Amy! escrita por Kcoruja


Capítulo 3
Capitulo


Notas iniciais do capítulo

Bom, esse capítulo é totalmente dedicado a ECargnin que me deu um comentário lindo e super motivacional de presente.



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Andei um bom tempo até encontrar o centro da cidade, eu me sentia cansada e com uma sede inexplicável, não, ela é bem explicável andei por mais de uma hora no sol quente, é claro que eu ia sentir sede, parei em um bar vazio e pedi um copo de água para o velho gordo sentado atrás do balcão, ele resmungou alguma coisa sobre odiar esse lugar e encheu um copo qualquer com água e me entregou, tomei tudo em um único gole e pedi mais um, o homem revirou os olhos e encheu novamente, dessa vez tomei com um pouco mais de calma sentindo a água realmente fazer o seu papel de refrescar e hidratar. Coloquei o copo no balcão agradecendo o homem, me sentei numa das cadeiras altas do lugar e olhando a estufa de salgados pedi uma coxinha com catupiry. Enquanto ele foi pegar eu observei o lugar com piso sujo e parede brancas encardidas, todo bar de esquina me parece tão igual, lá na minha cidade também era assim. Ouvi o barulho do prato sendo colocado a minha frente paguei o homem e tirei uma generosa mordida da ponta da coxinha, sorri lembrando de Patrick, ele sempre reclamava que eu comia errado a coxinha que tinha que começar da parte redonda que tinha mais recheio.
Alguém entrou no bar rindo, me fazendo olhar para trás, eram dois homens de meia idade que provavelmente estavam saindo do trabalho, o mais alto sentou ao meu lado ainda rindo pediu uma dose de uma cachaça qualquer e voltou a falar de alguém que tinha contado uma anedota qualquer na hora do almoço fazendo o moreno baixinho ao lado dele rir. O dono do bar serviu ele em um copo pequeno que ele virou rapidamente e então me olhou.
" O gordo serve uma dose pra moça que ela tá com cara de que precisa mais que eu."
" Eu não bebo."
" Tá fazendo o que num bar então?"
" Comendo. Aliás tô de saída."
" Escuta o que eu tô te dizendo Gordo, essa menina vai criar confusão olha o jeito dela."
Não contive um revirar de olhos enquanto saia do bar, realmente bares de esquina são todos iguais, lugares sujos e sem vida para os homens soltarem as piores injúrias sobre o mundo, e se acharem no dever de dar sua tão importante opinião sobre tudo, definitivamente não consigo entender essa necessidade absurda das pessoas darem suas opiniões sobre os mais diversos assuntos como se elas fossem as mais importantes do mundo. As pessoas são tão preocupadas em falar que esquecem de escutar e observar a realidade.
Andei pelo centro da cidade imaginando a data de cada milímetro do local. Imaginando o trabalho que foi deixar essa cidade assim, tão bela, mantendo toda a fachada de passado, me deixei encantar mil e uma vezes num espaço de poucos metros observando a arquitetura barroca, o estilo do local. A catedral do centro histórico me deixou boba fazendo lágrimas inundarem meus olhos, meu Deus, que lugar magnífico. Entrei na igreja observando cada detalhe daquele lugar, me ajoelhei e fiz o nome do pai, não me atrevi a fazer nenhuma oração, esse lugar já é uma oração e tanto que me fazia querer contemplar cada detalhe desse mistério sacro. Cada detalhe com mais de 300 anos, cada milímetro desse lugar é história e sentimento, e no silêncio eu consegui ouvir o passado. A igreja é linda, todas as igrejas católicas antigas são lindas e ricas, e trazem historias tão grandes. Aqui de joelhos observando cada detalhe eu fui capaz de imaginar e ver cada casamento, cada missa e história se iniciando e concretizando, cada lágrima que alguém já derrubou nesse local por alegria ou tristeza, cada sorriso, cada alma que já subiu ao céus por uma oração feita aqui, cada pessoa que mesmo batendo cartão em toda missa não foi boa e se viu em um purgatório. Consegui ouvir os cantos antigos, e os atuais que provavelmente algum grupo de oração ainda entoa por essas paredes. Senti meu rosto molhado e os olhos embaçados pelas lágrimas, aqui tem um sentimento que eu nunca tinha experimentado.
" Tá tudo bem moça?"
" Sim, está, só me encantei pelo passado."
Olhei para a senhora de cabelos brancos presos em um coque e roupas pretas, sorri me sentindo realmente no passado, alguém ainda se veste assim hoje em dia? Estendi a mão para comprimenta-la e me surpreendi quando ela mudou um véu preto de mãos para retribuir o cumprimento.
" Sou Amy"
" Joana. É turista?"
" Quase isso, mas estou de passagem pela cidade."
" Percebi, mas você tem algo diferente, quando alguém tá de passagem por aqui primeiro tira as fotos e depois faz qualquer outra coisa, não te vi pegar o celular ou a câmera ainda."
" Eu sou uma turista diferente, prefiro guardar as imagens no pensamento e me contento em observar. Me desculpa a pergunta mas a senhora é viúva?"
Senti minhas bochechas corarem com a pergunta, e vi ela sentar cuidadosamente ao meu lado e sorrir, ao contrário do que imaginei um sorriso carinhoso, não cheio de saudade, talvez a saudade estivesse escondida em algum lugar mas o carinho esse é bem maior estampado no olhar e no sorriso.
" Sou, sou sim."
" Meus pesames..."
Meu tom baixo e complacente com a dor dela acabou me pegando de surpresa, me fazendo tirar a minha mão da dela, eu me senti invadindo um território desconhecido, nunca lidei com a morte de ninguém, e me sentir próxima assim dela despertou algo em mim que eu nunca senti. A olhei nos olhos e perguntei.
" É recente?"
" Não, hoje fazem 11 anos..."
" E usa o luto até hoje? Achei que isso não existia mais hoje em dia."
" Hoje eu não sei se alguma viúva faz, mas eu aprendi assim, na minha época a mulher guardava o luto e o usava até a morte."
" Isso parece tão machista, os homens se casavam novamente e as mulheres tinham que sofrer a vida toda por algo."
" Besteira criança. Muitos homens também guardavam luto, meu pai por exemplo perdeu a minha mãe quando eu tinha 14 anos, e nunca mais se casou, conheci mulheres que se casaram ou ficaram amasiadas com algum rapazote, é questão de escolha criança, meu neto fala muito desses "ismos", machismo, feminismo essas coisas não existem de verdade, é só um nome que inventaram para obrigar todo mundo a agir e pensar igual. Não é por machismo que guardo o luto, é por amor, vivi 60 anos com um homem, criei meus filhos ao lado dele, peguei meus netos no colo e amei o mesmo homem todos os dias, mesmo quando passamos dificuldades ou brigamos eu amei ele, para mim seria como viver uma mentira se eu voltasse a colorir minha vida quando a cor mais linda dela me espera ao lado de Deus."
Senti o ar preso nos pulmões, tentei engolir a saliva inexistente, mas não consegui, não consegui fazer nada, amor assim é coisa de filme e livro, não é real, ao menos foi isso que eu sempre pensei, não pode ser que isso exista. Senti os olhos negros da delicada e frágil senhora presos em mim, ergui meus olhos e a observei, ela devia ter pouco mais de oitenta e ainda assim é bem cuidada, conservava alguns resquícios da beleza que com toda certeza teve outr'ora. Ela sorria para mim me dando a resposta de uma pergunta silenciosa que eu sei que estava escancarada em meus olhos.
" A senhora se importa de me contar a sua história?"
Notei um sorriso tímido se formar no canto dos lábios dela, e sorri também pela sinceridade que o olhar dela me transmitia.
" Uma menina querendo saber histórias de velha? Isso é raro."
" Gosto de conhecer as pessoas, acho que só conhecendo as pessoas começamos a ser capazes de conhecer a vida, e o passado me fascina em todo caso."
Ela sorriu e ficou em silêncio alguns segundos olhando para o altar e depois me olhou.
" Eu me casei nessa igreja, conheci o meu marido em frente a ela também, acho que me apaixonei por ele aqui também, não tenho mais certeza, parece que eu o amei desde a primeira vez que eu vi ele, mas isso é hoje em dia, naquela época não, acho que só vemos o amor quando ele já foi vivido, enquanto estamos vivendo tão perto dele nunca conseguimos enxergar. O nome dele era Pedro ele era filho de um amigo do meu pai, tinha acabado de se mudar para cá, e dizia que ia ser padre, estudava para isso, Eu cuidava do meu pai e dos meus irmãos, sou a mais velha das filhas mulheres e quando mamãe faleceu eu que tive que tomar conta de tudo, casa, comida, meus irmãos, eu virei a mãe, tive que ser responsável por tudo. Meu pai passava o dia na roça lidando com terra e gado voltava cansado e eu tinha que ter tudo pronto, nos fins de semana os funcionários e os amigos do meu pai se juntavam no terreiro da fazenda para tocar um baile para a gente, Pedro sempre ia mas nunca dançava, uns três meses depois que eles se mudaram eu consegui tirar ele para dançar uma valsa bonita que o boiadeiro tocava naquela noite, acabamos dançando a noite toda. No sábado seguinte, dançamos  novamente, em algum momento acabamos nos afastando do povo e ficamos sozinho, meu pai deu falta em mim e foi me procurar, encontrou a gente de mão dada. Depois de quatro meses eu fiz 15 anos e meu pai marcou o casamento, não casamos obrigados, já tinha um carinho voando perdido em algum lugar por lá, a gente só não sabia, ele ainda achava que a vocação dele era ser padre e eu ainda tinha uma casa e uma família para cuidar ficamos morando com meu pai, era preciso, eu tinha um irmão bebê ainda que precisava de cuidado, Pedro começou a trabalhar na fazenda do meu pai, e ficamos morando lá quase dois anos, foi esse o tempo que demorou para acontecer alguma coisa e a gente entender que tinha sentimento, a vocação dele não era ser padre afinal. Ele comprou uma casinha para a gente na cidade e começamos a nossa vida do jeito certo quando eu tinha 18 anos, no começo do ano seguinte nasceu meu rapaz mais velho, e continuamos assim, tivemos 12 filhos, 6 rapazes e 6 moças, hoje só tem 10 vivos, a vida cobra um preço alto por algumas escolhas tua ou dos outros e alguém tem que pagar, infelizmente os meus pagaram pela escolha dos outros, foi dolorido perder dois filhos tão moços, o certo é o filho enterrar os pais sabe, mas eu já sabia um pouco sobre a dor de perder, já tinha perdido minha mãe e um bebê que não vingou. Foi bem difícil para nós dois, ele fraquejou um pouco, mas teve que ter força, eu tive que ser a força dele, isso que é ser casada criança, não é o que acontece na igreja é o que na vida, duas pessoas fracas se revezando, sendo fortes uma pela outra, e as duas pelos filhos, desde que o casamento passou a ser só vestido e festa as pessoas começaram a se separar, não querem mais passar dificuldades, não querem sofrer, querem uma beleza eterna de conto de fadas, isso não existe, a vida de ninguém é perfeita, não o tempo todo, a felicidade é momento, e eu sou feliz em dizer que nós dois vivemos a felicidade dos pequenos momentos. Vivemos a dor da perda, primeiro papai e um ano depois os pais dele com pouco tempo de diferença de um para o outro, veio a queda no café e tivemos que contar moedas para não passar fome, tive que lavar roupa para fora para ajudar, brigamos nos momentos de medo e raiva, nem sempre um dos dois conseguia se manter firme, mas tenho orgulho em dizer que nunca dormimos brigados, ele sempre me deu um beijo na testa antes de dormir, como prova que ele estaria lá quando eu acordasse. Vimos filhos se formarem médicos, advogados, professores, vimos filhos repetirem de ano, e desistirem de estudar, vimos quase todos casar e os netos irem nascendo e enchendo a casa cada vez mais, sofremos juntos lutando junto com um filho que teve câncer, e comemoramos em família quando ele venceu. Eu vi os cabelos brancos aparecerem nele e em mim, e vi quando começaram a cair, eu vi as mãos dele tremerem, e a memória falhar, vi ele perder peso, e vi o dia que ele simplesmente não acordou mais, e nesse dia eu vim aqui mesmo nessa igreja pedir a um padre para encomendar a alma dele, mas acima de tudo sentar aqui e agradecer a Deus por me ter me dado a honra de ter a vida que tive e ter ele ao meu lado. Eu não me revoltei com Deus, eu só vesti um vestido preto e voltei a minha vida, os primeiros dias foram piores, depois do sétimo dia, meus filhos me deram uma cama de viúva, eu doei as roupas dele e fui reaprendendo a viver, como um dia tive que aprender a viver com ele eu também tive que aprender a viver sem. E eu tenho fé em Deus que logo meus filhos vão ter que aprender a não almoçar a minha comida todo domingo. Não precisa esse espanto criança, todos caminhamos para o mesmo fim, logo é minha vez."
Eu em uma tentativa falha de conter as lágrimas, olhei para cima, o belo teto da igreja me olhou de volta, foi inevitável pensar nos meus avós, a história deles não é nenhum pouco parecida e o carinho que existe entre os dois e o mesmo que existe entre dois elefantes brigando, mas eles já tem idade, e isso me fez cair a ficha que agora eu não vou saber se acontecer alguma coisa a eles. Um desejo egoísta de voltar atrás me tomou, mas esse mesmo egoísmo me lembrava onde eu estava e tudo que eu já tinha feito, tarde demais.
Olhei de volta para Joana, essa senhora sentada ao meu lado me deu tantos tapas na cara com essa história que eu não conseguia pensar em nada para dizer.
" Não precisa ter medo da morte criança, é o fim de todos, ricos ou pobres, bons ou maus, é a certeza que em algum momento vamos ver Deus cara a cara, e isso é magnífico, pensa em tudo de belo que ele fez, ele deve ser esplêndido."
" Deve ser sim, mas a morte é um desconhecido, e se quando fechar os olhos existir apenas uma escuridão?"
" Existe, existe para quem fica, você nunca apoiou a morte de ninguém né?"
" Não, não tenho uma família grande, e nem próxima assim."
" Então espera mais uns anos, teus pais ou avós hora ou outra vão precisar de alguém para segurar a mão deles e dizer que tudo vai ficar bem."
" Eu não tenho pais."
" Tem sim, você só acha que eles te esqueceram, ninguém que não tem pai e mãe tem a delicadeza de ouvir os lamentos de uma velha."
O silêncio se fez presente novamente, dessa vez ele não gritava nada em meus ouvidos, apenas um silêncio bom com gosto de oração, olhei para o lado e vi Joana de olhos fechados e véu na cabeça, em oração, e assim permaneceu, e pela primeira vez desde que entrei nessa igreja eu me permiti estar na presença de Deus, falei com ele pedindo perdão por desonrar meus pais, e pedi para ele cuidar da minha família, deixei meu coração se acalentar na paz de Deus, quando abri os olhos a igreja estava cheia e uma missa estava começando, eu não me sentia digna de estar ali, por isso dei de levantar, mas a mão de Joana me impediu.
" Fica para a missa, depois da missa você janta comigo e meu neto, e se quiser dorme lá, sei que não tem lugar para ficar."
" Eu não sei se é certo, a senhora mal me conhece."
" Conheço muito bem quem tem o coração bom, mesmo perdida você tem."
Agradeci e me sentei, com a cabeça nas nuvens voando entre os últimos acontecimentos e a certeza de saber nada, ouvi cada palavra que o padre dizia como se fosse a primeira vez que eu ouvia cada letra dita. E talvez fosse, se em uma vida passada eu ouvia por obrigação nesse momento eu ouvia com vontade, assimilando realmente as palavras, é a minha primeira vez como Amy, é a primeira vez que ela/eu ouço, assimilando as palavras ditas e cantadas com as experiências vivida em 24 horas, quanta coisa aprendi, quanta coisa mudou.
Enquanto caminhava em direção ao padre no momento da comunhão eu me peguei pensando em meus pais, minha família e amigos de uma vida inteira que decidi deixar para trás, planejei por um ano essa vida nova e me vejo fazendo a mesma coisa que eu estaria fazendo se estivesse lá. Eu deveria estar fazendo coisas novas, experimentando. Sim eu preciso fazer isso, achar um centro espírita, tomar um passe, ir num terreiro de candomblé, numa comunidade rastafári, num templo budista, é isso. Preciso achar alguém para fazer novos documentos, e tirar um passaporte, será que existe alguma forma de falsificar impressão digital? Eu quero o mundo, não só esse país, esse estado, eu quero as diversas religiões e ensinamentos que o mundo pode dar. Eu sei que não vai ser fácil, meu dinheiro não vai durar o suficiente, mas eu vou ganhar o mundo não importa quanto tempo demore.
" Ide em paz, e que o senhor vos acompanhe."
" Graças a Deus!"
Uma reverência depois e a igreja se esvazia, Joana foi uma das ultimas a sair, de joelhos ela fez uma rápida oração e saímos, na porta da igreja ela me avisou que o neto ia aparecer a qualquer minuto para buscar ela de carro. Eu não sei exatamente o que aconteceu comigo, mas essa informação me trouxe uma sensação ruim, é como se algo dentro de mim gritasse para fugir enquanto ainda tinha tempo, algo ruim ia acontecer. Um desespero se formou dentro de mim, algo estranho e desconhecido. Talvez uma espécie de sentido aranha como o do Peter Parker. Algo irracional que eu decidi escutar.
" Olha dona Joana, eu realmente não quero incomodar a senhora, eu vou indo. Preciso pegar a estrada."
Mal terminei de falar e o barulho da buzina chegou aos meus ouvidos e fez um frio percorrer minha barriga. Dona Joana alheia ao que acontecia no meu interior sorriu e deu a minha sentença final.
" Bobagem, vamos."


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Notas finais do capítulo

Então... Por hoje é só



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