Amy! escrita por Kcoruja


Capítulo 4
Capítulo 4




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Minhas pernas perderam a força pouco a pouco até eu me sentar no banco traseiro daquele Honda Civic prata, que mantinha o cheiro enjoativo de carro novo. Esse cheiro conhecido e nauseante se manteve empreegnado em meu nariz por todos esses anos, era só o carro perder esse cheiro de novo que meu pai trocava nunca passou mais de dois meses com um carro, dinheiro jogado fora, dinheiro que podia ser usado pra coisas bem melhores, menos fúteis, a futilidade com que meus pais lidavam com a vida sempre me deu nojo, os donos da verdade, os sábios, os Ricos, donos da cidade e do mundo. Não foi uma ou duas vezes que me peguei pensando se meu pai não estava envolvido em nenhum esquema de corrupção, as viagens mensais dele para ver as empresas, as idas bimestrais a Brasília, as ligações noturnas pelo skype em que ele nunca falava português. Tudo isso sempre construiu uma imagem de corrupto do meu pai, sempre escancarada para mim, não para os outros. A Cidade inteira, cidades vizinhas e outras desconhecidas sempre idolatravam o grande Marcos Arruda, o bondoso, religioso, honesto, íntegro. É estranho demais não achar nenhuma dessas qualidades no meu pai? Acho que sim. Mas agora não importa mais, ele é o pai de outra pessoa, eu sou outra pessoa.
Notei o carro em movimento e que o homem de voz grave no banco do motorista falava comigo. Fixei meu olhar nos olhos claros de uma cor desconhecida que me olhavam através do espelho como se desnudassem a minha alma e lessem meus pensamentos. Não sustentei o olhar por muito tempo, eu não me sentia capaz de olhar para aqueles olhos, me concentrei em olhar para frente, enquanto respondia mecanicamente as perguntas.
" É de onde?"
" Paris"
" Pariscida do norte? Ou a cidade luz?"
" A cidade luz"
" Tá fazendo o que aqui?"
" Conhecendo o passado do Brasil"
Ouvi uma risada nazalada, mas ainda assim não tive coragem de olhar para ele, ouvi ele engatar uma conversa qualquer com a avó sobre a filha do irmão do vizinho que brigou com a prima de não sei quem na porta da escola no dia anterior, engraçado como esse tipo de comentário se torna banal em qualquer cidade, coisa corriqueira da vida atual, duas meninas brigando por um motivo idiota, homem, fofocas, rede social. Motivos banais que parecem o fim do mundo para elas, e para nós que estamos por fora sempre um motivo a mais para criticar, criticar elas, os pais, a sociedade, a escola, a internet a culpa é de todos quando não é com a gente, a culpa é dos outros quando é com a gente, a culpa nunca é nossa. Aprendi isso com a minha mãe e suas bolsas de marcas compradas em Paris, sempre invejadas por todos, mas ninguém sabe o que vai dentro dessas bolsas que ostentam um simbolo que na minha opinião não vale nada.
O carro parou e junto a conversa deles, o neto de dona Joana desceu num pulo e abriu a garagem, entrou no carro praticamente no mesmo minuto e olhou para trás, só então olhei de verdade para ele, aquela coisa estranha dentro de mim se remexeu novamente mas dessa vez com uma inexplicável excitação, os olhos claros marcados por cílios longos, o nariz fino, a boca carnuda e a maldita barba moldando aquele sorriso sacana dedicado inteiramente a mim. Ele estudava meu rosto com uma dedicação incompreensível, eu não estou babando estou? Não! Eu não estou. Desviei o olhar dele e me virei para a Dona Joana. Eu precisava sumir daqui, pegar a estrada, não sei se tenho uma minima capacidade de passar um tempo na mesma casa que ele.
" Dona Joana, eu realmente preciso pegar estrada, preciso seguir meu caminho."
" Bobagem, amanhã é domingo, você ainda não conheceu nada aqui. O centro histórico não termina naquela igreja, tem outras e tem outros lugares. Ricardo passa o domingo bebendo no sofá pode te levar depois do almoço."
" Não precisa, não quero incomodar"
" Não vai. Te levo com o maior prazer, não é sempre que conheço alguém que viveu em Paris."
Ricardo, nome de Homem, Homem com H maiúsculo, tenho certeza que ouvi malícia naquela voz, eu só posso estar enlouquecendo.
Joana desceu do carro para abrir a porta, enquanto eu pegava minha mochila e colova no ombro notei que eu estava sozinha com Ricardo, ele me sorriu, um sorriso torto e sacana que denunciava seus pensamentos, encostado no carro ele sutilmente apontava em direção a porta com a mão direita.
" Por aqui mademoiselle"
" Merci"
Sussurei enquanto caminhava pelo corredor escuro, eu não precisava olhar para trás eu sentia o olhar e o corpo de Ricardo, é uma sensação estranha esse desconforto todo com a presença de alguém desconhecido, nunca senti nada igual. O corredor dava em uma cozinha ampla e branca. Não era moderna, conservava aquele aconchego de casa de vó que eu sentia na casa da vó da Lily, a diferença é o enorme fogão de lenha no canto da cozinha, nas casas de Recanto Novo eles ficavam do lado de fora em uma parede escurecida pela fumaça, aqui não todas as paredes brancas de azulejos com detalhes azuis. Um cheiro delicioso preencheu o ar, cheiro de comida de vó, comida caseira feita em fogão de lenha. Na minha casa esse tipo de comida feita em fogão de lenha, comida normal, nunca entrou, sempre um cardápio diferente, uma comida mais cheia de frescura que a outra, que precisava de tantos talheres para comer que perdia o gosto. Bom era os dias que ficava só eu e Rosa em casa, eu não precisava ser perfeita, o orgulho, manter o porte e a classe, eu podia me dar o luxo de comer arroz, feijão, bife e batata frita sem minha mãe dizer que isso não é comida para mim, que batata tem carboidratos, que eu vou engordar, que é uma comida sem cultura, que é coisa de pobre. Não poder comer o que se tem vontade é o pior tipo de privação que alguém pode sofrer.
" O que tanto pensa criança?"
" No cheiro de comida de vó, faz tanto tempo que não sinto esse cheiro"
Ela me sorriu complacente e apontou para fora da cozinha.
" A comida tá quase pronta, Ricardo vai te mostrar onde fica o banheiro, pega uma toalha para ela também, desculpa criança, mas você precisa de um banho"
Senti meu rosto corar e um sorriso nervoso se espalhar pelo meu rosto, eu estou fedendo e vou ter que ficar sozinha com esse homem de novo. Por que mesmo que eu aceitei vir aqui? Joana foi simpática e eu estou com fome.
Ricardo saiu andando e eu fui obrigada a seguir ele, um silêncio incômodo se instalou, eu não sabia o que falar, mas lembrei da conversa de mais cedo.
" Você é o neto que fala dos 'ismos'? machismo e feminismo?"
" O quanto você conversou com ela?"
" Um pouco, por que você fala tanto dos ismos?"
" Professor de sociologia da rede pública, sempre trago trabalho para casa e como só tenho minha avó para conversar ela escuta muito isso, apesar de achar uma concepção exagerada de tudo relacionado na sociedade atual ela escuta bem, e acaba servindo de ajuda para a maioria das aulas."
" Tua avó é uma pessoa muito sábia. Ela me cativou nos primeiros minutos de conversa."
" Você deve ter feito o mesmo, ela nunca traz turista nenhum aqui, mesmo que converse com todos eles, então eu me pergunto, o que Diabos você tem de tão especial, é uma garota com uma mochila ou é mais que isso?"
" Todas as pessoas são mais do que demonstram ser de primeira, ninguém é tão raso quanto uma poça, sempre tem algo escondido."
" E o que você esconde?"
Eu não notei o quão perto estava dele até sentir seu hálito de menta bater contra meu rosto, dei um passo para trás e senti a parede. Ele se aproximou sorrindo, o desgraçado sabia que me afetava.
" Gostei de você, mulheres misteriosas tem um charme especial, o banheiro é aqui. Fique a vontade tem uma toalha pendurada ai é a minha se quiser usar, se não, tem na gaveta da pia. Qualquer coisa pode me chamar que eu te ajudo no que for preciso." Ele sorriu e se virou, era um jogo isso estava claro, ele queria jogar com o desconhecido. Pois bem. Esse é um jogo que dois podem jogar, e eu não sou boa perdedora, nunca fui, aprendi isso com meu pai. Se é um jogo, e você vai jogar, ganhe, simples assim, perder não existe no meu vocabulário. Fechei a porta do banheiro e me despi, entrei no box e deixei a água cair tranquilamente pelo meu corpo, me ensaboei até me sentir limpa, transferi toda a minha concentração e pensamentos para aquele momento, não sei quando ia acontecer novamente, nada mais Justo que aproveitar. Quando terminei pensei em pegar uma toalha limpa, mas me atrevi a jogar, peguei a toalha usada que tinha o cheiro de Ricardo impregnado e me sequei, enquanto pegava uma calcinha na mochila alguém bateu na porta, provavelmente dona Joana me chamando para comer, mas a voz que soou do outro lado foi de Ricardo. Avisando que a vó mandou um pijama para mim. Abri a porta com a toalha enrolada no corpo. E me deparei com uma cara de espanto vinda dele.
" Acho que uma roupa dela não serve para mim, desculpa mas sou alta."
" N-na verdade é um short da minha irmã e uma camisa minha se não se importar."
" Que gentileza, obrigada."
Peguei a roupa e fechei a porta bem a tempo de ver um sorriso malicioso e divertido se formar nos lábios dele, assim é bem melhor. Vesti a roupa apressadamente e escovei meus dentes esse gosto horrível de guarda chuva que fica na boca por falta de escovar dente é horrível. Mais uma coisa que de um jeito ou de outro vou ter que me acostumar, as consequências de uma escolha. Pendurei a toalha e sai do banheiro me deparando com Ricardo me esperando do lado de fora.
" Uma escolta para você não se perder."
" Valeu."
" Como você fala português tão bem? O certo é você se enrolar e falar francês as vezes."
" Isso aconteceu muito no começo, meu primeiro mês aqui foi tenso, sempre falei português em casa, meu pai é brasileiro. O primeiro mês que passei aqui foi complicado eu sempre animava e começava a falar francês, a cara das pessoas era engracada demais. Mas agora já acostumei e aprendi a manter a calma não começar a falar sem parar."
Eu seguia ele cegamente ele abriu uma porta que eu não lembro de ter passado e entrou, e fiquei parada na porta sem saber o que fazer. Pouco depois ele voltou com uma garrafa de vinho na mão.
" Desculpe, casa de italiano, nunca vai ter uma massa sem vinho. É a adega quer entrar?"
Assenti, meio desnorteada, italianos é claro, isso explica os traços desse homem. Tinha uma pequena escada que levava ao subsolo, uma música suave ocupava o ambiente trazendo uma sensação boa, o lugar de tamanho razoável com cheiro misto de cedro e vinho. Na parede inúmeras prateleira com vinho um lugar bonito, com a luz fraca. O meu contentamento em saber que a adega do senhor Marcos Arruda não tem um décimo do requinte desse lugar. O senhor dono do mundo não entende de vinhos a final, a enorme coleção de safras variadas mas totalmente sem alma.
" Peguei um Merlo, safra de 71 ano do casamento dos meus pais. Gosto desse ano, se quiser escolher outro, fique a vontade"
" Não, esse tá ótimo."
Ele sorriu e apontou a escada, por mais gentileza que ele demonstrasse eu não conseguia acreditar, o tom de voz ou o sorriso não sei mas algo entregava que ele não é boa coisa, e exatamente por ele não ser coisa boa me atraia de uma forma inexplicável, Patrick nunca me atraiu assim, mas ele era bom, era o que eu precisava, ele me respeitava e me amava, fora que ele é filho de um dos sócios majoritários do meu pai, ele é tão rico quanto eu era. Ele era o que eu precisava, claro que existe um sentimento, sempre existiu um carinho enorme, ele deixava um sentimento bom de cuidado e de carinho. Mas nunca de atração, anos de namoro, 4 anos de namoro e ele nunca avançou o sinal ou ao menos tentou qualquer coisa, talvez por isso quando Pietro tentou eu cedi, o charme francês. Esse charme inebriante que roubou minha virgindade como quem rouba um beijo, deixando aquele gosto de quero mais. Acho que Pietro foi quem despertou em mim esse gosto por ser livre e fazer eu mesma minhas escolhas.
" Amy? Tá com a cabeça onde?"
" Em Paris, bateu uma leve nostalgia."
" Saudade do namorado?"
" Não sou de namorar, saudade dos amigos que deixei."
Ele me sorriu e puxou uma cadeira dando espaço para eu me sentar e empurrando levemente a cadeira.
" Merci."
A mesa estava posta com cuidado a comida com um delicioso aroma me encantava minha boca estava aguando de prazer, nada muito chique mas a travessa com lasanha me encantou de tão linda. A travessa com arroz posta com cuidado ao lado e a de feijão dando um toque brasileiro a mesa. Uma simples oração de agradecimento e nos servimos, eu que antes estava extasiada com o aroma, tive um orgasmo gastronômico quando experimentei, uma sensação maravilhosa que experimentei apenas quando morei em Paris, comer com prazer, desgustando e se apaixonando novamente a cada mordida. Ouvi uma risada e logo outra risada se misturou me deixando desconfortável.
" Desculpa criança, mas você tá com uma felicidade tão grande estampada no rosto."
" Faz tempo que não como algo tão bom."
" Experimenta o vinho, vai ver como ele casa tão bem com a massa que vai te levar ao paraíso."
Ricardo me serviu uma taça de vinho sorrindo, beberiquei com delicadeza sentindo o gosto do vinho seco envelhecido por 43 anos. Um gosto bom que combinava de forma harmoniosa com a lasanha deixando a refeição ainda mais gostosa.
A conversa seguiu tranquilamente em seguida, nenhum assunto sério ou específico apenas comentários aleatórios sobre o cotidiano, e por incrível que pareça me senti em casa e acolhida, uma coisa rara para os meus padrões de refeições.
Aos poucos os pratos foram se esvasiando e as barrigas se enchendo, as taças também se esvaziaram deixando uma leve alegria no ar. Joana se levantou entre risadas avisando que ia se deitar e que a louça é responsabilidade nossa antes de deitar. Disse também que ia trocar a roupa de cama do quarto da Roberta para mim. Assenti enquanto terminava a minha taça sem saber bem o que pensar ou dizer continuei apenas mastigando o silêncio. Ricardo me olhava vez ou outra esperando algum diálogo, quando viu que eu não ia falar nada se levantou tirando os pratos e retirando a comida das travessas, me peguei admirando como ele se movia, a delicadeza com que lidava com os talheres e os arrumava delicadamente na pia, ele se virou para buscar a última travessa e aproveitou para encher minha taça novamente com o resto de vinho.
" Tá querendo me embebedar é?"
" Talvez, quem sabe você se anima a vir me ajudar, sabe... Um trabalho feito por dois rende mais."
" Só tem um problema."
" Qual? Já está bêbada demais para se levantar? Se quiser te carrego até a cama."
" Estou bem, obrigada, mas é que eu não Sei fazer isso."
O olhar dele refletia um espanto que me constrangeu de uma forma avassaladora, eu não imaginei que ia me sentir assim quando admitisse essa realidade para um estranho. O silêncio predominou por mais alguns segundos enquanto ele absorvia a informação.
" Você não sabe lavar louça?"
Neguei com a cabeça enquanto brincava com a borda da taça.
" Tipo, você nunca lavou louça?"
Neguei novamente, enquanto meu rosto era tingindo de um tom escarlate. Ricardo se explodiu em risadas me deixando com raiva, e vergonha não é justo isso.
" Coxinha, uma burguesa dos tempos atuais."
" Você está sendo infantil. Achei que a faculdade de sociologia ensinava mais do que julgar uma pessoa pela possível classe social que ela ocupa, aliás até onde me lembro você não sabe nada ao meu respeito, apenas o meu nome."
" Tem razão, me perdoe, vem vou te ensinar a lavar louça enquanto você me convence que não é uma riquinha mimada que teve alguém fazendo tudo por você a vida toda."
Concordei e aceitei a mão estendida me ajudando a levantar e enquanto ele me explicava na prática como se lavar uma louça, a irritante e repetitiva tarefa de molhar por sabão e esfregar infinitas vezes até estar limpo e depois enxaguar para colocar no escorredor em seguida, fácil mas irritante. Agora era a vez dele me observar eu sentia isso, em silêncio concentrada para tirar qualquer resquício de uma oleosidade inexplicável que se mantinha na travessa, parece que não tinha tanta gordura na comida para deixar a travessa assim. Ouvi os passos de Ricardo se distanciarem e voltarem pouco depois de uma suave e baixa melodia preencher o ambiente, sorri em reconhecimento Bach, o Magnificat. Ele voltou a me olhar, ele também sorria eu conseguia ver isso pela visão periférica.
" Não sabia que radicais de esquerda ouviam sinfonias belas assim."
" Ainda tô esperando saber mais de você."
" O mistério te atrai se bem me lembro, prefiro continuar uma incógnita. Aliás terminei, pode avaliar meu trabalho."
" Não preciso sei que fez direito, agora é a sua vez de observar, vou guardar as coisas, com licença."
Ele me puxou para o lado pela cintura e me colocou encostada no balcão, era meu momento de observar a sutileza de seus gestos, em pouco tempo as coisas estavam organizadas e o nosso trabalho tinha acabado. Ele me olhou sorrindo e me chamou.
" Vem vamos comemorar a sua primeira vez."
Naquele momento eu desaprendi o que é andar.


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Notas finais do capítulo

Isso é tudo... Até a próxima!



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