superior. Passando por um breve corredor, nos encontramos em um salão menor do que aquele de onde Adams e Hancock haviam saído. Eles deram saudações aos outros congressistas que estavam lá e me guiaram para um pequeno escritório lateral.

 — Você deve estar se perguntando por que eu lhe invoquei até aqui. — Adams explicou, enquanto estendia um mapa das colônias do norte sobre sua escrivaninha.

 — Imagino que tenha algo a ver com o que eu fiz nas últimas batalhas.

 — De fato, sua assistência é muito apreciada — disse Hancock — Só Deus sabe o que aconteceria se você não houvesse ajudado a chamar os reforços em Lexington.

 — A vitória foi dos rebeldes. Meu papel foi pequeno.

Adams pôs a mão em meu ombro.

 — Ainda assim, foi eficiente. Mas temos outras coisas em mente para você. Mensagens de maior magnitude. Veja bem, podemos ter vencido em Massachusetts Bay, mas não podemos contar que a guerra se atenha ao norte.

 — E nossos recursos e armamentos são escassos demais para manter o cerco a Boston por muito tempo. Se quisermos nos manter nesta guerra, teremos de ganhar terreno.

 — A fronteira — inferi — O interior tem diversos fortes remanescentes da guerra contra a França.

 — Bingo. — Adams continuou. Ele pôs o dedo em um ponto do mapa sob o interior de Nova York. — Dois meses atrás, uma pequena força nossa, sob liderança do coronel Benedict Arnold, conseguiu conquistar os fortes Ticonderoga e Crown Point. São pontos estratégicos que estavam quase totalmente desprotegidos, então derrotar a guarnição não foi difícil. De início queríamos usar os armamentos dos fortes para guarnecer Boston, mas o fato é que precisaremos manter a posição na fronteira.

Hancock se aproximou e apontou para as terras acima da divisa de Nova York.

 — Mandamos duas cartas às colônias canadenses, convidando-as para se juntar a nós. Mandamos uma no ano passado e outra neste ano, mas nenhuma obteve resposta. Os britânicos ainda têm controle total lá em cima, e agora soubemos que o governador de Quebec está fortificando o Forte St. Johns. Já temos uma tropa marchando a norte sob comando do general Schuyler, pronta para invadir o Canadá se necessário.

Assenti, intrigado.

 — E onde eu entro nisso tudo? — indaguei.

 — Você não, Connor — explicou Adams — O seu povo.

 — Se quisermos conquistar a fronteira, a Confederação Iroquesa não é uma força a se subestimar. São as mais fortes e bem-organizadas das nações indígenas. O seu povo foi essencial em nossa luta contra os franceses, na captura do Forte Niágara e em tantas outras expedições, e gostaríamos de garantir a sua lealdade antes que o governador Carleton o faça.

 — Já entramos em contato com o conselho em Onondaga. — Samuel prosseguiu antes que eu pudesse dizer algo. — Queremos marcar uma conferência entre representantes de nosso Congresso e do Grande Conselho iroquês. Se você se juntar aos nossos homens, talvez os iroqueses cooperem mais com um dos seus falando em nosso favor.

Examinei calmamente a situação.

 — A Corrente da Aliança continua sendo um problema para vocês — falei — Os iroqueses são leais à Coroa.

Adams fez uma careta irônica.

 — Assim como nós também éramos.

 — Nós nunca pediríamos à Confederação para tomar armas contra o rei — emendou John Hancock — Do mesmo modo que nós mesmos apenas lutamos com muito desgosto. Não, se não quiserem se juntar a nós, apenas a neutralidade dos iroqueses já é o suficiente.

 — Afinal, a lealdade deles é para com o povo britânico, não apenas a Coroa. É com os colonos que eles sempre negociaram e se aliaram, não com o rei em pessoa. Precisamos convencer o conselho de que a neutralidade é a saída mais eficiente para eles, para manter portas abertas para quem quer que vença a guerra.

Ponderei. Nunca me imaginei em uma missão diplomática, mas lembrei-me do que Achilles falara. Eu precisava garantir o favor de Adams e do Congresso, e, além disso, essa seria uma oportunidade perfeita para manter meu povo a salvo da guerra. Eu não tinha por que não tentar.

 — Certo — respondi — O que querem que eu faça?

 — Sabia que você concordaria! — Samuel sorriu. — Queremos realizar o encontro entre nossos enviados na cidade de Albany. Fique aqui pela Filadélfia, e nós iremos te notificar quando soubermos a data exata.

Agradeci a hospitalidade. Hancock pediu licença e deixou o recinto, mas antes que eu saísse para acompanhá-lo, lembrei-me de um detalhe. John Pitcairn. Eu prometera ao Templário levar suas últimas palavras a Adams e Hancock.

 — Ah, sim, Samuel. — Ele organizava os seus mapas, e parou para me fitar. — Eu estive na batalha em Bunker Hill. E... eu falei com John Pitcairn.

Adams mostrou-se confuso.

 — Falou? Ah, entendo. Você “falou” com ele.

Eu podia nunca ter falado desses assuntos explicitamente, mas Adams não era burro. Depois de eu passar tanto tempo em busca de William Johnson, ele sabia que não era coincidência Johnson ser misteriosamente assassinado alguns meses depois, e a essa altura já devia ter ouvido falar da morte de Pitcairn em seu próprio acampamento. Além disso eu não fazia a menor ideia do quanto da Irmandade ele vira em seu tempo trabalhando com Achilles. Não era difícil para ele ligar os pontos, mas também não era necessário falar em voz alta.

 — Pitcairn pediu-me para avisá-lo. Ele disse que, quando marchou para Lexington, seu objetivo não era prender a você e Hancock. Ele disse que queria apenas negociar uma paz com vocês.

Adams tomou uma expressão chateada.

 — Eu não duvido. Bom saber. Pitcairn nunca me pareceu muito mau-caráter, então é... reconfortante saber que ele buscou a diplomacia. Uma pena que tudo tenha fugido ao nosso controle.

 — Ele... também disse que cabe a vocês parar essa guerra.

O congressista suspirou longamente.

 — Ninguém está feliz em lutar contra nosso próprio povo, isso é certo. Tenha certeza, Connor, nada me deixaria mais feliz do que chegar a um acordo com o rei. Eu teria alegremente sido seu súdito pelo resto da minha vida, mas há coisas que eu simplesmente não posso ignorar, não pelo meu bem, mas pelo bem do povo. Começamos os protestos para pedir respeito, um respeito que a Coroa insistiu em não ceder. O que eu mais queria fazer era invocar uma reunião de emergência ao Congresso e implorar aos meus compatriotas que abaixem as armas e cancelem todas as operações. Implorar para que resolvamos tudo pacificamente.

 — E por que não faz isso?

Ele olhou nos meus olhos, com pesar.

 — É tarde demais.


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Notas finais do capítulo

Confesso que eu reiniciei AC3 e joguei até a Sequência 7 só pra poder descrever a State House na Filadélfia, prova concreta de que eu não tenho vida :P
Mas enfim, vocês devem ter percebido que a presença de Connor na Filadélfia acontece de certa forma no jogo, mas eu dei uma boa alterada. Primeiro que no jogo ele está lá antes de Bunker Hill, e vê Washington ser nomeado comandante. Porém, como a nomeação de Washington acontece apenas alguns dias antes da Batalha de Bunker Hill, achei que faria mais sentido se Connor fosse visitar o Congresso depois da batalha, até porque isso emendará melhor com o que eu pretendo fazer nos próximos capítulos.
Também dei uma bela expandida no encontro entre Connor e Charles Lee. Não sei se o Lee da vida real continuava na Filadélfia naquela época, mas não quis perder essa oportunidade de expandir o antagonista principal (nem de mostrar o quanto o Lee da vida real gostava de cachorrinhos fofos, kkkk). Espero que tenham gostado das escolhas e do diálogo.

Mudando de assunto, semana passada eu terminei o livro Assassin's Creed: Heresia, e tenho de dizer, embora eu tenha discordado um pouco da franquia em seus últimos jogos (principalmente no que se refere aos dias modernos), me parece que é nos livros que AC realmente está bombando, porque tanto Last Descendants quanto Heresia estão de parabéns. Mas enfim, Heresia tem conexões bem claras à trilogia Last Descendants e ao filme de 2016, com a aparição de personagens como Victoria Bibeau e Alan Rikkin. De início eu achei que o livro tinha uma excessiva quantidade de easter eggs, com pequenas referências sendo mencionadas sempre que possível, mas essa quantidade é abrandada depois que o livro passa da fase de exposições.
A trama histórica mostra um garoto chamado Gabriel Laxart, que acompanha Joana d'Arc em suas batalhas, mas mesmo assim bem pouco da guerra é mostrado. Uma das coisas de que senti falta em Heresia foi justamente a ação, uma parte sempre presente de Assassin's Creed que parece que foi deixada de lado nesse livro. Isso não é ruim por si, mas talvez contribua para eu ter achado o ritmo do livro um tanto lento. Enquanto isso, em 2016 acompanhamos o descendente de Gabriel, o Templário Simon Hathaway, que foi aceito como diretor de Pesquisa Histórica no Inner Sanctum da Ordem, e que propõe uma nova maneira de direcionar as pesquisas do Animus. Essa nova visão de Simon não é tão bem explicada, não parece que ele está usando o Animus para algo muito diferente do que já se fazia antes, mas Simon, assim como suas amigas Victoria e Anaya, são bons personagens, e em certos momentos a trama do presente parece evoluir mais rápido do que o passado. Mas, apesar do ritmo lento, garanto que quanto mais você se aproxima do final, melhor o livro fica, e as revelações finais são excelentes.
Em uma nota mais triste, após terminar o livro retomei a ler a novelização do filme AC (que eu já havia começado, mas lido poucos capítulos). E, embora as duas histórias sejam escritas pela mesma autora e sejam tão conectadas, fica nítido que quem criou o enredo de Heresia tinha um conhecimento profundo do cânone de AC, enquanto que quem criou o enredo do filme ignorou o cânone em vários aspectos. Não sei o que é pior, o fato de AC ter perdido seu caminho ou o fato de eu ter virado um purista chato. :v

Mas por hoje é só, tenham um bom dia, e nos vemos em duas semanas. E se você chegou até aqui, não se esqueça de escrever 'batata' nos comentários! :)



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