A pressão contra meu poder se esvaiu e eu aproveitei a chance para puxar Malek para cima. Às cegas — já que o sal feria meus olhos, mantendo-os fechados —, coloquei Malek na pedra. Bem, digamos que foi meio fácil já que ele começou a reclamar quando comecei a arrasta-lo pela pedra sem querer.

— E quem disse que um dia nos enfrentamos pra que me deixasse sair viva? — o tom de voz de Olivia era bastante sério.

— Pois bem, nos enfrentaremos agora — pela voz de Imma, podia sentir aquele garoto mudado e sem humor ao qual ele nunca quis se transformar.

Mas o poder e a matança sempre acaba nos transformando não é mesmo?

Esfreguei os olhos, querendo livra-los da ardência. Não queria ser uma cega no meio de uma batalha. Seja como Olivia for lutar contra ele, o ajudarei da melhor maneira possível — e estando cega isso se torna praticamente impossível. Aos poucos meus olhos foram ardendo menos e quando acabou se tornando suportável, abri os olhos, vendo Olivia e Imma se encarando, frente a frente.

Sangue seco estava espalhado por toda sua roupa e suor manchava seu rosto — na verdade, acho que tinha um pouco de água salgada ali também. E pra minha surpresa, o nível 3 brilhava acima da sua cabeça, indicando que o monstro o havia feito passar de nível.

Tanto Utae, quanto Malek, observavam atentamente a cena dos dois. Ao me pôr de pé, também fiz o mesmo.

— Como teve coragem de arruinar o reino do nosso pai? — Imma cerrou o punho livre. O outro mantinha o tridente firmemente em mãos.

— Ele não quis me dar a pedra Elemental, mesmo sendo a filha favorita dele. — Os olhos de Olivia viajaram pra longe, indicando que ela sentia remorso sobre aquilo.

— Tem certeza que você era a favorita? — quando vi já estava me intrometendo na discussão.

Seu olhar me fuzilou de imediato.

— Ele me deu um navio de presente, Karysha! Agora me diga o que ele deu a esse... palerma! — E apontou para Imma.

Não consegui deixar Imma responder.

— Poseidon me deixou viver. Foi o maior presente que o Imma poderia ganhar.

A expressão séria de Olivia se suavizou, transformou-se em um sorriso que terminou numa gargalhada.

— Isso é o que você chama de "presente"? — ela fez as aspas com os dedos ao usar uma voz debochada.

Fiquei surpresa ao perceber que Imma não havia gostado do deboche. Ele ergueu o tridente e investiu contra ela. Olivia percebeu a intenção de seu irmão e se defendeu com sua cimitarra. Como se tudo fosse sincronizado, ondas violentas começaram a estraçalhar as pedras abaixo de nós.

Só parei de focalizar a luta quando alguém tocou meu braço e sussurrou:

— Precisamos dar o fora daqui — era Utae.

— Como é? — não consegui esconder o espanto.

— Os dois precisam resolver isso sozinhos — argumentou.

Malek concordava com a cabeça. Minha expressão se fechou de imediato. Eles iam mesmo deixar Imma lutar contra uma nível 10 sozinho?

— Está com medo, é isso? — Empurrei o peito do meu líder. — E você por que tá concordando com ele? — dirigi a minha palavra a Malek. — Não salvei sua vida pra você voltar a ser inútil!

Utae segurou meu braço como se eu fosse uma criança birrenta e precisasse obedecer.

— Precisamos ir!

— Assassinou a todos do reino, Olivia? Todos? Tudo por causa desse maldito poder? — Imma gritava com ela enquanto lutavam.

Parece que perdi uma parte da discussão.

— Não assassinei! — ela exclamou em sua defesa, atacando-o com violência. — Todos fugiram! Deixei que fugissem! Não meteria inocentes nas minhas questões com Poseidon!

Quem estava recuando passos a cada ataque era Imma. Utae continuava segurando meu braço, coisa que já tinha me impedido de correr até Imma e ajudá-lo a acabar com aquela sua maldita irmã.

— E quanto a todos da sua tripulação? — gritei pra ela.

Olivia não me respondeu. Apenas fez a pedra Elemental da água brilhar em seu pescoço. A onda que atingiu a pedra a seguir foi tão forte que ultrapassou a cabeça de Imma — ainda mais que ele estava na beirada.

A água o amarrou numa tira grossa transparente. Nuvens escureciam o céu e quando ouvi um trovão ao longe, sabia que em partes era culpa de Utae. Trocamos olhares. Um raio cruzou o céu imaginário de sua íris é mesmo com esse indício de que ele ajudaria Imma de alguma forma, sua mão não se afrouxou sob meu braço.

Mesmo sendo impedida por Utae, comecei a reparar em toda a água que encharcava a pedra onde estávamos. Aquilo fazia um plano improvisado borbulhar em minha mente. Com toda essa água, eu poderia fazer gelo surgir rapidinho..., pensei, observando atentamente cada movimento de Olivia.

A filha de Poseidon ergueu a própria cimitarra. Possivelmente arrancaria a cabeça do Imma com uma espadada só. Então fiz gelo surgir tanto em seus pés quanto na sua mão, impedindo que ela continuasse o golpe fatal. Nisso, a água que prendia Imma se aliviou e o mesmo usou essa oportunidade para fazer o mesmo com ela, ou seja, prende-la com a própria água. Entretanto, Imma estava bastante enfraquecido e sua prisão de água não se mostrou nem um pouco eficiente. Por causa da água, o gelo derreteu rapidamente e como a prisão não estava firme, Olivia facilmente se livrou daquilo. Meu coração se apertou ao ver a expressão cansada de Imma. É sério que Utae vai fazer a gente assistir aquela luta de camarote?, pensei quase que revoltada.

Mesmo estando visivelmente cansado, o filho de Poseidon não deixou de erguer o tridente. Olivia, sem dó nem piedade, aceitou o desafio.

— Vão! — exclamou Imma pra nós. — FUJAM!

A mão de Utae se apertou sob meu braço e logo me puxou na direção da beirada do penhasco.

— Invoque os seus ventos Kary. Precisamos deles agora — mentalmente eu me perguntava como a voz de Utae se mantinha calma mesmo com tudo aquilo acontecendo bem na nossa frente.

— Não...!

Tive que interromper minha própria frase de recusa quando uma onda gigantesca quebrou-se sobre as nossas cabeças — e sim, ainda estávamos em cima da pedra!

— Kary, não dá pra você ser a heroína agora! — Utae me repreendeu. — Invoque os ventos agora!

Naquele momento meu coração se dividiu em dois. Eu queria ficar e fazer o possível para ajudar Imma, mas também queria fugir porque ele mandou e eu sabia que quando Olivia o matasse, ela também faria o mesmo comigo, Utae e Malek. Era tudo uma questão de escolha. Ou apenas um morria, ou os quatro de vez.

Bastante contra a minha vontade, invoquei os ventos da pedra Elemental e eles atenderam meu pedido. Eu sabia exatamente o que Utae queria que eu fizesse. Logo nós levitamos da pedra onde ocorria a luta que eu me senti mais inútil do que eu me sentia quando comecei a jogar esse jogo.

— Para onde vamos? — questionei enquanto voávamos para longe, sem um rumo certo.

Utae apontou para uma árvore ao qual havia sobrevivido a enchente da água salgada. Pousamos no topo dela, onde havia um emaranhado de galhos grossos, perfeitos para se sentar de descansar — descansar... era o que eu menos queria agora já que meus pensamentos estavam em Imma.

— Antes que queira me matar, saiba que o Imma me pediu pra fazer isso — informou Utae, por um segundo segurando meu ombro.

— Quando? — O encarei com um olhar acusador, quase não acreditando no que acabara de dizer.

— Quando estávamos enfrentando Caríbdis, ele viu Olivia. Disse que daria um jeito de enfrenta-la como vingança por ter arruinado o reino de seu pai. Ele queria fazer isso sozinho, Kary.

— E precisava atender o pedido dele à risca? — me odiei quando minha voz vacilou. — Podíamos ter ajudado, Utae! Pensei que ajudaria!

— Eu não podia fazer nada!

— Podia sim! — insisti. — Achei que lançaria um raio na cabeça dela!

— Era o que eu faria, mas todos vocês morreriam por causa da descarga. Estávamos rodeados de água. Pelos deuses, Kary, você está pensando direito?

Passei as mãos pelo rosto, querendo esfriar meus pensamentos. Logo meus olhos estavam marejados e minha garganta apertada. Me obriguei a engolir o choro.

As águas abaixo de nós continuavam agitadas e o céu nublado. Cada segundo que passava eu ficava mais nervosa. Pouca coisa dava pra ver de lá. Apenas pontinhos no centro daquela pedra. A única coisa que eu conseguia ver que diferenciava um do outro era o brilho azul de um dos pontinhos. Esse pontinho com certeza indicava a pedra do colar de Olivia.

O pontinho azul avançou na direção do outro. Percebi que Utae e Malek acompanhavam com atenção o que acontecia naquela luta. Cada vez mais a água agitada acompanhava o ritmo. Uma onda forte atingiu o tronco da grande árvore ao qual estávamos, fazendo alguns pingos atingirem minha pele. Nem isso me fez desviar o olhar da luta.

Fiquei assustada quando as águas se agitaram como se fossem um redemoinho gigante ao redor das pedras. As rochas não estavam segurando mais a força da água. Os ventos chegavam até nós e eram formados por causa da velocidade do mar. O redemoinho ficou tão gigantesco que ficou acima das pedras onde eles estavam, o que me atrapalhou a continuar assistindo a luta.

— Não... — me vi murmurando, quase como um gemido.

— Ele vai sobreviver — não havia total certeza na voz de Utae.

Malek se manteve em silêncio, tão concentrado na luta quanto eu.

Meu coração palpitou forte no peito quando o redemoinho se desfez de uma vez, fazendo a água cair sobre as pedras num barulho semelhante a uma cachoeira por alguns segundos. Comprimi os lábios de nervosismo, torcendo mentalmente para que aquilo fosse o sinal de que Imma finalmente havia assassinado Olivia.

Não demorou muito para eu conseguir ver o que tinha acontecido. Os dois pontinhos estavam estáticos e o de Olivia apagado. Cerrei os olhos, querendo enxergar direito, mas de tão longe, estava ficando complicado. Outro brilho surgiu do nada. Era mais intenso que o de Olivia. De imediato, pelas cores diferentes se misturando naquele pontinho intenso, já imaginei que deveria ser Odd.

Os dois pontos que representavam Olivia e Imma continuavam estáticos.

Um frio percorreu minha espinha ao ouvir um grito humano. Bem, não era um grito. Era um rugido, como se alguém estivesse num sofrimento eterno. Então aquele pontinho se transformou em rajadas de água, fogo, ar e pedaços de lama de uma vez só, misturando-se num novo redemoinho, sustentado pelos ventos do elemento ar. Entretanto, a rajada de fogo se sobrepôs aos outros elementos e a água ao redor das pedras se transformou em fumaça por causa da rápida evaporação.

A intensidade das chamas rapidamente se intensificou.

— Vou ir lá dar uma olhada — avisou Utae.

Afirmei com a cabeça, agoniada. Queria ter notícias do Imma logo.

Utae se colocou de pé no tronco e alçou voo em seguida. Permaneci em silêncio, observando ele indo em direção as chamas que quando ele chegou perto, elas foram sumindo tão rápido quanto quando chegaram. Consegui ver Utae pousar.

Não sabia se ele daria um sinal para que pudéssemos ver o que havia acontecido, entretanto, um raio cruzou o céu nublado e eu logo associei que deveria ser ele me chamando. Me coloquei de pé e meneei a cabeça na direção dele para que Malek entendesse que estava na hora de irmos ver o que havia acontecido. O mesmo se coloca de pé.

A pedra Elemental brilhou e os ventos me atenderam, envolvendo-nos e nos permitindo levitar. Então, rapidamente estávamos voando na direção de Utae. Quanto mais perto da cena íamos chegando, mais meu coração se apertava no peito ao ir associando a cena. Quando meus pés tocaram a pedra onde Utae estava, meus joelhos fraquejaram e atingiram o chão pedregoso. Sentia meu coração querendo sair pela boca.

A primeira coisa que tive coragem de olhar foram seus olhos azuis já sem foco e completamente enegrecidos. Sua pele pálida... Assim que meus olhos marejaram, não conseguia mais ver a cena com clareza.

Sim, é isso mesmo, Imma havia morrido.