Três requiems para 221 Baker Street escrita por Maga Clari


Capítulo 1
Primeiro movimento - O assassinato do violino




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Tic. Tac.

Tic. Tac.

Tic. Tac.

— Você não tinha o direito de fazer aquilo, Sherlock.

Tic. Tac.

— Você não podia ter feito isso.

Tic. Tac.

— Você sabe quanto tempo eu desejei isso, Sherlock? Sabe quanto tempo? Quanto tempo eu aturei seus requiems de violino às três da madrugada, ou... ou... Ou pedaços de gente morta na geladeira? Ou mesmo aquela sua morte forjada?! Sherlock, eu não aturei isso tudo pra você estragar a coisa mais importante da minha vida. Você sabe que nunca encontrarei alguém como Mary!

Tic.

Tac.

— Sherlock, você tem razão. Você é um sociopata.

Então, pela primeira vez desde exatos trinta minutos, Sherlock, que estivera concentrado em algum ponto do chão, levantou seus olhos para encarar John Watson sentado em sua poltrona, num ângulo de exatamente noventa e três graus para leste.

John batia a ponta dos dedos no braço da poltrona, e seus joelhos se balançavam, nervosos, provavelmente porque esperavam alguma resposta, alguma reação do detetive sociopata, mais conhecido por Sherlock Holmes.

Sherlock sabia exatamente o que pensar sobre John em todos os momentos. Ele era a pessoa mais previsível que conhecera: John certamente iria olhar para cada quina da casa, numa tentativa inútil de esconder o nervosismo tão evidente. Ele também iria pigarrear e coçar o nariz. E se Sherlock demorasse muito, voaria para a porta, e esperaria alguns segundos até seu velho amigo lhe chamar de volta.

Mas dessa vez, ah!, dessa vez, John conseguiu esperar trinta minutos. Trinta longos e intermináveis minutos de agonia até Sherlock lhe oferecer o mínimo de atenção. Agora, o coração de John poderia parar e ele não notaria.

— Sherlock, acho que não posso mais ficar aqui — ele insistiu e seu aviso foi tão direto quanto um tiro certeiro.

Sherlock Holmes tirou um cigarro escondido dos bolsos e levantou-se num pulo para a janela.

Acendeu-o, esquecendo-se dos malefícios que seu irmão mais velho vivia lhe informando, mas naquele momento, o que menos importava era um câncer pulmonar a longo prazo. Por isso, Sherlock soprou a fumaça nos ares londrinos, esperando que a nicotina acalmasse sua pulsação sanguínea até que a presença de John Watson parasse de lhe atormentar.

Entretanto, o som da porta batendo estava demorando demais. Ele queria olhar, mas também não queria dar o braço a torcer. Por isso, resolveu esperar mais um pouco.

Tic.

Tac.

Tic.

Tac.

O relógio de parede já havia dado alguns indícios de que mais quinze minutos já haviam se passado, mas nada da porta bater.

E então? Por que John Watson não havia ido embora? Ou teria ido-se, mas sem fazer barulho como das demais vezes?

Pelo visto, John não era mais tão previsível assim.

Tic.

Tac.

Sem paciência, portanto, Sherlock fez um gesto longo, virando-se para a sala de estar, e seus olhos transbordavam irritação e impaciência:

— Ora, pelo amor de Deus, John, você não vai embora?!

John acomodou-se em sua poltrona e pigarreou. Como de costume. E então, entrelaçou os dedos antes de falar-lhe:

— Precisamos resolver isso como adultos, Sherlock.

John tinha a cabeça levemente levantada, e o detetive parecia uma estátua por causa de sua postura rija.

— Quero uma resposta. Ou melhor, nem precisa ser uma resposta. Apenas brigue comigo. Faça alguma coisa, Sherlock. Demonstre sentimentos. É impossível não sentir nada.

Sherlock olhou-o com uma expressão engraçada, até cair na gargalhada por alguns poucos minutos.

Tic.

Tac.

Tic.

Tac.

— Sherlock! — John levantou-se, e seu tom de voz era mais do que rude. Ele havia gritado.

O detetive jogou o cigarro pela janela e encostou-se à poltrona que era a dele.

— É bem engraçado você colocar Mary como a coisa mais importante da sua vida.

A expressão de John era de incredulidade.

Sherlock explicou-se:

— Essa é a minha resposta. Você disse que estraguei a coisa mais importante da sua vida. E é bem óbvio que esteja se referindo à Mary.

John apertou o canto da boca, coçou o nariz e olhou para todos os cantos da sala.

Como de costume.

E então, tornou a direcionar os olhos para Sherlock Holmes.

— É isso? É isso o que você pensa?

Sherlock levantou as sobrancelhas, achando tudo muito óbvio, desnecessário e entediante. Então, saltou para o outro lado da sala e escolheu um requiem para matar o tempo com seu violino.

Mas então, contradizendo todas as expectativas possíveis na mente brilhante do maior detetive do Reino Unido, Sherlock viu-se apasmado quando John Watson chutou-o nas costelas e jogou seu violino do outro lado da sala, e o som da madeira quebrando quase o fez ter vontade de chorar.

— Você pode até se achar um bom sociopata, Sherlock. Mas você é bem burro na maior parte das vezes.

E só depois disso, John bateu a porta da sala e disparou pelas escadas para deixar o 221 B de Baker Street, sem nenhum plano de voltar naquele lugar.

E enquanto Sherlock piscava os olhos confusos, em choque, a Senhora Hudson entrou no apartamento e colocou as mãozinhas finas nas bochechas e falou:

— Sherlock! — um gritinho fino.

Certamente ela correria até a cozinha para trazê-lo um pouco de gelo, mas ele havia deixado a geladeira recheada de dedos necrófilos, então apressou-se em tranquilizá-la:

— Estou bem, Senhora Hudson — um gemido de dor, mas Sherlock conseguiu se levantar enquanto massageava seu nariz, que bateu na quina da mesinha de centro durante a queda — Estou beeem! E a senhora, como está? — ele deu um beijinho na bochecha dela, que logo ficou desconsertada — Quer chá?

— Ah! Eu... Hum...

— Tem chá no fogão, vou só ligar para esquentar... — ele correu para a cozinha, tirou os dedos da geladeira e colocou num saquinho, e então correu para a saída do apartamento — Agora, preciso ir, estou muito ocupado, trabalho, trabalho! Adeus, Senhora Hudson!

— Mas, Sherlock...

E então a porta bateu.

Pela primeira vez, Sherlock Holmes sentiu-se perdido. Ele esquentava as mãos sob as luvas grossas de inverno, e olhava para os lados abobadamente, irritado por ter adquirido os hábitos de seu colega de apartamento.

Sherlock havia parado de raciocinar por instantes, e isso era quase impossível (pelo menos, era o que todos achavam, incluindo ele próprio). Mas aconteceu, e ele não sabia para onde ir, ou o que deveria fazer. Por isso, terminou por parar de andar de um lado para o outro e sentou-se na calçada em frente ao 221B de Baker Street e pela primeira vez, uma primeira vez verdadeira, Sherlock Holmes chorou. Ele chorou de verdade, e não sabia nem ao menos o porquê.

Naquele momento, Sherlock não era mais Sherlock Holmes, o detetive que resolveu casos da rainha ou do Primeiro Ministro. Ele só era Sherlock. E ele achava tão estúpido estar chorando quanto continuar chorando sem saber o motivo e no meio do nada, na frente de tanta gente. No entanto, poderia aparecer a televisão, jornalistas, o que fosse, mas Sherlock não daria a mínima. Era a primeira vez que chorava desde o dia que Mycroft jogou fora sua fantasia de pirata, e talvez fosse o motivo! Bingo!

Quando entendeu que seu sentimento havia sido trazido por causa de seu violino quebrado, e que isso o havia remetido aos seus sonhos de pirata reduzidos ao lixo, Sherlock sentiu-se melhor. Ele tinha um motivo, então poderia continuar chorando sem sentir-se tão mais estúpido quanto uma pessoa qualquer que chorasse por alguma razão qualquer. Pelo menos, ele não era um sociopata esquizofrênico. Ele era somente sociopata (que amava piratas e violinos).

E enquanto os milhares de pensamentos vinham, Sherlock não conseguiu perceber o exato momento que John lhe encarava de pé, na rua, segurando dois cafés do StarBucks e olhando fixamente para o saquinho plástico cheio de dedos mortos.

Quando Sherlock finalmente o viu e seguiu seu olhar, justificou-se apressadamente:

— Eu vim jogar fora. Quem sabe assim... — mas então interrompeu-se, achando tudo aquilo muito estúpido.

John sentou-se ao lado do velho companheiro de apartamento e ficou alguns segundos fazendo expressões esquisitas no rosto antes de achar as palavras certas:

— A coisa mais importante da minha vida não era Mary.

— Ah, não?

Agora, Sherlock parecia intrigado.

John remexeu seu café, para tirar a espuma.

— Você estragou isso também quando quebrou seu juramento. Mas não é disso que estou falando.

— Continue.

John balançou a cabeça e soltou uma risadinha incrédula, sem olhar para o amigo hora nenhuma.

— Eu não sei como dizer isso.

— Apenas — Sherlock arrastou as sílabas, sem paciência — continue.

— Bom... — John mexeu um pouco a boca e as sobrancelhas — Você estragou nossa parceria, Sherlock. Você agiu por impulsos. Você diz que não, mas você tem sentimentos sim. E sua falta de ética acabou com meu casamento e com a vida de quem sabe uma possível grande amiga?!

Sherlock ouvia a tudo concentrado, o seu olhar perdia-se nos carros em movimento na rua de Baker Street.

— Não sei se vou confiar em você novamente. Se vou conseguir olhar pra você sem me lembrar... Bem... E tudo isso por orgulho, e...

— Fale de uma vez, John. Fale o que veio dizer, o que quer dizer.

— Quando cheguei aqui, você estava chorando.

— Eu não estava chorando, eu estava um pouco chocado por causa do meu violino que foi assassinado — Sherlock foi categórico e não perdeu a pose de superioridade.

John tinha um semblante incrédulo. Um sorriso de ironia brincava no canto de sua boca.

— Sherlock, você tem sentimentos.

O detetive piscou os grandes olhos para John, seu ego ferozmente ferido.

— Não sei se existe alguma sociopatia que apresente sentimentos, porque se existe, esse é você.

— Eu não sei aonde você quer chegar, John. Não tenho o dia todo, fale de uma vez. Você veio aqui me dizer alguma coisa, não se arrodeie.

— Você se importava com Mary. E se importa comigo, Sherlock. E enquanto não aceitar isso dentro de você, muita gente poderá se ferir, inclusive eu, e você mesmo.

Um longo silêncio se seguiu enquanto John tomava um último gole no seu café.

O relógio de Sherlock gritava que já era hora de uma nova entrevista marcada no Palácio de Buckingham. Então, ele simplesmente tirou o relógio do pulso e atirou-o no meio da rua.

— Não quer mesmo falar sobre isso? — John insistiu.

— Não.

— Okay — respondeu simplesmente.

Mas para não tornar ao silêncio, Sherlock falou:

— O que faz aqui, John? Agora?

— Você acha mesmo que eu conseguiria ir embora?

Então, Sherlock soltou uma gargalhada e estendeu os dedos gigantescos para o segundo café ao lado do velho amigo, mas este protestou:

— Ei, ei, ei! Quem disse que é seu?

— John. Você ia para casa, puto da vida, quando chegou ao café e decidiu que era uma péssima ideia e se arrependeu por destruir o meu violino, então resolveu que trazer um café só pra você pareceria muito egoísta, então trouxe um pra mim também, mas não quis deixar tão na cara, e foi por isso que ao invés de meu nome, você pediu que escrevesse na etiqueta simplesmente “Mr. Pirate”, pois julgou ser um bom trocadilho, já que é bem provável que Mycroft tenha lhe contado algo sobre isso em alguma conversa banal, mas ao por os pés aqui percebeu ser ridículo, então fingiu que os dois cafés eram seus, para que eu não pensasse que você estava vindo pedir desculpas, pois também você, John Watson, também você tem vergonha de seus sentimentos.

— Bom... — John pigarreou e coçou o nariz. Agora, seu tom era quase de divertimento — E como você chegou a esta dedução, Sherlock?

O detetive voltou a rir enquanto tomava um longo gole do copo de papel intitulado “Mr. Pirate”.

— Você nunca tomou mais do que meio copo de café do Starkbucks, John.


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